*Antes das Minas Gerais: conquista e ocupação dos sertões mineiros. ANGELO ALVES CARRARA, Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Professor do Departamento de História/UFJF. Campus Universitário, Bairro Martelos - Juiz de Fora/MG - 01/01/2007 de ( registros)
Antes das Minas Gerais: conquista e ocupação dos sertões mineiros. ANGELO ALVES CARRARA, Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Professor do Departamento de História/UFJF. Campus Universitário, Bairro Martelos - Juiz de Fora/MG
2007. Há 18 anos
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o rio São Francisco”. Além desta lagoa grande, sem dúvida a origem daencantada Vapabuçu (do tupi ipawa, “lagoa”, uçu, “grande”), acreditava-sena existência de um “sumidouro, que pode estar da cachoeira [que estaráda barra 20 léguas, pouco mais ou menos] oitenta ou 90 léguas”. Segundoo cronista, “este sumidouro se entende no lugar onde este rio sai de debaixo da terra, por onde vem escondido 10 ou 12 léguas, no cabo das quaisarrebenta até onde se pode navegar e faz seu caminho até o mar”.7Ainda em 1610, o padre Jácome Monteiro relatava que o rio de SãoFrancisco “navega-se até 70 léguas e daí por diante não, por respeito deuma cachoeira que terá de altura mais de 400 braças, da qual se lançacom um medonho estrondo. Querem os naturais que tenha sua nascençana mesma lagoa donde rebenta o Rio da Prata”.8Estes relatos contrastam profundamente com a declaração de DiogoMoreno, em 1612, de que, apesar de sua nascente ser ainda desconhecida,pelo São Francisco ter-se-ia já navegado mais de 300 léguas (ca. 2000 km),“até que, espantados da multidão de gentios que encontraram, tornaramse atrás os navegantes”.9 Se a informação que o autor apresentou estivercorreta, alguma expedição anterior a 1612 já teria atingido o rio Carinhanha.Em menos de um século depois, pelas mesmas 300 léguas, o São Franciscojá estava descoberto de uma e outra banda [e] povoado.10Os relatos de viagens exploratórias do curso do São Francisco sãoescassos. No século XVI, um certo Bastião Álvares, “que se dizia do PortoSeguro”, segundo Gabriel de Souza, foi mandado “entrar por este rio acima”pelo governador geral Luís de Brito de Almeida, “no que gastou quatro anose um bom pedaço da fazenda d’El-Rei, sem poder chegar ao sumidouro[do rio São Francisco] ... e por querer fazer esta jornada contra a água”.O mesmo não sucedeu a de João Coelho de Souza, que “chegou acima
GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da terra do Brasil [ca.1568]. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: EdUSP,1980, p.63-5 (cap.9); cf. também GÂNDAVO, Pero de Magalhães. História da Província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, esp. o cap. 2. Segundo Orville Derby, “para os exploradores daquela época (e por muitotempo depois), todas as pedras verdes eram esmeraldas, e todas as azuis, safiras”. Revista do Instituto Históricoe Geográfico de São Paulo, vol.5, p.259. MORENO, Diogo de Campos. Livro que dá razão ao Estado do Brasil[1612]. Ed. crítica, com introdução e notas de Hélio Viana. Recife: Arquivo Público Estadual, 1955, p.125; SOUZA,Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil [1587, p.41-2, 1851. Basílio de Magalhães concordava com TeodoroSampaio, “cuja opinião colhemos de viva voz, propendemos a crer seja esta obra uma espécie de relatório geralda colônia luso-americana, mandado fazer pelo governo de Filipe II, logo após a junção dos dois países ibéricossob o mesmo cetro dos Habsburgos”. A entrega oficial do Tratado foi feita em Madrid a Cristóvão de Moura, em1o. de março de 1587. MAGALHÃES, Basílio de. Expansão geográfica do Brasil colonial, p.45, nota 30. [p. 5 do pdf]
das Farinhas” aparece no documento – datado de 23 de junho de 1764– de criação da vila de São Pedro do Belmonte, na antiga povoação de RioGrande, pelo ouvidor de Porto Seguro, tendo por termo “toda a extensãodo território desde o rio Muquiçaba (atual Mojiquiçaba) ao sul, até o rio dasFarinhas, distante uma légua da mesma povoação”.16 Alguns anos antes, opároco desta freguesia informava que, a uma légua bem puxada a partir daaldeia dos índios menhãs, situada no pontal norte do Rio Grande (no localdenominado Peso do Pau), situava-se a barreta chamada das Farinhas. Eexplicava que esta denominação se devia a quepor aquela parte entra o rio de Patipe com um braço até o combro da praia e alise embarcam as farinhas das roças circunvizinhas, e quando descem as cheiasdo sertão, e vem o rio de monte a monte, tresborda por aquele combro por sera parte mais baixa e abre a dita barreta a qual brevemente entope o mar.17Ora, o rio Patipe é o mesmo rio Pardo.18 Ou seja, o “río de las Harinas” éde fato o rio Pardo. Mas Capistrano já havia chegado a esta conclusão poroutros meios, independentemente desta correção de leitura, e com base emoutra informação também presente na carta de Azpilcueta, que indica o fatode na serra do Espinhaço nascerem dois “ríos caudales” que “iban a salir almar entre Puerto Seguro y los Illeos”. Ora, só havia uma possibilidade: o rioGrande, ou Jequitinhonha, e o Pardo, ou Patipe, que Azpilcueta nomeia dasFarinhas. Este erro de leitura levou Derby a identificar o “Urinas” ao Araçuaí,o que, para Capistrano, parecia – como de fato o é – inaceitável: o Araçuaíé afluente do Jequitinhonha, e não sai ao mar entre Ilhéus e Porto Seguro.Qual teria sido o roteiro desta seção até o Espinhaço? Ou melhor: aque parte do Espinhaço atingiram? Creio que a hipótese apresentada porCapistrano é a mais razoável: a serra devia ser “uma das conhecidas pelonome de Almas, Grão Mogol e Itacambira”. Penso que a expedição seguiude fato o curso do Jequitinhonha até a barra do Itacambiruçu, e por esterio acima até a serra do Grão Mogol. Daí, continuaram pelo curso do Itacambiruçu até a barra do rio Congonhas, sempre em direitura do oeste, eprocurando, na medida do possível, não se distanciar do paralelo 16º.Desse modo, do ponto do Espinhaço em que se achavam, partiram,e foram hasta un río muy caudal, que tiene por nombre Pará, que según los indios nosdaban información, es el río de San Francisco, y es muy ancho. De la parte dedonde estábamos son los indios que dice [isto é, os ‘catiguzu’; de la otra [damargem esquerda do São Francisco?] se llaman tamoys, enemigos de estos, ypor todas las otras partes tapuyas. Viéndonos pues en este aprieto, les parecióa todos que ordenásemos barcos en que fuésemos por el río. Y así comenzócada uno a hacer lo que entendió, porque no teníamos carpinteros, y así nosasentamos em uma aldea junto de la cual pasa un río por nombre Monayl, queva a dar en el outro. Y esto por no ser sentidos de los contrarios que estaríande allí en tres leguas. Hicimos uma cruz grande y la pusimos en la entrada de laaldea. Y junto con ella hicimos una ermita donde hacía pláticas de Nuestro Señora los compañeros, y con su licencia comencé de ir por las aldeas y luego en latercera do[nde] fui hallé sus [de los indios] miserables fiestas, por que tenianuna niña pequeña en la plaza ceñida con unas cuerdas para matarla. Al lo cualse había juntado mucha gente de las otras aldeas. Y lleguéme a ella y habléleem lengua de nuestros indios, y no me entendió: porque era hija de tapuyas.Aquí ví ceremonias que nunca tenía visto en este auto de matar.Para Capistrano, a expedição teria dado na barra de algum rio maior,fronteiro à seção serrana, isto é, o Jequitaí ou o rio das Velhas. Capistranona verdade tendia a identificar o Pará com o rio das Velhas. Proponho outroroteiro: se a expedição de fato seguiu o curso do rio Congonhas, e não sedistanciou muito do paralelo 16º, então passaram nas imediações onde hojese acha a cidade de Montes Claros, indo sair no São Francisco próximo àbarra do rio Pacuí. Quanto ao nome do rio Monayl, há de se notar o seguinte:primeiramente, esta não parece ser uma palavra legitimamente tupi, tendoem vista o “l” final. Como se sabe, este som e letra inexistem na língua geral.Logo, ou se trata de erro tipográfico ou erro de pronúncia do padre Navarro.19Teríamos de pensar então num rio Mona-y, ou Muna-í (< muná – ig), literalmente – e claro está, se a tradução estiver correta – “rio escondido”. Ora, opadre informa que escolheram a aldeia em que se estabeleceram – e juntoda qual passava este rio Monayl – “por no ser sentidos de los contrarios queestarían de allí en tres leguas”. Nesse sentido, ou o rio de fato se chamava“Escondido”, exatamente por ter esta característica, ou, então, tratava-se derio com nome diferente, mas que, nas circunstâncias, se achava “escondido”dos contrários. Seja como for, nada nos autoriza a pensar na associaçãodesse Monayl com o Mangaí, de etimologia totalmente diferente.Retornando à aldeia em que se faziam os barcos, Azpilcueta viu queestavam quase todos prontos.20 Embarcaram-se então “con mucho cuidado”, e foram pelo rio São Francisco abaixo. Mas não puderam continuar anavegação por ser toda la tierra poblada al derredor de diversísimas generaciones de indiosmuy bárbaros y crueles. Las tierras que están alderedor de este río ]y[ treintaleguas y aún más al derredor son muy hermosas y llanas. Salidos del río hicimosnuestro camino por tierra. Volviendo, nos hallamos en la tierra que andamos.Contudo, o roteiro preferencial para se chegar a seu curso médio ealto-médio foi o rio Paraguaçu. Em 1561, Vasco Rodrigues Caldas, que foravereador na Bahia, ofereceu-se a Mem de Sá para penetrar os sertões embusca de minas, com 100 companheiros à custa própria. Subiu o vale doParaguaçu, até uma distância de 70 ou 80 léguas do litoral. Porém, desbaratado pelos tupinaés, teve de retroceder para a capital.
Segundo frei Vicente do Salvador, Gabriel Soares de Souza, chegado ao Brasil em 15 de junho de 1591, intentava “chegar ao rio de São Francisco, e depois, por ele, até a lagoa Dourada, donde dizem que tem seu nascimento”. Em maio de 1592 partiram da Bahia e, chegando à serra do Gariru (ou Quareru, atual Serra Branca), levantaram um forte, em cumprimento à determinação régia de que pelo menos a cada 50 léguas assim se procedesse. Ao atingirem pela segunda vez essa distância, e já nas cabeceiras do Paraguaçu, levantaram “outra fortaleza na qual, por as águas serem ruins e os mantimentos piores, que eram cobras e lagartos, adoeceram muitos e entre eles o mesmo Gabriel Soares, que morreu em poucos dias no mesmo lugar, pouco mais ou menos, onde seu irmão havia falecido. Foi sepultado na fortaleza, que fazia, com muito sentimento dos seus”.21
De seus afluentes, o mais importante, o rio das Velhas, foi também oque maior atração exerceu sobre os exploradores, e também aquele queprimeiro é nomeado sob a denominação original em tupi, grafada “Goaibihi”,em 1603.22 Dois anos antes, uma variante do que mais tarde se constituiriana estrada geral de São Paulo para as minas teria sido palmilhada pelaprimeira vez pela entrada que André de Leão dirigiu em 1601, durante novemeses, e que, segundo Orville Derby, teria alcançado as imediações daatual cidade de Pitangui.
DERBY, Orville. O roteiro de uma das primeiras bandeiras paulistas, p.319-350. O roteiro de Wilhelm ten Glimmerfoi reproduzido na obra de PISO, Wilhelm e MARCGRAFF. Historia naturalis Brasiliae. Louvain: Franc. Hackium/Amsterdam: Lud. Elzevirium, 1648, livro VIII, cap.2, p.263-4. A tradução portuguesa, por Melquíades da Boa MorteTrigueiro, foi inserida por Orville Derby nesse artigo.
Glimmer assinala que, chegados às cachoeiras do Paraíba do Sul, seguiram viagem “a pé, ao longo de outro rio que desce do lado ocidental e não [Páginas 8, 9 e 10 do pdf]
Em parte, pelo menos, estes relatos parecem repetir a versão transmitidapor outro texto, escrito com toda a certeza nos primeiros anos da décadade 1820.61 Seu autor assinala que na ilhaque se diz ‘a de São Romão’, com meia légua de comprido e quase 400 passosgeométricos de largo, ... consta por tradição constante e não controvertida, quehouve uma aldeia de índios, os quais a desampara[ra]m depois de destroçadospor Januário Cardoso, paulista, e Manuel Pires Maciel, europeu, em dia de SãoRomão. Não havendo certeza do ano desse fato, sabe-se, contudo, que foraantes de 1712...Este autor acrescenta ainda queconquistando os sertanistas Manuel Pires Maciel e o mestre-de-campo JanuárioCardoso, os sertões até a barra do rio das Velhas, estabeleceu o primeiro asua vivenda na parte oriental do rio de São Francisco, e o segundo no terrenoocidental sobre a margem do riacho Salgado, onde levantou um engenho deágua: e deste princípio teve origem o arraial aí fundado.Da ação de Manuel Pires Maciel como conquistador e primeiro mandatário dessa vasta área restaram-nos muito mais do que indícios. As sesmariasque a partir de 1727 se concederam nos caminhos de Goiás a membrosde sua família (filhos e genros) referem-se à criação de gado vacum ecavalar no riacho Corrente acima até o riacho Santa Maria para a Serra doParanã. É mesmo impressionante a concessão de uma sesmaria com 15léguas em quadra (!) em 1735. O concessionário, Bernardo Domingues,declarou-se morador no Brejo do Salgado, e descobridor “nos gerais do rioSão Francisco [de] um sítio da parte de Pernambuco pelo rio dos Pandeiros acima”. Disse ainda ter achado “o sítio quando descobriu sete taperasou povoações de gentio bravo, e com gados e casa-forte que havia feitopara livrar-se das contínuas invasões dos gentios que ordinariamente poraquele lugar saíam fazendo suas entradas aos moradores do dito Brejo doSalgado”. Sua propriedade confrontava-se com o ribeirão dos Três Monos,o riacho da Estiva e o ribeirão do Jenipapo.62O testemunho deste concessionário mostra-nos que, já bem avançadoo século XVIII, a guerra dos bárbaros não havia acabado. [p. 23 do pdf]