CARTA DE SÃO VICENTE 1560. CONSELHO NACIONAL DA RESERVA DA BIOSFERA DA MATA ATLÂNTICA
1997. Há 27 anos
todo o seu corpo é cheio de ossos solidos e durissimos, tais quepodem fazer as vezes de marfim (05).Convem relatar aqui algumas cousas que vêm a proposito e que,escritas há mais de dois anos, pelo máu exito da incerta navegação,julgo não terem chegado aí.
Tendo eu e quatro Irmãos (06) saido da cidade do Salvador (que tambem é chamada Baía de Todos os Santos), depois de fazermos 240 milhas por um mar tranquilo á feição do vento, chegámos a uns bancos de areia que, estendendo-se para o mar na distância de 90 milhas, e oferecendo uma como muralha em linha réta, tornam dificil a navegação; aí deitando a cada passo a sonda, gastámos todo odia e, fundeada a embarcação, pelo meio de estreitos canaisentrincheirados por montes de areia, por onde se costumava navegar;no dia seguinte, porém, reunidos felizmente todos á tarde, osmarinheiros, julgando-se já livres de perigo, tranquilizaram-se e nãopensaram mais nele, quando, de repente sem ninguem o esperar, oleme salta fóra dos eixos e encalha o navio; sobrevem ao mesmotempo uma repentina tempestade de vento e aguaceiros, que nosatira para apertados estreitos; o navio era arrastado sulcando areiase, por causa dos frequentes solavancos, temiamos que se fizessetodo em pedaços.
Entretanto, levados para um lugar baixo e inclinando-se a embarcaçãotoda para um lado, lembrámo-nos de implorar o socorro divino,expondo as reliquias dos Santos, que comnosco traziamos, elançando ás ondas um Agnus Dei, aplacou-se a tormenta; caimosem um pégo mais fundo, onde, deitando-se a cada passo a ancora ecolocado o leme em seu lugar proprio com pequeno trabalho e comgrande admiração de todos nós, esperavamos ficar tranquilos até oromper da aurora. Era um lugar fechado de todas as partes porcachopos e monticulos de areia e sómente para o lado da prôa haviauma estreita saida; quando no entanto se começava a descansar,eis que tudo se perturba na ameaçadora escuridão da noite, os ventossopram com violencia do Sul, caem imensos aguaceiros, e, revolvidoem todos os sentidos, o mar abalava violentamente a embarcação, [Página 14]
extrema ferocidade, o que, conquanto possa ser comprovado pormuitos fatos, que sucessivamente e de quando em quando se dão,bastará referir dois ou três para mostrá-lo.A´ beira de um rio; estando alguns Cristãos descansando uma noiteem pequenas cabanas, dormia um lndio debaixo da cama, ou antesna rêde de um, que aqui se suspende sustentada por duas cordas;eis que sobrevem um tigre alta noite e agarrando-o por uma perna,que por acaso tinha estendida, arrebatou-o, não podendo a multidãoque ali se achava reunida, arrancar-lho das garras e dos dentes; oque aconteceu com muitos outros, que as mesmas onças arrebatamno primeiro sono do meio de muita gente; dêste fato poderiam serapresentados muitos testemunhos.Quarenta homens armados de balas, arcos e lanças, tencionandomatar um tigre que tinha feito muitos estragos trucidando com grandeferocidade e devorando a muitos, a féra, não se temendo de tãogrande fôrça de homens armados, acometeu a um deles, e matá-loia com as unhas enterradas pela cabeça e pelo peito, se dirigidacom a ajuda do Senhor ao coração, uma flecha não a tivesse deitadopor terra.Passando dois Indios por um caminho perto de Piratininga por ondesempre vamos e voltamos, saiu-lhes ao encontro uma pantera einvestiu contra ambos; um dos homens fugiu, o outro, repilindo osimpetos da féra, combateu valorosamente não só com flechas, mastambem com a agilidade do corpo, até que trepou em uma árvore,porém nem mesmo êste meio é bastante seguro contra tais féras,pois são dotadas de grande destreza; esta ficou junto da árvore, vendose achava alguma subida; labutou toda a noite (porque isso se passouquasi ao entrar do sol), e bramiu, até que, subindo á árvore, ou derribouo homem, ou ele mesmo cansado de tão grande luta e cheio depavor, caiu. Em baixo era um lugar alagadiço, coberto de lôdo, noqual ele ao cair afogou-se, de maneira que não pôde ser apanhadopela féra, a qual gastou debalde o resto da noite em diligências paratirá-lo dali; afinal cansada, deitou-se. Ao amanhecer, chegando osoutros, que já tinham vindo inutilmente na vespera em auxílio do [Página 23]
Até nas pedras se encontra o que admirar e com que exaltar aonipotencia do supremo e otimo Deus, maximè em uma que serveparaafiar espadas; mas tem isto de maravilhoso, que qualquer parte delaque tocares em as mãos se torna flexivel como o couro e a moveráscomo cousa apertada por um nó, de maneira que não parece umapedra só, mas sim muitas reunidas por diversas juntas (75).
Encontram-se em certo rio habitado pelos inimigos, a umas 50 milhas de Piratininga, muitas conchas, nas quais se criam certas pedrinhas transparentes, que querem sejam perolas: têm o tamanho do grão de bico e algumas maiores.
Isto é quanto me ocorre dizer das árvores, plantas e pedras.Acrescentarei agora poucas palavras acêrca dos espectros noturnosou antes demonios com que costumam os Indios aterrar-se.
É cousa sabida e pela bôca de todos corre que ha certos demonios, a que os Brasis chamam corupira, que acometem aos Indios muitas vezes no mato, dão-lhes de açoites, machucam-os e matam-os. São testemunhas disto os nossos Irmãos, que viram algumas vezes os mortos por eles. Por isso, costumam os Indios deixar em certo caminho, que por asperas brenhas vai ter ao interior das terras, no cume da mais alta montanha, quando por cá passam, penas de aves, abanadores, flechas e outras cousas semelhantes como uma especiede oblação, rogando fervorosamente aos curupiras que não lhes façammal (76).
Ha tambem nos rios outros fantasmas, a que chamam Igpupiára (77), isto é, que moram n’agua, que matam do mesmo aos Indios. Não longe de nós ha um rio habitado por Cristãos, o que os Indios atravessavam outrora em pequenas canôas, que fazem de um só tronco ou de cortiça, onde eram muitas vezes afogados por eles, antes que os Cristãos para lá fossem.
Ha tambem outros, maximè nas praias, que vivem a maior parte dotempo junto do mar e dos rios, e são chamados baetatá (78), quequer dizer “cousa de fogo”, o que é o mesmo como se dissesse “o que é todo fogo”. Não se vê outra cousa senão facho cintilantecorrendo daqui para ali; acomete rapidamente os Indios e mata-os,como os curupiras: o que seja isto, ainda não se sabe com certeza.Ha tambem outros espectros do mesmo modo pavorosos, que nãosó assaltam os Indios, como lhes causam dano; o que não admira,quando por êstes e outros meios semelhantes, que longo fôraenumerar, quer o demonio tornar-se formidavel a êstes Brasis, quenão conhecem a Deus, e exercer contra eles tão cruel tirania.Dêstes Brasis direi, em último lugar, que quasi nenhum se encontraentre eles afetado de deformidade alguma natural; acha-se raramenteum cego, um surdo, um mudo ou um coxo, nenhum nascido fóra detempo (79). Todavia, ha pouco tempo, em uma aldeia de Indios, auma ou duas milhas de Piratininga, nasceu uma criancinha, ou antesum monstro, cujo nariz se estendia até ao queixo, tinha a bôca abaixodêste, os peitos e as costas semelhantes ao lagarto aquatico, cobertasde horrendas escamas as partes genitais perto dos rins; a qual seupai, assim que nasceu, fez enterrar viva. A esta morte condenamtambem os que suspeitam terem sido concebidos em adulterio.Não é talvez menos para admirar o ter nascido em Piratininga umporco hermafrodita que, segundo creio, ainda está vivo.Narrei essas cousas brevemente, como pude, posto que não duvidesque haja muitas outras dignas de menção, que são desconhecidasa nós, ainda aqui pouco praticos. Rogamos entretanto aos que achemprazer em ler e ouvir estas cousas, queiram tomar o trabalho de orarpor nós e pela conversão dêste país.Escrito em São Vicente, que é a última povoação dos Portugueses na IndiaBrasilica voltada para o Sul, no ano do Senhor 1560, no fim do mês de Maio.O minimo da Companhia de Jesus. [Páginas 34 e 35]
(05) Boi-marinho é o peixe-boi, sirenio da familia dos Triquequideos, de que ha duasespecies brasileiras. Chamado pelos indios iguaraguá (Anch.), goáragoá (G. Soares,,Trat.,ed. 1879, p. 257), goáraguá ou guarabá (Varnhagen, notal 203 a G. Soares), R.Garcia declara melhor “guaraguá, que se traduz por guára-guára, come-come, comilão,ou ainda por yguá-riguá, morador em enseadas”(nota a F. Cardim, Trat., p. 136). Osportugueses da Africa Oriental o conhecem por peixe-mulher, segundo Lara Ordoñez (l.C.). - Observação de Oliverio Mario: “A especie referida por Anchieta é indubitavelmenteTrichechus manatus Lin., 1758, peculiar ao litoral atlantico da America Meridional e ásAntilhas. Uma especie vizinha (Manatus inunguis Matterer) vive nas bacias do Orenocoe do Amazonas, ao passo que as costas e grandes rios da Africa Occidental sãofrequentadas por uma outra (Manatus senegalensis Desmarest). No Oceano Indico enas costas da Africa Oriental encontram-se duas especies pertencentes a um generoafim; a alguma delas (talvez Helicore dugung Erxleben), senão a ambas, aplicar-se-á oapelido dado pelos portugueses, segundo Lara Ordoñez”.
(06) Da Baía, em outubro de 1553, partiram para São Vicente, com escala pelo Espirito Santo, os padres Leonardo Nunes, Vicente Rodrigues e Braz Lourenço com os irmãos José de Anchieta, Gregorio Serrão e (segundo é corrente) um terceiro, cujo nome se ignora. Anchieta, entretanto, diz “eu e quatro irmãos”. É assim muito provavel que fossem realmente cinco os jesuitas que embarcaram na Baía, e não seis, como pretende S. de Vasconcelos (o. c., 1. 1, n. 143). Com a tempestade, que na noite de 20 para 21 de novembro surpreendeu a missão nos Abrolhos, a embarcação de Anchieta ficou bastante danificada e a de Leonardo Nunes inteiramente perdida. É esse o sucesso que Anchieta narra.
(07) Piraiquê, “corr. Pirá-ikê, o peixe entra. Designa o estuario ou esteiro aonde o peixeentra para a desova ou para comer. Alt. Piraquê, Perequê, S. Paulo”(T. Sampaio, O tupina Geogr. Nac., 3ª ed.). - Observação de Oliverio Mario: “Piraiquê é nome cuja tradiçãodir-se-á perdida na linguagem vulgar. Não existe até, ao que parece, nenhum vocábulopara designar na fala usual o curioso fenomeno da entrada dos cardumes de peixespotamotocos (assim são chamados os peixes marinhos que desovam nos rios) peloestuario dos rios acima. No número dêstes peixes contam-se no Brasil, com os seusmais importantes representantes do ponto de vista economico, as tainhas e curimãs, deque ha muitas especies: Mugil brasiliensis Agassiz, M. abbula (? - M. cephalus), M.incilis Hancock, M. curema Cuv. & Va., etc. A êstes peixes se referirá com todaprobabilidade o trecho de Anchieta. A observação do jesuita sôbre o tino admiravel deproteção e de defesa posto em prática pelos peixes no ato de procurarem lugar adequadoá desova, em que pese a maneira antropomorfica por que é narrada e interpretada,conta forçosamente algum apoio na realidade, pois é sabido que os animais, aindaaqueles cujo psiquico se nos mostra mais embotado e rudimentar, frequentemente nosmaravilham pela clarividencia dos seus instintos relacionados com a procreação”. - Aprocura “de aguas salobras ou mesmo perfeitamente doces” para a desova, justifica-se“em determinadas especies, porque, dadas as exigencias biologicas, acham nos riosmeio tranquilo e farto de alimentação para a futura prole”, sendo de notar que muitas“permanecem nos rios litoreaneos indefinidamente” e outras, “logo após os meses deprocreação, voltam para o mar” (A. Couto de Magalhães, o. c., páginas 66-7).(08) Timbó, da familia das Sapindaceas (Paulinia pinnata L.). O nome tupi é de dificilexplicação, segundo, R. Garcia (nota a F. Cardim, p. 135). - Ao sumo “extraido de cipósbatidos para matar o peixe nos rios e lagoas”, chamavam os indios tingui (T. Sampaio, o. c.). [Página 37]