Existe uma velha casa Perto da linha Fepasa Antiga Sorocabana Lembrança que ainda resta De quem foi o rei das festas Das noites interioranas Era ele um trovador Renomado cantador De versos improvisados Por esse interior afora Muita gente ainda chora O Parafuso afamado Vivia aquele negrinho Rodeado de carinho Todos lhe queriam bem Quando o povo lhe cercava Parafuso não negava Um sorriso pra ninguém No lugar que ele cantava O povão aglomerava Para ouvir seu repente Além de bom repentista Era também humorista Divertia toda gente Na cidade ou na fazenda Onde houvesse uma contenda Era sempre convidado Das pousadas do divino Velhos moços e meninos Amanheciam acordados Tietê, Capivari Sorocaba, Tatuí Laranjal, Botucatu Em qualquer localidade Era ele na verdade O Pelé do cururu Depois de tantas viagem Tantas noites na friagem Parafuso adoeceu Nem mesmo estando doente Ele cantava contente E nunca se retrocedeu Mais um dia eu me lembro Naquele 2 de dezembro A sua hora chegou A região toda chorava Quando o rádio anunciava A morte do cantador Naquela tarde chuvosa Uma multidão chorosa Cabisbaixa e contristada Carregava seu artista O maior dos repentista Pra derradeira morada No mundo tudo se acaba A linda Piracicaba Perdeu mais um trovador O negrinho idolatrado Que também foi convocado Pra seleção do senhor
Essa parte inferior que era "coisa", porque escrava, ou que era tratada como bicho, como nós tratamos gente camponesa, a gente que está por baixo, a gente miserável, essa gente que estava por baixo, foi despossuída da capacidade de ver, de entender o mundo. Porque se criou uma cultura erudita dos sábios, e se passou a chamar cultura vulgar a cultura que há nessa massa de gente. Darcy Ribeiro (1922-1997)*
1840
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“Os nossos tupinambás muito se admiram dos franceses e outros estrangeiros se darem ao trabalho de ir buscar o seu arabutan [pau-brasil]. Uma vez um velho perguntou-me: Por que vindes vós outros, maírs e perôs (franceses e portugueses) buscar lenha de tão longe para vos aquecer? Não tendes madeira em vossa terra ? Respondi que tínhamos muita mas não daquela qualidade, e que não a queimávamos, como ele o supunha, mas dela extraíamos tinta para tingir, tal qual o faziam eles com os seus cordões de algodão e suas plumas.
Retrucou o velho imediatamente: e porventura precisais de muito? Sim, respondi-lhe, pois no nosso país existem negociantes que possuem mais panos, facas, tesouras, espelhos e outras mercadorias do que podeis imaginar e um só deles compra todo o pau-brasil com que muitos navios voltam carregados. — Ah! retrucou o selvagem, tu me contas maravilhas, acrescentando depois de bem compreender o que eu lhe dissera: mas esse homem tão rico de que me falas não morre? — Sim, disse eu, morre como os outros. Mas os selvagens são grandes discursadores e costumam ir em qualquer assunto até o fim, por isso perguntou-me de novo: e quando morrem para quem fica o que deixam? — Para seus filhos se os têm, respondi; na falta destes para os irmãos ou parentes mais próximos. — Na verdade, continuou o velho, que, como vereis, não era nenhum tolo, agora vejo que vós outros maírs sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também ? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois da nossa morte a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados.