Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011
1 de julho de 2011, sexta-feira Atualizado em 20/07/2025 03:15:18
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A discussão sobre João Ramalho no IHGSP: construção da memória e leitura documentalRAFAEL CESAR SCABIN*Na passagem do século XIX para o XX, as atividades do recém fundado (1894) Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP) representavam a tentativa de construção de uma História do Brasil por um viés paulista, justificando com um passado glorioso e altivo a crescente influência da elite cafeeira no cenário nacional(FERRETTI; CAPELATO, 1999; BLAJ, 2000). No interior dessa produção intelectual, tornou-se emblemática a discussão sobre a figura de João Ramalho, considerado o patriarca dos paulistas1. A presente exposição tem por objetivo analisar os pressupostos metodológicos utilizados no interior desse debate, especialmente a maneira como se abordavam as fontes disponíveis. Dar-se-á maior destaque à utilização que esses autores fizeram das cartas jesuíticas, documentação que utilizamos em nossa pesquisa de mestrado (em andamento), da qual se desprende o tema aqui abordado. A produção do IHGSP estava ligada a um uso político da História de maneira intensa e atuante2. Dessa forma, uma análise da metodologia presente nesses trabalhos ajuda-nos a compreender melhor de que forma a fabricação de tradições e identidades influencia no conhecimento do passado.
A discussão sobre João Ramalho no IHGSP teve início com a formação de uma comissão que buscava responder a uma indagação levantada no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), pelo consócio José Luis Alves na reunião de 3 de março de 1899 (FERRETTI; CAPELATO, 1999: 2-3; RIHGB, 1900: 285-6). Enquanto a proposta teve pouca repercussão no próprio IHGB, os paulistas acolheram o tema e deram início a um debate acalorado.
A indagação em questão referia-se à veracidade do testamento de João Ramalho, documento citado pelo monge beneditino Frei Gaspar da Madre de Deus no século XVIII e que não havia sido encontrado por nenhum outro historiador até então. Propôs José Luis Alves que se lançassem os historiadores à caça desse documento, do qual deveria haver “copia na Bibliotheca do mosteiro S. Bento de S. Paulo ou de Santos”, além de procurar averiguar o caso com a documentação do tempo. (RIHGB, 1900: 286)
A polêmica envolvendo o testamento de João Ramalho dizia respeito à controversa conclusão que dele tirava Frei Gaspar: o patriarca dos paulistas teria chegado ao Brasil por volta de 1490, antes da frota de Cabral, e antes mesmo de Cristóvão Colombo chegar à América. Tal conclusão estava presente no manuscrito “Notícia dos anos em que se descobriu o Brasil e das entradas das religiões e suas fundações”, terminado em 1784 e publicado postumamente pelo instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1840. Essa afirmação valeu ao monge pesadas críticas de Candido Mendes de Almeida que o acusava de criador de fábulas e falsificador de documentos (RIHGB, 1877: 277, ss.).
A discussão que se desenvolveu no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, a partir de 1902, não buscou reafirmar a primazia de João Ramalho sobre Cabral no descobrimento. De fato, nem os detratores do guarda-mor do campo, nem seus partidários, iriam questionar em momento algum que o primeiro a chegar ao Brasil havia sido Pedro Álvares Cabral. O debate concentrou-se em alguns aspectos da vida de João Ramalho, buscando apresentá-lo ora como um herói modelo da paulistanidade, ora com um violento e analfabeto apresador de índios. Uma vez que a documentação sobre o andreense era escassa, consistindo em pouquíssimas citações dos cronistas (as atas da Câmara de Santo André permaneciam não transcritas), era importante defender a credibilidade de Frei Gaspar, o primeiro a tratar sistematicamente do personagem e apresentá-lo de maneira positiva. Sendo assim, ainda que os defensores de Ramalho admitissem que o beneditino houvesse errado a data de chegada do futuro guarda-mor do campo, procuravam afastar a imagem de falseador da História que rondava Frei Gaspar, com vistas a não invalidar seu trabalho como um todo. [p.]
A corrente ramalhista iria insistir principalmente na parcialidade da documentação jesuítica. Uma vez que o alcaide-mor de Santo André e os inacianos de Piratininga viviam em conflito no planalto, toda informação negativa sobre Ramalho era considerada fruto do partidarismo, ainda que se tratasse de testemunho coevo. Com maior empenho, atacaram a crônica de Simão de Vasconcelos, tido também como parcial, com o agravante de não ser uma testemunha direta do que narrava3. Campos Andrade chega mesmo a classificar sua crônica de “fabulosa e suspeita” dando como justificativa não apenas a existência de passagens de caráter fabuloso – como gigantes e amazonas – mas até mesmo o uso de metáforas que entendia como típicas desse gênero literário, como: “são vistos darem-se as mãos dois rios em uma lagôa famosa...” e “as nações que habitavam a circunferência do rio... não podiam contal-as, não só pelosdedos das mãos e dos pés ... mas nem ainda com os seixos da praia” (RIHGSP, 1902:380).
A comissão eleita pelo instituto em 1902 compunha-se de Teodoro Sampaio, Orville Derby, Antonio de Toledo Piza, João Mendes Junior e Manuel Pereira Guimarães. Buscava, inicialmente, emitir um parecer sobre o analfabetismo de João Ramalho (TAUNAY, 1953: 95). A comissão chegou à conclusão de que o alcaide-mor era analfabeto e, provavelmente, judeu; conclusão que partiu de uma análise grafológicadas assinaturas de Ramalho presentes no que restavam das atas da Câmara de Santo André da Borda do Campo. Subscreveram ao parecer, que teve Teodoro Sampaio como relator, todos os membros da comissão, com exceção de Pereira Guimarães, que publicou parecer em separado nas páginas de O Estado de São Paulo de 20 de julho de 1902 (FERRETTI; CAPELATO, 1999: 11).
Em relação ao analfabetismo do “patriarca dos paulistas”, já apontadoanteriormente por Varnhagen (RIHGSP, 1904, p.448), a comissão justificava sua posição afirmando que ele não sabia escrever seu próprio nome, uma vez que a grafia diferia muito entre as assinaturas encontradas, o que sugeriria terem sido feitas por pessoas diferentes, que completavam o sinal por Ramalho grafado (o “c” invertido e, segundo alguns, em forma de ferradura). (FERRETTI; CAPELATO, 1999: 10; 3 Afirmam FERRETTI e CAPELATO (1999, p. 9) que “este autor, se [p. 3]
TAUNAY, 1953: 95). Argumentaram os Ramalhistas a favor da improbabilidade do analfabetismo, ou da sua pouca relevância (RIHGSP, 1904: 448).
O “c” invertido encontrado nas assinaturas de Ramalho levou a comissão do IHGSP a identificá-lo como judeu, visto que ao invés da cruz, presente nas demais assinaturas, encontraram o referido sinal, reconhecido como o kàf – letra simbólica do alfabeto hebraico. O sinal será também associado pelos defensores do andreense a um símbolo maçônico, elmo de cavaleiro (sinal de nobreza), rabisco arbitrário ou símbolo do cargo que ocupava (RIHGSP, 1902: 424). Eram sustentadas essas afirmações por conjecturas as mais diversas, que não contavam com outra base documental direta senãoa própria assinatura4. Argumentaram também os ramalhistas que caso se confirmasse o judaísmo do “patriarca”, isso em nada afetaria sua imagem positiva (RIHGSP, 1904:445-6); afirmação que, ao se fazer necessária, acaba por revelar o caráter negativo que a classificação de judeu poderia adquirir na construção de um herói da nacionalidade.
Não somente aos supostos analfabetismo, judaísmo e uma possível condição de degredado referiu-se o debate. O parecer da comissão, além das conclusões tiradas das assinaturas, reafirmou a avaliação que do andreense fez o jesuíta Simão de Vasconcelos, em sua “Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil” (1663), na qual descrevia João Ramalho como “homem por graves crimes infames, e actualmente escommungado” (VASCONCELOS, 1865: 47), frase que seria repetida em praticamente todos os textos do debate, e sempre refutada pelos ramalhistas. Outra passagem da crônica que seria retomada com freqüência é a que apresenta o alcaide-mor como “homem rico da terra, mas infame nos vicios, amancebado publico por quasi quarenta annos” (IBIDEM: 75).[p. 4]
Outro esforço empreendido pelos partidários de Ramalho foi o de afastar a narração presente nas cartas jesuíticas do século XVI daquela presente na crônica posterior de Vasconcelos. Afirma Gomes Ribeiro:
“Como explicar-se ainda não constarem tão tremendas accusações a Ramalho, nominalmente, de nenhuma das cartas dos padres Nóbrega, Anchieta, Leonardo Nunes, Balthazar Fernandes, e outros, abrangendo o periodo de 1549 a 1568 (...).” (RIHGSP, 1904, p. 425)
Não faz Gomes Ribeiro, contudo, uma análise mais pormenorizada do conteúdo dessas cartas. Mais detido é o esforço de Francisco de Campos Andrade, que contrapõe à crônica do padre Simão uma carta de José de Anchieta de 1554, buscando mostrar que, apesar de narrarem os mesmos acontecimentos e, à primeira vista, concordarem, apresentavam diferenças sutis, que demonstrariam o quanto foi desfigurado o relato mais fiel de Anchieta (RIHGSP, 1902, p. 389-90). Em suas palavras:
“(...) si, para o chronista, os mamelucos de Santo André, os filhos de Ramalho, são „peiores fructos de uma arvore ruim, uma caterva de filhos de má casta, mamelucos illegitimos e desalmados", para Anchieta, que os conhecia de visu, eram „CHRISTÃOS nascidos de pae portuguez e de mãe brasilica. Si, aquelle dá a entender vagamente, insinua aéreamente que o portuguez abusava da polygamia, e os filhos eram pagãos, este, mais digno de credito, mais authentico, diz que os filhos eram christãos, nascidos de uma só mãe” (IBIDEM, p. 390, grifos do autor)
Essa argumentação não resistiria a uma leitura sistemática das cartas de Anchieta, ou mesmo a uma análise mais detida dessa única carta, visto que mais adianteé afirmado o concubinato de Ramalho que o autor diz ser omitido pelo jesuíta (LEITE, 1954: 115). O consócio do IHGSP consultou o que na verdade tratava-se de um resumo de duas cartas de Anchieta7, que foram publicadas na íntegra somente na coletânea de Serafim Leite (1954, cartas 22 e 32).[p. 16]
O que vemos nas duas cartas (uma de setembro de 1554 e outra de março de 1555) é uma descrição de João Ramalho e seus filhos bastante. negativa, muito diferente de quanto apresenta Campos Andrade em sua contraposição. De fato, Anchieta os identifica como “cristãos nascidos de pai português [J. Ramalho] e mãe brasílica”, mas ainda no mesmo parágrafo os apresenta como “exemplo duma nefanda e abominável depravação” para os indígenas (IBIDEM, p. 114-5). É ainda nessa carta que se descreve a adoção dos “costumes dos gentios” por parte dos filhos do andreense:
“(...) tendo um destes cristãos trazido um cativo, entregou a um irmão dele para o matar. E matou-o de facto com a maior crueldade, tingindo as próprias pernas de vermelho e tomando o nome de quem matara em sinal de honra, como é costume dos gentios (...) E são cristãos, nascidos de pai cristão, que sendo espinho não pode produzir uvas” (IBIDEM, p. 115).
Tampouco se considerou o uso da palavra cristão nessa documentação, que não significaria, como se vê no trecho citado, uma adjetivação da fé e de práticas religiosas e morais. A palavra cristão era indistintamente utilizada pelos missivistas como contraposição a gentio, referindo-se genericamente aos portugueses (ou outros europeus em alguns casos) sem qualquer valor descritivo que não o de indicar a origem; poderia, por outro lado, adjetivar a prática também dos gentios, quando se contrapunham os batizados e os não batizados. Para compreender essa polissemia, deveria o autor levar em conta o procedimento de leitura e escrita da época. O que percebemos nessa historiografia, entretanto, é uma metodologia de leitura das fontes que procurava enquadrar a escrita do século XVI no rigor conceitual da “cientificidade” metódica.O que nos interessa aqui não é desconstruir cada utilização das cartas que se fez no debate do IHGSP (poderíamos elencar diversos outros exemplos). Mais importante é considerar como a leitura que se fazia era aleatória, retirando fragmentariamente as informações desejadas e desconsiderando a totalidade da carta e sua relação contextual e intertextual, completando as lacunas temerariamente com especulações diversas. Veja-se, como um dos muitos exemplos, nesse mesmo texto de Francisco de Campos Andrade, a conjectura que faz o autor para refutar as afirmações de uma carta do padre Balthazar Fernandes, de 22 de abril de 1568: [p. 7]
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