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Forjando "Máquina Grande" nos sertões do Atlântico:
01/01/2020
Créditos/Fonte: FRANCIELY DA LUZ OLIVEIRA
UMA REAL FÁBRICA DE FERRO NO MORRO DO ARAÇOIABA, 1597-1810. Página 38

intimamente relacionadas com a conquista do planalto paulista, com as incursões coloniais aossertões e concomitantes com as guerras de apresamento dos grupos nativos. Não por acaso, nosarredores desse local, a Vila de Sorocaba seria fundada, passando a funcionar como pontoestratégico de acesso ao extremo oeste da Capitania de São Vicente para as incursões dosbandeirantes.Nesse sentido, não há como se pensar as primeiras explorações das minas de ferroapartadas de toda essa dinâmica. É imprescindível observarmos os meandros que perpassam ahistória indígena, responsáveis por modificar e (re)definir os projetos coloniais. A região doAraçoiaba, desse modo, não era um espaço vazio e isolado de uma conjuntura histórica marcadapelas relações luso-indígenas. Tampouco era livremente disposto aos planos coloniais.Quando observado em uma longa duração, é possível perceber que a ocupação etransformação desse local ocorreram a partir da expropriação das terras indígenas. O ápicedessas mudanças foi marcado pela construção do distrito de Ipanema ao largo do século XIX.Terras e força de trabalho nativa, e posteriormente também a mão de obra de origem africana,foram desde o início substanciais para os sucessivos planos de transformação do minério deferro em objetos acabados e semiacabados. Além disso, saberes diversos dos indígenas eafricanos em diáspora foram utilizados nas inúmeras tentativas de se construir uma “máquinagrande” de produzir ferro pelos sertões. As circunstâncias locais, como veremos, sempre tiveram um peso maior naequação dos projetos coloniais. Sendo assim, é imperativo que a história da conquista e tomadado morro de Araçoiaba também seja contada a partir de uma perspectiva que tenha como focoquestões que atravessaram os povos dessa porção das Américas.Em função dessas questões, este capítulo tem como objetivo demonstrar como ahistória e a presença indígena estão no centro das dinâmicas sociais, políticas e econômicas queenvolveram os primeiros projetos de exploração do minério de ferro na Capitania de SãoVicente, a partir do final do século XVI e ao largo do século XVII. Entender esses processosnos possibilita apreender os elementos socio-históricos e as configurações locais que ajudaramna viabilização dos projetos que culminariam na construção da Fábrica de Ipanema, noalvorecer do século XIX.John Monteiro pontua a necessidade de nos livrarmos de um enquadramento queenxerga os povos indígenas como vítimas. Mais que isso, cabe aos historiadores aresponsabilidade de repensar as relações coloniais sob o prisma de uma população que deixoupoucos registros escritos. [p. 34]

[...] Por um lado, cabe ao historiador recuperar o papel histórico de atoresnativos na formação das sociedades e culturas do continente, revertendo oquadro hoje prevalecente, marcado pela omissão ou, na melhor das hipóteses,por uma visão simpática aos índios, mas que os enquadra como vítimas depoderosos processos externos à sua realidade. Afinal de contas, conforme bemdestaca, em artigo recente a antropóloga e especialista em história indígenaManuela Carneiro da Cunha, “não é a marcha inelutável e impessoal dahistória que mata os índios: são ações e omissões muito tangíveis, movidaspor interesses concretos”. Por outro, e muito mais complexo, faz-senecessário repensar o significado da história a partir da experiência e damemória de populações que não registraram – ou registraram pouco – seupassado através da escrita.” (Grifo nosso)28Seguindo os lastros deste debate, o capítulo está organizado em quatro momentoshistóricos, que, ao nosso ver, demarcam uma transformação não apenas das terras indígenas,mas também da exploração do espaço das Minas de Ferro do Araçoiaba e do uso da mão deobra indígena e dos seus saberes nessa empreitada colonial.O primeiro momento diz respeito aos arranjos territoriais dos grupos indígenas,anterior ao processo colonizador, na região das atuais terras paulistas. Na sequência, tratamosdo processo de ocupação e estabilização na região serra acima, “porta de entrada” para umsertão, que resultou na formação da Vila de São Paulo.Em seguida, propomo-nos a analisar as relações estabelecidas pelo bandeiranteAfonso Sardinha e seu filho na Vila de São Paulo, a partir do seu amplo acesso a mão de obraindígena. Isso possibilitou seu ingresso aos sertões e o encontro das minas do Araçoiaba,próximas ao principal caminho indígena dos sertões, o Peabiru.Depois, tratamos do debate em torno dos grupos étnicos presentes nas terras doAraçoiaba e na região que daria origem à Vila de Sorocaba, bem como sobre as sucessivastentativas de retomada da exploração de ferro no século XVII.Por fim, abordamos alguns elementos acerca da experiência das populaçõesindígenas e africanas, enquanto “artesãos do planalto paulista”, e suas práticas com o ofício doferro nos distintos espaços dessa sociedade colonial. No entanto, esse assunto será retomadocom maior profundidade no capítulo seguinte.Em todas essas etapas os indígenas se fizeram presentes e tiveram seus saberesacionados através de uma complexa trama social. Como nos adverte a historiadora Patrícia Sampaio, “é preciso recuperar a historicidade de personagens que, através de processosmúltiplos, transformaram o projeto colonial em processo colonial, e isso não é pouco” 29 .As principais fontes acerca dos grupos indígenas da região paulista e do atualEstado brasileiro são oriundas das primeiras interações com os europeus ou de escavaçõesarqueológicas. A despeito das limitações dos registros, algumas informações importantes sobrea ocupação e dinâmica do período anterior aos projetos colonizadores podem ser inferidas30.Manuela Carneiro da Cunha sublinha que o avanço nas pesquisas permite não seincorrer em determinadas armadilhas, sendo uma delas a ilusão de um primitivismo histórico.A noção de “primitivo” foi gestada principalmente a partir da segunda metade do século XIX,funcionando como uma das ramificações e principal base das teorias evolucionistas. Assim, osinúmeros grupos indígenas eram vistos como testemunhos das sociedades ocidentais primitivas,e logo, explica a autora, “condenados a uma eterna infância” 31.No entanto, é preciso admitir a impossibilidade de se fazer justiça à enormecomplexidade dos povos habitantes da região Sudeste do continente americano antes dachegada dos europeus. Tampouco nos cabe aqui o simples exercício de estimar o tamanho dapopulação anterior ao processo de conquista 32. Em vista disso, a proposta desta seção é estabelecer uma espécie de quadro geralque possibilite um entendimento a respeito da complexidade étnica que atravessava as relaçõesdo espaço que, com maior vigor, teria seus depósitos de ferro explorados a partir do séculoXVII 33. A maior finalidade é desnaturalizar alguns pontos de vista que partem do pressuposto de que houve uma assimilação ou submissão total por parte dos indígenas, permeada por umaatitude de caráter passivo 34.[p. 35, 36]

Múltiplos grupos integraram a maioria da população das terras que dizem respeitoà atual configuração geopolítica do Estado de São Paulo. A diversidade dos ameríndios eraenorme, e várias características contribuíram para diferenciar um grupo do outro 35. Seriam elas:os modos de cultivo, a presença da caça e pesca, as concepções cosmológicas perante o mundo,as quais orientavam e ainda orientam suas relações culturais e sociais, e os processos demigração pelo território 36. Dessa maneira, em meio às categorias “índio” e “indígena”, queemergem no bojo das relações coloniais, uma série de experiências sociais foram reduzidas aalguns denominadores comuns 37.No que diz respeito ao sensível tema das fronteiras indígenas, Glória Kok salientaque, no período anterior à chegada dos europeus, elas eram fluídas, acordadas através dos ciclosdos plantios, da caça e da coleta, e marcadas por limites geográficos definidos, conhecidos pelosmembros de cada grupo 38. Ao longo do processo colonizador, no entanto, as fronteiras do [p. 37]

continente americano passaram a ter como significado não mais um limite e domínio territorial,mas principalmente um divisor entre etnias 39.A partir de uma perspectiva etnográfica, havia quatro distintas regiões culturais noEstado de São Paulo do século XVI. Na primeira região, entre a divisa do atual Estado do Riode Janeiro e a baixada santista, a cultura dominante era a Tupi. Ela abrangia também algunslocais do interior, inclusive parte da atual capital paulista. Na segunda região, da qual faziaparte o Vale do Paraíba e a Serra da Mantiqueira, estavam inclusos grupos que não pertenciamà família linguística Tupi-Guarani, como os Puri e os Maromimi. A oeste, numa regiãosucessiva, também havia grupos considerados não-tupis, como os Kaiapós. Por fim, tanto nointerior como no litoral, havia também a proeminência de agrupamentos de grupos de origemGuarani 40. [p. 38]

A segunda região, uma das principais, diz respeito ao atual Vale do Paraíba e àSerra da Mantiqueira. Nela estavam presentes três grupos quando os portugueses aportaram, asaber: os Guaianá, Maromimi e Puri. No interior do atual Estado de São Paulo, os Guaianáhabitavam vários locais. Próximo às cercanias do Piratininga, Vila de São Paulo, uma facçãoimportante desse grupo mantinha estreitas relações com os Tupiniquim. Segundo JohnMonteiro, essa proximidade tem levado alguns autores a pensar que os Guaianá eram membrosda nação Tupiniquim. No entanto, para o autor, é certo que os portugueses consideravam ogrupo como Tapuia (na língua Tupi queria dizer “escravo”). Assim, na segunda metade doséculo XVI, enquanto os moradores repartiam entre si os Tupi que haviam escapado dasepidemias e guerras, os Guaianá eram aldeados pelos jesuítas44.Os Maromimi, também chamados de Guarulhos, habitavam a mesma região que osGuaianá e pertenciam a um tronco linguístico não-Tupi. John Monteiro afirma que há poucasfontes que atestam a organização social desse grupo; no entanto, é sabido que o grupo resistiufortemente ao processo colonizador dos portugueses e à escravização. Apesar disso, juntamentecom os Guaianá, foi um dos primeiros grupos aldeados pelos jesuítas 45.Outro grupo que habitava o Vale do Paraíba eram os Puri. Eles se distinguiam pelasua língua, de difícil compreensão pelos portugueses. No século XVII, alguns deles foramescravizados por fazendeiros da região de Taubaté; contudo, a maioria recuou para a Serra daMantiqueira, mantendo-se com certo grau de autonomia, ao menos até o final do século XVIII46.Os Guaianá também viviam nas regiões mais ao interior, juntamente com as tribosda nação Kayapó Meridional. Este último grupo, tal qual inúmeras nações e povos dasAméricas, foi submetido a condições trágicas. Segundo John Monteiro, há evidências quepermitem pensar que esse grupo era formado por uma nação de guerreiros temidos por44A fim de enfrentar a enorme variedade etnográfica, no século XVI, os europeus buscaram reduzir um enormepanorama social simplesmente em duas categorias: “Tupi” e “Tapuia”. A primeira parte dizia respeito aos gruposdo litoral, desde a região do Maranhão até Santa Catarina, inclusive os grupos de origem Guarani. Já “Tapuias”,definia todos os grupos indígenas de que os europeus não tinham conhecimento. MONTEIRO, John Manuel. Idem,ibidem, p. 19-20. Ver também: MONTEIRO, John Manuel. Tupis, Tapuias e Historiadores, Estudos de HistóriaIndígena e Indigenismo. Tese de livre docência, Campinas - SP, agosto de 2001, cap.8, p.180. Além disso, nasconclusões de VELLOSO, Gustavo, Op. cit., 2018, p.51: “a distância ou a proximidade dos costumes indígenascom relação às características da produção agrícola europeia constituía um importante e básico critério quesubsidiou a definição do tipo de relação a ser travada pelos missionários, colonizadores e viajantes com os diversosgrupos nativos contatados. Sendo assim, entende-se que a trajetória da temática agrícola nos escritos coloniais, àmedida que se aprofundava as relações entre europeus e falantes do Tupi e do Guarani e se expandiam as distanciassociais entre colonos e os grupos de fala Jê, tendeu ao progressivo reconhecimento de formas peculiares de cultivoalimentar entre os primeiros e a recusa em admitir a existência dessa prática entre os demais”.45 MONTEIRO, John Manuel. Vida e Morte do Índio: São Paulo Colonial. In: Índios em São Paulo: resistênciae transfiguração. São Paulo, SP: Yankatu Ed.: Comissão Pro-Indio de São Paulo, c1984, p.24.46 Idem, ibidem, p. 25. [p. 40]

41portugueses e pelos Tupi, mas recusou-se a se submeter aos invasores e recuou mais para o interior. Após dois séculos de sucessivas lutas para manter certa autonomia, inseridos em um contexto de expansão e demanda por ouro no século XVIII, foram cruelmente suplantados enquanto grupo étnico distinto 47Por fim, localizadas ao sul da Capitania de São Vicente estavam várias nações de origem Guarani 48. Eram os chamados Carijós, possivelmente um dos maiores subgrupos, e habitavam a parte meridional da capitania. Sendo grandes agricultores, rapidamente foram notados pelos colonizadores e religiosos. Antes mesmo da fundação oficial da Capitania de São Vicente, já havia um notável tráfico de escravos no litoral sul e, na metade do século XVI, muitos escravos presentes nos engenhos de açúcar de Santos e São Vicente eram de origem Carijó, justamente por conta de algumas de suas habilidades que se sobressaíam ao olhos dos colonizadores 49Todavia, como nos adverte o historiador Gustavo Velloso, esse quadro da configuração étnica do planalto paulista, momentos antes da conquista, não pode ser encarado como algo sólido. Tal panorama tampouco seria representante fiel da situação à época, por tratar-se de uma associação de diversos testemunhos europeus. Assim, muitos registros pouco simbolizam tamanha complexidade social com a qual os europeus se depararam ao aportar no continente americano e os mecanismos categóricos que criaram para entender tal diversidade. Não obstante, o quadro serve como um ponto de partida para pensarmos a respeito das possíveis fronteiras étnicas, sociais, culturais, políticas e linguísticas de cada grupo e suas transformações a partir do contato com os agentes coloniais 5047 Para saber mais sobre a trágica trajetória do grupo dos Kayapó meridionais, grupo de língua Jê que ocupava uma grande faixa territorial na região noroeste da Vila de São Paulo, ver: MONTEIRO, John Manuel. Op cit, 1994, p.63-4.48Tanto a distribuição espacial quanto as características demográficas dos grupos Guarani às vésperas da conquista apresentam problemas de dificil solução. Por um lado, o conjunto das fontes da época projeta uma unidade cultural e linguística abrangente e consistente, mas, por outro, estas mesmas fontes apontam uma intensa fragmentação no que diz respeito à organização política e territorial. Não muito distante do exemplo Tupi, o constante abandono e regeneração de aldeias, o quadro mutável de alianças e hostilidades e as migrações de longa distância mobilizadas por carismáticos profetas são fatores que se contrapõem a qualquer visão monolítica de uma "nação" Guarani. Ao mesmo tempo, conforme lembra oportunamente Bartomeu Melià, as fontes coloniais em si provêm de observações bastante dispersas no tempo e no espaço, pois, tendo, assim, os Guarani sido "descobertos" em épocas e circunstâncias diversas", desde os primeiros encontros no litoral catarinense até a penetração mais concentrada dos jesuítas no século XVII (Melià, 1988:18)". MONTEIRO, John Manuel. Os Guarani e a história do Brasil meridional: séculos XVI- XVII. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.477.49 MONTEIRO, John Manuel. Op cit, 1994, p.37.50 VELLOSO, Gustavo, Op. cit., 2018. p.38-9; ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Op cit, 2013, p.48-9.


Dimensões centro-africanas na história da exploração das minas de Ipanema e na instalação de uma Real Fábrica de Ferro no Morro do Araçoiaba, 1597-1810. Página 39

Por fim, localizadas ao sul da capitania de São Vicente estavam várias nações de origem Guarani. Eram os chamados Carijós, possivelmente um dos maiores subgrupos, e habitavam a parte meridional da capitania.

Sendo grandes ageicultures, rapidamente foram notados pelos colonizadores e religiosos. Antes mesmo da fundação da capitania de São Vicente, já havia um notável tráfico de escravizados no litoral sul e, na metade do século XVI, muitos escravizados presentes nos engenhos de açúcar de Santos e São Vicente eram de origem carijó, justamente por conta de algumas de suas habilidades que sobressaiam aos olhos colonizadores. [Página 41]

1.2. Porta de entrada para os sertões paulistas: as primeiras ocupações na região daserra acimaAnteriormente à chegada massiva dos europeus e da fundação da Vila de São Paulode Piratininga, algumas pessoas dos povos indígenas da Capitania de São Vicente já tinhamconhecimento acerca dos “homens brancos”. No litoral, havia certo tempo as embarcaçõestinham realizado algumas trocas e, por meio dessa dinâmica, lentamente os nativos tomaramconhecimento de uma parte da humanidade até então desconhecida por eles 55.Os sujeitos do grupo Tupi, depois dos primeiros contatos, rapidamente forjaramcategorias a serem inseridas em suas práticas sociais e leituras de mundo. Assim, uma daspalavras que ganhou destaque, utilizada para descrever os europeus, foi “caraíba”. Ela faziaalusão aos pajés, conhecidos também como xamãs. Contudo, com o passar do tempo, aexpressão perdeu seu sentido original, orientada por questões cosmológicas, passando a figurar,inclusive, entre os povos não-Tupi, como sinônimo para a categoria de homem branco 56.Um dos caraíbas mais conhecidos foi João Ramalho, português que ficou no litoralbrasileiro, possivelmente, em 1512. Pouco se sabe sobre sua estadia junto aos povos indígenas.As únicas informações dizem respeito ao acolhimento que ele teve de Tibiriçá, um afamadochefe tupi, e a seu posterior casamento com a filha do líder, Mbicy ou Bartira (Potira). Em 1532,já habituado à língua tupi, atuou como intérprete do grupo indígena, que esteve em contato comos fundadores da Vila de São Vicente. Mesmo assim, ele não deixou de privilegiar os europeusque, instalados no litoral, no final dos anos 1540, já demandavam indígenas como força detrabalho para seus engenhos de açúcar 57.Desse modo, sem demora, a busca e tomada de cativos por meio dos chamados“saltos” fomentava a desestruturação dos grupos indígenas. Os povos tupis logo se tornaram [p. 43]

aliados dos portugueses, pois nas guerras era onde se constituíam os esquemas de alianças, quenem sempre se mostraram estáveis 58.Na fase inicial de ocupação do planalto, João Ramalho foi uma figuraimprescindível. A partir de suas relações com Tibiriçá e outras lideranças indígenas, ele atuoucomo facilitador para a criação dos núcleos coloniais luso-tupis, primeiro da Vila de São Andréda Borda do Campo, em 1553, e posteriormente do Colégio dos Jesuítas, em 1554 59.Esses dois eventos simbolizam o início de um processo permanente de tomada da“porta de entrada ao sertão”, além de um prolongamento maior da circunferência de ação doscolonizadores. Ainda que o número de europeus e missionários fosse escasso e que, a princípio,não significasse uma ameaça aos grupos nativos, numericamente maiores, os projetos deconversão religiosa e exploração dessas pessoas como mão de obra promoveriam umaconfiguração totalmente nova aos grupos étnicos. Somado a isso, havia ainda aspectosbiológicos que impulsionavam a disseminação de doenças entre os povos indígenas 60.Porém, imersos nesse contexto, os indígenas jamais se portaram como ingênuos.Suas lideranças ora buscaram padres, ora colonos, para evitar o cativeiro e continuarem suasatividades guerreiras e, não raro, posicionavam-se contra todos os europeus. A ideia de guerra,sob uma percepção indígena, adquiria outros significados. Armas europeias, inclusive, foramsubstancialmente apropriadas e utilizadas mediante esse novo contexto social 61.58 Idem, ibidem, p. 26 e 28. “Os Tupis do planalto também mantinham relações – ora amistosas, ora hostis – comdiversos outros grupos indígenas que, embora descritos com menos minúcia nos primeiros relatos, passariam adesempenhar um papel significativo na história de São Paulo”. De acordo com Celestino, a partir de 1530, aalternativa dos portugueses foi partir para um processo de escravização em larga escala. Para saber mais sobre esseprocesso, ver: ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Op. cit., 2010, p.42-3.59 Sobre os povos Tupi e sua organização social, nas vésperas do encontro com os europeus, ver: FERNANDES,Florestan, Op. cit., 1963; FAUSTO, Carlos. Fragmentos de história e cultura Tupinambá. In: CUNHA,Manuela Carneiro da. (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992;MONTEIRO, John Manuel, Op. cit., 1994, p.21, 24 e 29- 30.60 Em relação à presença e especificidades dos grupos étnicos, de acordo com John Monteiro: “convenciona-seidentificar como tupiniquim as populações indígenas mais expressivas no Planalto à época do primeiro encontro.No entanto, esse nome étnico diz mais sobre o processo colonial do que sobre a dinâmica sociopolítica vigenteanteriormente ao contato, pois surgiu no bojo dos conflitos entre europeus e indígenas. Os europeus adotaram,desde cedo, a prática de rotular os grupos indígenas como se constituíssem unidades fixas, imutáveis desde sempre.Nas guerras envolvendo portugueses, franceses e vários grupos tupis do litoral, o quadro de alianças impunha umaseparação mais nítida de grupos que, nas palavras de Gabriel Soares de Sousa, não havia ‘entre eles na língua ecostumes mais diferença da que têm os moradores de Lisboa dos da Beira’. Tupinambá, Tobajara, Tamoio,Tememinó, Tupiniquim: as distinções tornaram-se cada vez mais estabelecidas após a chegada dos europeus,porém acabaram sendo projetadas pelos escritores coloniais e pelos historiadores modernos como marcadores derivalidades seculares, de ódios imemoriais”. In: MONTEIRO, John Manuel, 2004, p.23 e p.31; ver também:MONTEIRO, John Manuel. Op. cit., 1994, p.40-1; ver: VELLOSO, Gustavo. Op. cit., 2018 p.71.61Ver: MONTEIRO, John Manuel, Op. cit., 2004, p.30. Para entender mais sobre o processo de alianças entre osgrupos indígenas e europeus, o caso dos Guarani pode ser ilustrativo. Ver: MONTEIRO, John Manuel. Op. cit.,p.1992, p. 483. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhiadas Letras, 1992 [p. 44]

Em 1560, o pequeno núcleo colonial de Santo André da Borda do Campo foiextinguido, e São Paulo de Piratiniga foi elevada a Vila 62. Em consonância com tal situação, ogovernador geral Mem de Sá introduziu no recém-criado vilarejo as “aldeias d’El-Rei”, com aintenção de aldear os indígenas considerados pelos portugueses como “amigos” em locais fixos63.

Assim, organizava-se uma reserva de indígenas que estariam à disposição da Coroa,enquanto súditos e mão de obra, além de guerreiros para a defesa de eventuais ataques de outrosgrupos étnicos e estrangeiros. Aos jesuítas cabia a administração das aldeias, tanto no planotemporal como no espiritual, e a partir de então, inúmeros conflitos foram suscitados comoconsequência de desentendimentos constantes entre religiosos, indígenas, colonos e a Coroaportuguesa. Esses episódios foram frequentes ao longo de todo o processo colonial64. Junto àVila de São Paulo, duas aldeias eram fruto desse projeto: as aldeias de São Miguel e dePinheiros65.

Instalados no planalto, os religiosos rapidamente criaram estratégias para efetivar aconversão dos indígenas 66. A principal tarefa, descrita pelo padre Manoel da Nóbrega como “amais principal ciência para cá mais necessária” era o aprendizado das línguas nativas. Como jáassinalado, a variedade de grupos era enorme tal qual a diversidade linguística. Comoalternativa, os jesuítas organizaram uma política que privilegiou o uso de línguas tupi. Por seramplamente utilizada na costa do Brasil, essa se tornou uma espécie de língua geral e passou aintermediar as relações entre os europeus e os povos indígenas. No caso de São Paulo, mesmoapós o desaparecimento do grupo étnico dos tupis, a “língua geral” (uma mistura de elementos

62 Ver: VELOSSO, Gustavo. Op. cit., 2018, p.69. Sobre a fundação da Vila de São Paulo, ver: SILVA, JaniceTheodoro da; RUIZ, Rafael. São Paulo, de Vila a cidade: a fundação, o poder público e a vida política. In:HISTÓRIA da cidade de São Paulo. Orientação de Alzira Lobo de Arruda Campos. Coorientação de Paula Porta,Antonio Arnoni Prado, Adriano Duarte. São Paulo, SP: Paz e Terra, 2004, Vl.1 p. 89; VILARDAGA, José Carlos.São Paulo no império dos Felipes: conexões na América Meridional (1580-1640). São Paulo, SP: Intermeios,2014, p.95-108.63 Para entender melhor o “clima de guerra” com o qual foi formado as primeiras aldeias e sobre o “sustentáculojesuítico” mediante a política colonial de conversão dos nativos, ver principalmente: MONTEIRO, John Manuel.Op. cit., 1994, p.36-39 e p. 43.64 MOISÉS, Beatriz Perrone. Op cit. In: __________ (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhiadas Letras, 1992; ZERON, Carlos Alberto de Moura Ribeiro. Linha de fé: a companhia de Jesus e a escravidãono processo de formação da sociedade colonial (Brasil, séculos XVI e XVII). São Paulo, SP: Edusp, 2011.65 In: MONTEIRO, John Manuel,Op cit, 2004, p.32-3.66 Idem, ibidem, p.35. “(...) a capacidade dos padres em persuadir os índios a “descerem” do sertão para as missões,encontrava sua contrapartida na capacidade dos mamelucos em persuadir os índios a se fixarem junto àspropriedades dos colonos. (...) já no século XVII, os mamelucos apelariam para outro expediente, segundoacusações dos jesuítas, chegando ao ponto de se vestirem de batinas pretas para ludibriar os pobres índios.”66MONTEIRO, John Manuel. A língua mais usada na Costa do Brasil: Gramáticas, Vocabulários e Catecismos emLínguas Nativas na América Portuguesa. Op. cit., 2001, p.36. [p. 45]

das línguas tupi e português) continuou sendo utilizada oficialmente até o século XVIII, quandofoi extinguida pelas reformas pombalinas 67.A necessidade do domínio das línguas nativas era primordial, pois era precisotraduzir símbolos e aspectos fundamentais da religião católica. Apesar disso, John Monteirodemonstra que os jesuítas claramente perceberam a necessidade de adoção de práticasperformáticas, de cunho indígena, para alcançar algum sucesso. Ainda que algum resultadofosse alcançado nas estratégias de conversão, os religiosos como Nóbrega e Anchietamostravam-se insatisfeitos com certa inconstância por parte dos nativos. Às vezes, elesaceitavam a prática do batismo, mas depois voltavam aos antigos costumes 68.Por mais que houvesse enorme resistência por parte dos povos indígenas, as aldeiastomavam cada vez mais um caráter de assentamentos coloniais. Assim, ficava explícita adiferença entre os sujeitos do “sertão” e aqueles sob domínio religioso, iniciados na doutrinacristã. Todas as aldeias eram amparadas com terras, e antes de reconhecer algum direito aosindígenas, a doação significava uma relação de sujeição. De todo modo, o estabelecimento dasprimeiras aldeias não foi instantâneo. Ele foi marcado por um período de intenso conflito. Porexemplo, as aldeias de Pinheiros e de São Miguel, apesar de terem sido fundadas junto com aVila de São Paulo, só se configuraram territorialmente cerca de 20 anos depois, em 1580 69. Éexplícito que a “porta do sertão” não foi imediatamente descortinada pelos colonizadores.Uma outra característica que impactou a população indígena foi o carátermultiétnico que os aldeamentos adquiriram70. Consoante John Monteiro, havia no início doprocesso de aldeamento uma continuidade no estabelecimento dos grupos étnicos, prevalecendoa presença de povos tupis.

Em seguida, passou a haver progressiva inserção de vários indígenas de origem Guaianá e Carijós, além de outras etnias 71. Esse é o caso de um terceiro aldeamento, que tinha por nome Nossa Senhora da Conceição dos Guarulhos. Formado nos anos de 1580, tinha como característica uma maior mistura étnica em relação aos demais.

Dentre diversos grupos, nele estavam presentes Maromomins (Guarulhos), Guaianás e Ibirabaquiyaras (Caiapós da região sul). De forma semelhante, um quarto assentamento também surgiu, com as mesmas particularidades dos demais: tratava-se da aldeia de Nossa Senhora da Escada, em Barueri, criada no início do século XVII após um “descimento” de um grupo Carijó (Guarani) 72.

A disputa pelo trabalho indígena foi o núcleo de várias controvérsias ao longo do período colonial. Segundo John Monteiro, é possível identificar, nesse contexto, o papel de mediação das lideranças indígenas que, juntamente com os padres jesuítas e com os capitães brancos, controlavam o acesso dos indígenas às aldeias. Em vários casos, os chefes nativos utilizavam seu poder de negociação junto às autoridades coloniais. Quando não havia correspondência quanto às exigências desses últimos, a violência era a principal forma de intimidação 73.

A fim de evitar a negociação com os jesuítas e com as lideranças indígenas para ter acesso à mão de obra nativa, os colonos prontamente buscaram acessá-la por outras vias. Para John Monteiro, “o apresamento direto de índios constituiu, em certo sentido, um prolongamento das guerras que marcaram as primeiras décadas da presença europeia no Planalto”.

Os chefes indígenas também ajudavam os colonos nas “entradas” sertão adentro.Ainda assim, as tentativas de escravização geravam vários atos de resistência 74. Um caso emblemático foi a revolta ocorrida na aldeia de Pinheiros em 1590, um intenso processo de resistência aos mecanismos da escravidão. O episódio é até hoje bastante rememorado pela historiografia. Permeado de reações extremamente violentas por parte dos colonos, ele marca uma fase de ocupação da região, e seus desdobramentos estão conectados com a história das minas de ferro do morro do Araçoiaba 75.

Ao que parece, alguns grupos aldeados em São Miguel e Pinheiros optaram por apoiar os indígenas do sertão, que estavam decididos a expulsar os brancos, colonos europeus.Inesperadamente eles organizaram uma aliança entre populações dos grupos Tupi e Guaianás,junto com os indígenas das aldeias – somavam-se, portanto, à empreitada “gentios” e indígenas cristianizados.

Em 1590, de acordo com a Câmara municipal, ‘se juntaram todas as aldeiasdo sertão desta Capitania’ para rechaçar a presença europeia na região.Naquela ocasião, uma força aliada de Guianá e Tupiniquim assolou uma expedição de cinquenta homens, sob a liderança de Domingos Luís Grou e Antonio Macedo, nas proximidades da futura vila de Mogi das Cruzes. Dando sequência a esta vitória, os aliados indígenas lançaram novos ataques aos sítios portugueses localizados ao longo do rio Pinheiros e, com o apoio dos residentes do aldeamento de Pinheiros, fizeram uma rebelião surpreendente contra o controle europeu da região. Da mesma forma, um ano depois, a oeste da vila, no local denominado Parnaíba, os índios aniquilaram outra expedição escravista no rio Tietê.76

Não há fontes minuciosas sobre todos os eventos, contudo ficou como registro a destruição de uma imagem, a de Nossa Senhora do Rosário, principal símbolo de devoção e subordinação dos aldeados. A atitude nos chama atenção, pois uma série de significados podem ser descortinados a partir dessa reação dos nativos.

Ainda que o conflito tenha sido amenizado, o clima de medo e terror tomou conta dos ânimos dos adventícios por vários anos. A partir de então, uma série de movimentos punitivos foram organizados, os quais, “entre 1590-5, acabou destruindo ou escravizando a população nativa num raio de pelo menos sessenta quilômetros em torno da vila” 77.

Uma figura de proeminência, responsável por liderar árduos ataques contra os grupos indígenas que ameaçavam a estabilidade da Vila de São Paulo, foi o bandeirante Afonso Sardinha, sertanista responsável por encontrar as minas de ferro do Araçoiaba. Instaurava-se, assim, uma verdadeira guerra contra o gentio, com o intuito de completar o processo de conquista do Planalto de Piratininga, iniciado havia quase quarenta anos.

Isto posto, o historiador John Monteiro conclui que ao final do século XVI um primeiro momento das relações luso-indígenas se encerrava no planalto paulista. Nesse período originou-se, por meio da destruição dos grupos indígenas, a ordenação de novas formas de trabalho, as quais, inclusive, foram utilizadas nas explorações das minas de ferro. Com a intenção de aumentar cada vez mais a base produtiva ao longo do século XVII, indígenas de terras remotas eram incorporados pelos paulistas à área planaltina. Um agigantado número de cativos, desgarrados de seus vínculos históricos, chegava para se ocupar das mais diversas atividades. Forjava-se, desse modo, uma sociedade de base agrícola e comercial firmada pela força de trabalho dos nativos, da qual os projetos de exploração de minas de ferro também faziam parte 78. O intuito dessa configuração era abastecer principalmente as demandas materiais geradas pela agricultura.

1.3. Para além da borda atlântica as trilhas do Peabiru: em terras indígenas umas minas de ferro 76 MONTEIRO, John Manuel. Op cit, 1994[p. 46, 47, 48]

A “miúda” Vila de São Paulo estava situada num dos pontos mais íngremes da serra adjacente à principal trilha utilizada pelos Tupiniquim ao longo de seus acessos ao litoral, o Peabiru. O caminho também possibilitava um amplo ingresso ao enorme interior ao sul e a oeste. Não tardou para que os portugueses explorassem a rota. John Monteiro localizou o casode um viajante por nome Francisco Vidal, que em 1553, por exemplo, foi para o Paraguai valendo-se desse trajeto. Quando retornou estava em posse de vinte escravos de origem Guarani 79.

Ao largo da primeira etapa de colonização da América Portuguesa, o sertão era umespaço vasto, desconhecido, de traços imprecisos, situado nas cercanias dos pequenos núcleosde povoamento da administração colonial. No geral, na produção cartográfica da época diziarespeito a territórios que estavam sob o controle dos nativos 80. Como nos esclarece AlidaMetcalf, tinha-se uma noção de que a América em seu estado natural era coberta por:Altas florestas agrestes, habitadas esparsamente por tribos indígenas, cobriama maior parte do sertão. Os rios que nasciam nas serras serpenteavam pelasflorestas e finalmente desaguavam no Oceano Atlântico propiciavam as únicasvias de acesso ao sertão em que se podia confiar.”81No caso paulista, o intenso convívio com os povos da terra, fosse pelas relações deapresamento, escravidão ou pelo estabelecimento de laços de parentesco, possibilitou aquiloque Glória Kok caracteriza como uma “decodificação dos territórios indígenas”. Para ela, aformação de uma “geografia colonial” encontraria raízes na própria noção de espacialidade dosindígenas e na ação dos agentes coloniais, que, norteados por uma observação acurada,possibilitariam o domínio do território americano 82.Muitas técnicas elaboradas e transmitidas pelos indígenas foram fundamentais nas“bandeiras, monções e levas de povoadores para as fronteias, capazes de enfrentar florestastropicais, descampadas, serras íngremes, rios encachoeirados e terrenos pantanosos”. Eramconhecimentos que integravam aquilo que Kok definiu como uma “cartografia indígena”, ou [Página 49]

Em 1590, de acordo com a Câmara municipal, "se juntaram todas as aldeias do sertão desta Capitania" para rechaçar a presença européia na região. Naquela ocasião, uma força aliada de Guianá e Tupiniquim assolou uma expedição de 50 homens, sob a liderança de Domingos Luis Grou e Antonio de Macedo, nas proximidades da futura vila de Mogi das Cruzes. Dando sequência a esta vitória, os aliados nativos lançaram novos ataques aos sítios portugueses localizados ao longo do rio Pinheiros e, com o apoio dos residentes do aldeamento de Pinheiros, fizeram uma rebelião surpreendente contra o controle europeu da região. Da mesma forma, um ano depois, a oeste da vila, no local denominado Parnaíba, os nativos aniquilaram outra expedição escravista no rio Tietê. [p. 48 e 49]

seja, um “acervo de informações espaciais, construído pela memória e enraizado,principalmente, nos sentidos” dos nativos.83O caminho do Peabiru, depois denominado pelos jesuítas como caminho de SãoTomé, foi um dos mais utilizados pelos paulistas e faz parte dessa categoria, que concebemoscomo parte de um “acervo nativo”. Sua rota os conectava aos povos Guarani da bacia doParaguai, bem como às “tribos dos Patos” do litoral de Santa Catarina, com os Carijós de Iguapee Cananeia, além de outros povos de Piratininga e do litoral84. Pelos dados cartográficospodemos observar a dimensão espacial das veredas dessa enorme trilha que ligava uma porçãoimensa do território sul das Américas. [p. 50]

O sertanista Afonso Sardinha, não há dúvidas, utilizou as veredas abertas pelosnativos ao acessar os sertões. Incumbido de “fazer guerra para resguardo e satisfação do seucargo e ofício”, aproveitou-se do motivo para apreender indígenas das regiões longínquas dadensa Mata Atlântica86. Provavelmente em algumas dessas andanças encontrou algunsdepósitos de ferro. As minas de Biraçoiaba ou Araçoiaba, estavam localizadas justamente nasproximidades de um dos trechos do Peabiru que circundavam o morro87.Há uma série de informações esparsas sobre o bandeirante, que geram dúvidasdifíceis de serem esclarecidas. Sabe-se que, apesar de ter-se mudado para a Vila de São Paulo,em 1565, tinha amplos negócios em Santos. Em seu testamento, produzido em 1592, antes departir para a guerra contra os nativos, há descrições sobre seus negócios com Angola,encomendas em Buenos Aires, no Rio de Janeiro e na Bahia. Nas negociações estavam inclusos:escravos da Guiné, tecidos, marmeladas e gentios. Além disso, Afonso Sardinha foi almotacel,vereador e juiz ordinário na Vila de São Paulo. Em 1592, quando foi oficialmente nomeadocapitão da gente de guerra, já tinha um histórico de ascensão social e proeminência nagovernança local88.Nos inventários alçados por Leda Maria Pereira Rodrigues, são descritas uma sériede “peças”, indígenas trazidos pelo bandeirante em contexto de guerra, tal qual o “‘juiz dosórfãos Bernardo de Quadros mandou fazer da fazenda que se achou por morte e falecimento deCatharina de Unhate, mulher de Henrique da Cunha’, a posse do indígena ‘Francisco Pés Largosda Viagem de Afonso Sardinha, avaliado em vinte mil réis, casado com uma Temiminó pornome Maura’”89.No “rol de gente de Afonso Sardinha”, Rodrigues também constatou: “um índio pornome Senhô e sua mulher Teobiry e um filho Caraibaguar... e uma índia por nome Taborata”.Provavelmente, “lhe ‘foram deixadas por forras para dar conta delas e as ocupar no benefíciodas Minas” 90. Neste caso, provavelmente, trava-se não só das minas de ferro, mas do trabalho, [p. 51]

prospecção e exploração de outros metais preciosos, principalmente o ouro. O uso desta mãode obra, não há dúvidas, poderia ter inúmeras serventias ao bandeirante, principalmente devidoaos conhecimentos empíricos que estas pessoas carregavam a respeito das condições físicas dosterritórios e tantos outros saberes imprescindíveis.Em 1606, apesar da idade mais avançada, Afonso Sardinha prosseguia na saga deapressar mais indígenas. O sertanista foi apreendido pelos camaristas da Vila de São Paulo, poisqueria “fazer resgate aos carijós” quando já era do conhecimento que “homem branco enviadoao sertão não regressa mais”. Seus companheiros pediam que ele fosse notificado “sob pena deseis mil cruzados se não viesse prestar contas na Câmara” 91Seu filho, mameluco, bastante rememorado nas narrativas sobre a descoberta doferro na Capitania de São Vicente, também esteve bastante envolvido com a vida sertanista. Em1598, nas atas da câmara, os vereadores fizeram uma queixa contra ele, pois o filho quecarregava o mesmo nome do pai, Afonso Sardinha, “havia ido ao sertão e levou em suacompanhia outros mancebos e mais de cem índios, tinha intenção de ir à guerra e saltos e correre terá com intensão de tirar ouro e outros metais [...].” Não era pouca a monta; certamente ocabedal de cem índios não era acessível a qualquer pessoa.Pelas informações apresentadas, é evidente o poder político dos Sardinhas. Aabundância de indivíduos que geriam, inclusive, foi suficiente para formar um aldeamento, emCarapicuíba. Depois, em 1616, tal propriedade foi transferida como doação aos jesuítas92.Ainda sobre as minas do Araçoiaba, Rodrigues afirma que há uma enorme confusãoem relação à data de sua descoberta, pois há “os metais achados em Biraçoiba há 25 léguas parao sertão e o engenho de ferro a três léguas dessa Vila [de São Paulo], à margem do Geribatuba,no sítio Birapuera”. Ambas, coincidentemente, foram encontradas pelos Sardinhas, pai e filho.No caso das primeiras, a autora, após uma incursão por várias tipologias de registros aindadisponíveis, conclui que foram encontradas por volta de 1597. Nessa data, Afonso Sardinha, opai, esteve ausente, nos sertões, por muito tempo. Além disso, no mesmo período, nãoparticipou de nenhum “ajuntamento” da câmara93.Há poucas fontes sobre o morro de Araçoiaba que trazem detalhes sobre aexploração de ferro no final do século XVI. Um dos únicos documentos escritos carrega os [p. 52]

seguintes dizeres: “e que os moradores os mais deles ajudarão com peças a trazer a cal com oque o dito engenho se fez de Santos para esta vila sem interesse nenhum somente por servirema sua majestade como é notório e Afonso Sardinha fez o engenho a sua custa e sempre deuajuda com sua pessoa e escravos.”94 E, estes últimos sujeitos, certamente, tratavam-se deescravizados indígenas.O trabalho arqueológico realizado na atual Floresta Nacional de Ipanema (FLONAIpanema), no município de Iperó, interior de São Paulo, permitiu avanços significativos noconhecimento acerca das primeiras forjas de ferro95. Nesse município estão localizadas asantigas construções da Real Fábrica de Ferro, tombadas como patrimônio arquitetônico.O sítio arqueológico que leva o nome de Afonso Sardinha foi encontrado no interiorde um vale, chamado de Furnas. Neste local está um ribeirão de ferro que nasce e cruza o morrode Araçoiaba, que, por sua vez, desagua no rio que dá nome à Fábrica: o Ipanema, um afluenteda margem esquerda do rio Sorocaba. As pesquisas indicam que, de fato, no século XVI houvealgumas explorações das jazidas de ferro nesse local. Este é um importante indício que podeser analisado conjuntamente com os registros escritos e proporcionar novas interpretações.Segundo Zequini, o lugar onde se encontram as forjas no sítio arqueológico ofereceas condições ideais para instalação de tal empreendimento, pois todo o conjunto estava muitopróximo da área das jazidas de minério de ferro, junto ao ribeirão, com significativa quantia deágua para uma produção de ferro em pequena escala.96De todo modo, os achados minerais atribuídos aos Sardinhas somaram-se a umasérie de lendas e narrativas, criadas a partir das experiências dos colonizadores, que se fundiamao imaginário indígena. O governador D. Francisco de Sousa, governador geral do Brasil noperíodo de 1591 e 1601, por exemplo, ficou fascinado pela lenda Tupiniquim de Itaberaba-açu,uma suposta serra resplandecente, a qual daria origem ao sonhado Sabaraçu, nome de origemTupi relacionado a montanhas reluzentes e resplandecentes. Para muitos, o local ficava nascabeceiras do rio São Francisco97.A noção de um interior mítico acompanhara os administradores e agentes coloniaisdesde o conhecimento da porção americana do mundo. No caso de América Portuguesa, comopontuado por Sérgio Buarque de Holanda e outros historiadores, a intenção era encontrar uma[p. 53]

54outra Potosí. Vilardarga explica que à época era recorrente o princípio de uma geografia com uma "latitude ampliada", a qual seria favorável à existência de metais no Paraguai e São Vicente, além das regiões africanas como Angola e Moçambique. As iniciativas de exploração mineral, portanto, são simultâneas a outras investidas tanto nas posses portugueses quanto nas áreas castelhanas, no interior de um conjunto de políticas marcadas pela União Ibérica, sob o julgo do rei Felipe II.D. Francisco, imbuido por uma série de mitos, armou em 1596 algumas expedições com origem em São Paulo, Espírito Santo e Bahia, com destino ao Rio São Francisco. Todas elas contavam com um amplo número de indígenas para acessar o território, além da participação dos agentes coloniais. Não houvera nenhum achado de algum metal precioso, principalmente ouro ou prata. No entanto, os que voltaram para São Paulo estavam sob posse de alguns Tupinambás, capturados no vale do Paraíba".Ainda que a questão mítica tenha pesado nas decisões, como sublinha Vilardaga, a nomeação do governador estava enquadrada num campo maior: a Coroa ibérica buscava incrementar o crescimento econômico das áreas de posse portuguesa. Os projetos minerais, desse modo, entraram como pauta principal junto aos planos para defesa da Costa e favorecimento de obras de conversão dos índios pelos jesuítas, além da distribuição de mercês, nomeação de pessoas para oficios diversos e aumento no fluxo atlântico de escravos africanos para a Vila de São Paulo 100Em 1591, D. Francisco chegava à América Portuguesa acompanhado de vinte homens para trabalhar em seu projeto de exploração mineral. Eram mineiros da Alemanha, Espanha e Holanda. Parte deles se fixaria em São Paulo, depois de algumas expedições. Um deles, como veremos, foi Diogo Quadros, “homem que esteve com Francisco ao longo de quase toda sua trajetória e extremamente envolvido com a questão mineral, sobretudo com a fundição do ferro em São Paulo." Ainda que o conjunto de técnicos, mineiros, engenheiros e fundidores fosse vasto, tendo em vista a conjuntura da época, as tentativas de implementar o projeto mineral contaram substancialmente com o trabalho indígena, sem eles poucas projetos seriam possíveis.98 VILARDAGA, José Carlos. Op cit, 2014, p.137; HISTÓRIA geral da civilização brasileira. Coautoria de Boris Fausto, Paulo Sergio Pinheiro (Sob a direção de Sérgio Buarque de Holanda). 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: DIFEL, 1978, p. 236-7.99MONTEIRO, John Manuel. Op cit, 1994, p.59-61.100 VILARDAGA, José Carlos. Op cit, 2014, p.155-6. 101 Idem, ibidem, p.156-7. [p. 54]


IMGSM: 1


Forjando "Máquina Grande" nos sertões do Atlântico:
Data: 01/01/2020
Créditos/Fonte: FRANCIELY DA LUZ OLIVEIRA
UMA REAL FÁBRICA DE FERRO NO MORRO DO ARAÇOIABA, 1597-1810. Página 38


ID: 12421


Forjando "Máquina Grande" nos sertões do Atlântico:
Data: 01/01/2020
Dimensões centro-africanas na história da exploração das minas de Ipanema e na instalação de uma Real Fábrica de Ferro no Morro do Araçoiaba, 1597-1810. Página 39


ID: 12422


Mapa adaptado por Maak
Data: 01/01/2002
Organizado por Ana Paula Colavite. Ver: COLAVITE, Ana Paula; BARROS, Miriam Vizintim Fernandes. Op cit, v.5, p.93, 2009. O artigo traz um estudo acurado acerca das localizações geográficas do extenso caminho do Peabiru. Além disso, por meio do uso de ferramentas georreferenciadas, os autores traçaram as rotas equivalentes às configurações territoriais atuais. O relato mais conhecido acerca do caminho do Peabiru foi feito pelo alemão Ulrich Schimidel, em meados do século XVI, e na década de 1950 foi estudado por Reinhard Maack. Ver: MAACK, R. Sobre o itinerário de Ulrich Schmidel através do Sul do Brasil (1552-1553). Curitiba, PR, 1959


ID: 12432


Forjando "Máquina Grande" nos sertões do Atlântico:
Data: 01/01/2020
Créditos/Fonte: Franciely das Luz Oliveira
Dimensões centro-africanas na história da exploração das minas de Ipanema e na instalação de uma Real Fábrica de Ferro no Morro do Araçoiaba, 1597-1810. Página 52


ID: 12435


Forjando "Máquina Grande" nos sertões do Atlântico:
Data: 01/01/2020
Créditos/Fonte: Franciely das Luz Oliveira
Dimensões centro-africanas na história da exploração das minas de Ipanema e na instalação de uma Real Fábrica de Ferro no Morro do Araçoiaba, 1597-1810. Página 54


ID: 12437





  


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