Por MÁRIO MAESTRI*Prefácio do livro recém-lançado organizado por Emanuel Fragoso e Emiliano Aquino.
Os quatro artigos do livro coletivo coordenado por Emanuel Fragoso e Emiliano Aquino, singularizam-se por diversas razões, entre elas, o respeito ao tema proposto, de indiscutível pertinência; a qualidade e o uso rigoroso do método marxista de análise, por aqueles que dele se serviram, o que é hoje, convenhamos, raro.
A obra se destaca, igualmente, como leitura necessária, ao retomar, alargar e ampliar temas do passado e presente, no geral, não suficientemente iluminados por nossas ciências sociais. É fato também incomum, o rico e valioso diálogo, em parte contraditório, ainda que não explícito, entre os artigos, que se constituem, em geral, como valiosos instrumentos de pesquisa.
Em “Segunda antropologia e governo do gentio em Manuel da Nóbrega”, Emiliano Aquino analisa com argúcia questão espinhosa do período colonial brasileiro: as relações dos jesuítas com os tupis, nos inícios da ocupação colonial. Ou seja, tema diretamente atinente à ocupação do litoral e à dizimação das populações nativas.
Em “Jacob Gorender e o modo de produção escravista colonial – elementos de um debate quase esquecido”, Nilo Sérgio Aragão debruça-se com precisão e coragem sobre O escravismo colonial, a obra seminal do marxista baiano, literalmente cancelada pelas ciências sociais burguesas do Brasil. Explicita a determinação material do despotismo do escravismo colonial e constrói valioso instrumento de trabalho. Um artigo que se destaca pela precisão e necessidade.
Em “Colonialismo, modernidade e decolonialidade”, Francisco Uribam Xavier de Holanda apresenta a crítica, de Anibal Quijano e de seus epígonos, do marxismo como eurocentrismo e a proposta da interpretação da opressão racial, em vez da social, como o “motor da história”.Em “Anticolonialismo, anti-eurocentrismo e acumulação originária de capital em Karl Marx”, apoiando-se no método marxista, Antonio Vieira da Silva Filho desconstrói as acusações de Karl Marx como um pensador eurocentrista, colonialista, imperialista.
1.
Em “Segunda antropologia e governo do gentio em Manuel da Nóbrega”, João Emiliano Fortaleza de Aquino aborda, cuidadoso, a evolução da ação dos jesuítas na obra catequético, “na primeira década de sua atuação no Brasil (1549-1559)”. Para tal, se apoia, com destaque, nas cartas de Manuel da Nóbrega (1517-1570), português de nobre família, que, com 32 anos, chefiou o piquete pioneiro da Companhia de Jesus, que acompanhou a expedição de Tomé de Souza, o primeiro governador-geral do Brasil (1949-1953) [AQUINO, 2025, p. 160.].
Emiliano de Aquino lembra os objetivos da orientação evangelizadora dos jesuítas nas possessões lusitanas do Novo Mundo. Levar os nativos ao conhecimento da verdadeira fé, no espaço espiritual, e à obediência à monarquia portuguesa, no mundo material [AQUINO, 2025, p. 188.] Operação do interesse da Coroa Lusitana e de Roma, que, não raro, tinham interesses divergentes, sem confrontos essenciais.
Diante do avanço muçulmano, o papado entregara, às coroas ibéricas, ampla autoridade sobre a administração religiosa das conquistas e descobertas, sem aquilatar a amplitude das terras e populações em jogo. Procurando recuperar parte do terreno perdido, Roma pontificou que os americanos eram “verdadeiros homens”, merecedores do “domínio de seus bens”. [AQUINO, 2025, p. 168.]
Roma determinou que os americanos não deveriam ser “reduzidos à servidão”, mesmo estando “fora da fé de Cristo”, mas evangelizados e guiados pelo clero. O que contradizia as necessidades dos colonos, sequiosos de nativos escravizados, que produziam suas rendas e as embolsadas pelas coroas ibéricas. [AQUINO, p. 168, 192.]
Nóbrega e seus jesuítas, desembarcados nas costas brasílicas, em pleno ardor missionário, foram viver entre os brasis — sobretudo tupis—, rasgando em suas cartas iniciais, enviadas para a Europa, elogios sobre eles. Emiliano Aquino descreve o abandono, a seguir, de Nóbrega, da conversão dos nativos pelo “amor”, substituída pela ideia da submissão pelo “medo”. [AQUINO, 169 et seq.]
A cristianização da Europa dera-se, comumente, com a conversão de reis e de senhores pagãos e, consequentemente, dos seus súditos reduzidos à obediência. As aldeias tupi-guaranis eram formadas por unidades familiares autônomas. Os brasis deviam ser convencidos, um por um, a aderir a um novo mundo que lhes tirava, quase tudo, oferencendo quase nada. Em 1557, Nóbrega escrevia: “[…] fui entendendo por experiência o pouco que se podia fazer nesta terra na conversão do gentio por falta de não serem sujeitos [a uma autoridade] […].” Gente “servil” que seria submetida pelo “medo”. [AQUINO, 2025, p.170.]
No sul da América, longe das mãos dos encomenderos e escravistas, um punhado de jesuítas aldeou, nos Vinte Povos Missioneiros, milhares de guaranis, ao lhes propiciar avanços sócio-econômicos. Ali, os guaranis corriam atrás dos jesuítas. Na capitania da Bahia, os jesuítas exigiam que os tupinambás, assediados por escravizadores, se tornassem cristãos e súditos portugueses, abandonando usanças enraizadas em suas realidades sócio-econômicas, em troca de nada. Ali, os tupis corriam dos bons padres.
Para os estudiosos João Adolfo Hansen e Paulo Roberto Pereira, a “passagem da pedagogia do amor para a do medo na orientação” catequética ocorrera, respectivamente, em 1556 e 1558. Para Emiliano Aquino, “do ponto de vista teórico, desde o começo, Nóbrega pensa não em uma oposição excludente, mas em uma combinação entre amor e medo”. [AQUINO, p, 170.] Visão dual provável, em um sacerdote, aleitado nas visões colonialistas e absolutistas e supremacistas portuguesas, que carregara consigo quando abraçara, já adulto, a militarizada Companhia de Jesus. Nóbrega jamais teria se afeiçoado aos tupis, sendo incapaz de se comunicar na “língua geral”, até a sua morte.
A carta de 8 de maio de 1558, de Nóbrega, registrou a proposta da violência na submissão plena dos nativos, de desorganização de suas comunidades, da expropriação de suas terras em favor dos colonos, o que permitiria que os lusitanos se esparramassem no litoral e terra adentro, explorando o braço escravizado [AQUINO, 2025, p.190] Os guaranis, que sobrevivessem às campanhas de submissão, viveriam em reduções, sob a supervisão-orientação dos jesuítas e constrição das forças armadas lusitanas.
A terrível proposta de Manuel da Nóbrega foi aplicada peloterceiro-governador geral do Brasil, Mem de Sá, que aportou na capitania da Bahia, em 1558, onde faleceu, em 1575, como um dos mais ricos latifundiários e escravistas da região. Ele despejou as melhores terras do Recôncavo Baiano, como Nóbrega propusera, destruindo mais de cem aldeias e matando e escravizando talvez doze mil tupis.
Em 1553, foi publicado, em Coimbra, De Gestis Mendi de Saa, poema épico de autoria de José de Anchieta, escrito sob a inspiração ou determinação de Nóbrega. O texto apresentava o terrível genocídio tupi como realização de desejo divino. Em 3 de abril de 2014, José de Anchieta foi santificado, pelo papa Francisco, em uma ação de certo modo em proveito próprio indireto, já que o santificador e o santificado eram jesuítas. [MAESTRI, 2013, p. 205 et seq.
2. Em 2011, visitei Jacob Gorender, por última vez, na sua modesta morada, em São Paulo. Com 88 anos, frágil, apresentava problemas de memória. Entristeceu-me ver a mais perfeita máquina de pensar que conheci sendo engolida pelo avanço inexorável da idade. Acompanhou-me na visita Rogério Chaves, da Perseu Abramo, que, com a Expressão Popular, acabavam de publicar uma quinta edição de O Escravismo Colonial.
Na ocasião, Gorender verbalizou que a reedição, de certo modo, o trazia de volta à vida. Havia anos que o livro se esgotara. Desta vez, Gorender errou feio. A bela reedição, hoje em livre acesso na internet, não relançou a discussão sobre a obra magistral. O buraco era mais abaixo.
Em 1988, a celebração do I Centenário da Abolição da Escravatura no Brasil registrou a indiscutível hegemonia das visões patriarcalistas sobre a escravidão brasileira, no geral, repeteco da historiografia conservadora estadunidense. As visões apologéticas de Gilberto Freyre retornavam triunfantes, em múltiplas interpretações.Em 1990, JacobGorenderpublicou A escravidão reabilitada, crítica historiográfica ferina das raízes e dos sentidos político-ideológicos conservadores e social-integracionistas da proposta de uma vida quase feliz dos cativos no Brasil. Em fins daquele ano, sobreveio ataque geral iracundo acadêmico, não ao livro, mas ad hominem, início de uma esmagadora “conspiração de silêncio” sobre a obra e o pensador notável.Posta no Index Librorum Prohibitorum das múltiplas correntes acadêmicas pró-burguesas, a produção de Gorender foi literalmente cancelada, até as raízes. Não foi mais citada em cursos e conferências, em TCCs, nas dissertações, nas teses de doutoramento, na bibliografia de livros gerais e especializados sobre o passado brasileiro. Estudantes de ciências sociais se formaram sem ouvir falar do mestre baiano.O escravismo colonial foi publicado em fins dos anos 1970, quando os trabalhadores emergiram, por alguns anos, como importantes protagonistas político-sociais no Brasil. A partir de crítica categorial-sistemática do passado brasileiro, Gorender propunha a dominância do modo de produção escravista colonial [moderno]e a posição demiúrgica do trabalhador feitorizado no passado, ancestral do trabalhador contemporâneo. O que não avança, retrocede. Em 1991, a URSS esfacelava-se sob a pressão da contra-revolução mundial triunfante, que golpeou, em forma duríssima, objetiva e subjetivamente, o mundo do trabalho. Interpretações do passado a partir da luta de classes tornaram-se mais do que uma obsolescência, uma indecência. Os protagonistas do ataque geral a Gorender foram sicofantas minúsculos cavalgando em forma oportunista e interessada a maré conservadora.Com surpresa e alegria, li o artigo “Jacob Gorender e o modo de produção escravista colonial – elementos de um debate quase esquecido”, de Nilo Sérgio Aragão. O longo texto denota um detido, erudito e sensível estudo da obra magna do pensador baiano e cumpre uma tarefa mais do que necessária, salvo engano meu, não realizada até hoje.Nilo Sérgio Aragão inicia seu artigo destacando a importância de O escravismo colonial. Relata brevemente a biografia de Gorender, sua militância como dirigente no PCB e, após 1964, como fundador do PCBR. Demora-se na apresentação e explicação circunstanciadas das propostas centrais do pensador marxista.Aborda o contexto político-intelectual da época, de esforço de superação da degeneração stalinista do marxismo e de retomada da discussão dos múltiplos modos de produção conhecidos pela humanidade. Discute a gênese da proposta do escravismo colonial, como modo de produção historicamente novo e hegemônico no passado do Brasil, até sua extinção, quando da Abolição, em 1888.Assinala a lembrança de Gorender da determinação dos modos de produção pelas relações de produção e desenvolvimento das forças produtivas materiais. Princípio basilar da epistemologia marxista que o levou a se dissociar das interpretações anteriores dominante, de um passado brasileiro feudal, semi-feudal, exportador, e por ai vai, apesar da hegemonia de relações escravistas de produção. Leitura que superou o impasse posto pelo debate político-ideológico entre um passado feudal e capitalista, não raro, desde a dita descoberta do Brasil.Nilo Sérgio Aragão refere-se, em forma sintética, às leis tendenciais do modo de produção escravista colonial. Destaca O escravismo colonial comoinestimável crítica da historiografia e da história brasileira. Conclui referindo-se ao ataque geral ao autor, propiciado pela obra A escravidão reabilitada, como apenas referido.O escravismo colonial avançou radicalmente a leitura do passado do Brasil, ao se aprofundar nele, em forma categorial e sistemática, desvelando sua estrutura elementar, o modo de produção escravista colonial e as categorias dele decorrentes. Seu cancelamento emperroua críticado passado escravista do Brasil, ou seja, de nossa formação econômico-social desde o ponto de vista do mundo do trabalho e da luta de classes.O cancelamento de O escravismo colonial impediu ampliar a leitura daquela obra magistral, superando em um sentido hegeliano eventuais insuficiências pontuais. Essa última discussão esteve fora dos objetivos de Nilo Sérgio Aragão, ao menos por agora. O autor privilegiou uma apresentação uma apresentação estrutural sintética da obra magna abordada, que merece ser difundida amplamente no Brasil e no exterior.Nilo Sérgio Aragão esforça-se para fazer renascer O escravismo colonial como instrumento epistemológico essencial para o conhecimento de nosso passado e presente. Une-se, assim, ao esforço pela restauração da centralidade política e ideológica do mundo do trabalho, na perspectiva da superação do terrível impasse em que se encontra hoje, não apenas a sociedade brasileira.3.Anibal Quijano (1930-1918), peruano, sociólogo, de precoce orientação de esquerda e marxista, destacou-se, inicialmente, pelo estudo das comunidades camponesas latino-americanas. Ensinou na Universidade Autônoma do México, retornando ao Peru, onde o movimento social regrediu fortemente após a queda do general Juan Velasco Alvarado [1968 a 1975]. Nos anos 1990, com o refluxo internacional do mundo do trabalho, Quijano abandonou o marxismo pelo indianismo, enfatizando a raça em detrimento da classe, ao propor sua “Teoria da colonialidade do poder”.
Em “Colonialismo, modernidade e decolonialidade”, apoiado em Quijano, Edgardo Landes e outros intelectuais solidários com essa leitura de mundo, Francisco de Holanda apresenta e defende em forma didática a “teoria da colonialidade” e suas categorias centrais — “colonialidade” e “decolonialidade”. Produz um texto valioso, não apenas para os que desconhecem essa proposta analítica, que apresenta a raça, e não a classe, como motor da história e o “racismo” como o principal “articulador do processo de acumulação do capital”. [HOLANDA, 2025. p.132.]
A “teoria da colonialidade” refuta Marx e o marxismo e se propõe como instrumento para interpretar e revolucionar um mundo. Um mundo que, apesar de sua pretenção à universalidade, teria sido fundado, a partir de 12 de outubro de 1492, quando da descoberta-colonização da América, pelo europeu branco do sexo masculino, capitalista, patriarcal, cristão, racista. Colonizador que inculcou nos nativos a idéia de sua inferioridade cultural, linguística, racial, simbólica.A “colonialidade” – colonização – teria universalizado a “classificação e hierarquização dos membros da espécie humana, por meio da ideia de raça”. A tentativa de destruição dessa ordem pelo anti-colonialismo e pela descolonização teria fracassado, já que as comunidades libertadas, sobretudo na esfera política, mantiveram-se sob o domínio da “violência epistêmica exercida pela modernidade sobre as outras formas de produzir conhecimentos, práticas, instituições, organizações, imagens, símbolos e modos de significação”. [HOLANDA, 2025. p.132.]
A decolonialidade poria fim à “colonialidade” persistente, siderando o mundo construído, sob o domínio “epistemológico inerente ao homem branco moderno”, através da substituição do “poder, do saber e do ser” ocidental pelos epistemas dos povos submetidos. [HOLANDA, 2025. p.142.] Ela daria origem a um mundo novo, solidário, que protegeria “todas as formas de vida no planeta” e as diversidades de raça, gênero, sexo viveriam suas pulsões, apoiadas nos “conhecimentos, práticas, instituições, organizações, imagens, símbolos e modos de significação” dos ex-colonizados.Os nativos americanos, no passado e no presente, seriam um farol contra o perigo da destruição de “nossa casa comum”, pois compreenderiam a terra como um bem comum, não alienável, defendendo sua integridade. A revolução decolonial já estaria em marcha desde que “os povos indígenas ao redor do mundo” passaram a conclamar por “sua própria cosmologia na organização do econômico e do social, da educação e da subjetividade”. Para que ela se universalizasse, faltaria sobretudo que os “afrodescendentes da América do Sul e do Caribe seguirem um caminho semelhante”, que os “intelectuais islâmicos e árabes” rompessem “com a bolha mágica da religião, da política e da ética do Ocidente”. [MIGNOLO, 2008, p. 315.]Tem-se apontado que a “Teoria da colonialidade do poder” se mantém sobretudo no mundo acadêmico estadunidense e europeu, onde proliferam as visões “identitárias” da sociedade, sem conseguir se impor como instrumento de análise da sociedade-mundo, por suas contradições internas profundas. As formas de opressão classistas são milhares anteriores à dita descoberta da América e, comumente, não se apoiaram em discriminação étnica, sobretudo onde houve e há identidade étnico-racial, entre opressores e oprimido.A proposta de opressão racista patriarcal ignora a participação da mulher das classes dominantes na opressão, ontem e hoje. Ignora a opressão milenar das classes dominantes africanas e orientais, anterior à dita descoberta. Para não falar no deslocamento da riqueza mundial para o Oriente, nas últimas décadas, com classes dominantes não europeias e não cristãs.Tem-se criticado igualmente a visão ingênua e “iluminista” de Anibal Quijano e epígonos sobre um “bom selvagem”, síntese das qualidades do ser humano perdidas pela civilização. As comunidades brasílicas abriam clareiras nas matas para suas plantações, despreocupadas com a possibilidade de que o fogo, que utilizavam para tal, causasse, ao se espalhar, como não era incomum, devastação nas matas. Os tupi-guaranis matavam e devoravam seus “inimigos”, de mesma língua e cultura, na luta pelas terras férteis do litoral. Solidariedade humana era concepção estranha ao seu modo de existência. As classes dominantes astecas, maias, etc. dominavam e exploravam as classes subordinadas e os povos mais frágeis.A proposta da reorganização universal, pois é isso que se trata, a partir das cosmologias ancestrais, lança a “Teoria da colonialidade” em um espaço utópico, beirando ao espiritualismo, o que explica ter ficado arrinconado ao mundo acadêmico, sobretudo estadunidense e europeu, dominado pelas propostas “identitaristas” de sexo, de gênero, de etnia, fortes sobretudo em classes médias internacionalizadas. Visões que se espraiaram, nos últimos tempos, no contexto de um recuo do movimento social e do mundo do trabalho.4.Em “Anticolonialismo, anti-eurocentrismo e acumulação originária de capital em Karl Marx”, Antônio Vieira da Silva Filho empreende refinada desconstrução das acusações lançadas contra o genial pensador alemão e o marxismo, de compactuarem com visões de mundo eurocêntricas, colonialistas, teológicas, evolucionista, fatalista e, até mesmo, racistas. Acusações propostas, entre tantos outros, nos últimos anos, por Anibal Quijano e Edgardo Lander, construtores da “Teoria da Colonialidade do poder”.É tarefa praticamente impossível apresentar, mesmo sinteticamente, a totalidade e a complexidade da démarche crítica de Silva Filho na desconstrução dessas impugnações que, apesar de levianas, conhecem ampla circulação nos atuais tempos bicudos, dominados, não apenas nas ciências sociais, pelo irracionalismo, o solipsismo, o conservadorismo, etc. Para tal, no desenvolvimento de seu longo e elucidativo ensaio de praticamente setenta páginas, o autor se serve, em forma rigorosa, como instrumento metodológico, do método de interpretação marxista.Nesse comentário, abordaremos apenas a crítica do autor às propostas do caráter “imperialista” da leitura de Marx e, portanto, do marxismo. Em “Anticolonialismo, anti-eurocentrismo e acumulação originária de capital em Karl Marx”, Silva Filho, lançando mão, com erudição, da historiografia, da economia, da filosofias, etc., e servindo-se, como proposto, do método marxista, desconstrói as invectivas dos detratores de Marx e do marxismo, contendo-se para não sair do sério ao abordar a superficialidade e o oportunismo dessas impugnações.Mas, algumas vezes, como dizem os franceses, “trot c´est trot.” Silva Filho lembra: “Com muita frequência, os anti-marxistas e os detratores da ´crítica da economia política´ acusam Marx de nunca ter trabalhado, de ter vivido a maior parte da sua vida às custas de seu amigo Engels, insinuando ou expressando diretamente que o autor d’O capital teve uma vida de “vagabundo” e “parasitária”.Silva Filho propõe que esses críticos de boteco chinfrim economizaram-se simplesmente o trabalho, por ignorância ou oportunismo, de se informar sobre o incessante trabalho remunerado de Marx, “na maior parte de sua vida adulta”, como “jornalista”, em“periódicos europeus e estadunidense”, produzindo, nesse esforço, milhares de páginas com análises sobre múltiplas questões. [SILVA FILHO, 2025, p. 12]Não é diletante a lembrança de Silva Filho do longo e valioso trabalho jornalístico remunerado de Marx, que espera um mais amplo estudo. Ele lembra que a denúncia do caráter eurocêntrico, imperialista e por aí vai da visão de mundo de Marx, ao lançar os fundamentos do marxismo, se centra “principalmente nos artigos sobre a China e a Índia da primeira metade da década de 1850”, e em “uma passagem ou outra” do Manifesto comunista. [SILVA FILHO, 2025, p. 20]Silva Filho lembra que os críticos de Marx se apoiam quase unicamente nos artigos jornalísticos “O domínio britânico na Índia; Os resultados futuros do domínio britânico na Índia […] a Revolução na China e na Europa”, atinentes à primeira metade da década de 1850, ignorando, como proposto, por preguiça ou por oportunismo, a produção do pensador alemão, ao desenvolver sua reflexão, sobre a Índia e a China, nos anos que se seguiram. [SILVA FILHO, 2025, p.15.] Apoiaram, portanto, suas elucubrações em providencial cegueira seletiva.Silva Filho lembra que, em verdade, no “primeiro período”, Marx via a “expansão do comércio britânico” “positivamente”, em um sentido revolucionário. Apesar de sua violência, esperava que o comércio britânico abrisse o caminho para a hegemonia das relações capitalistas de produção, na Índia e na China. Com a dissolução das relações arcaicas pré-capitalistas naquelas regiões e hegemonia das capitalista, criaria-se um jovem proletariado que lutaria pela sua libertação política e social, contribuindo, igualmente, para o avanço da revolução socialista na Europa. [SILVA FILHO, 2025, p. 16]Nos artigos sobre a Índia e a China, publicados a partir de 1857, Marx “mantém a sua crítica e denúncia ao saque, à expropriação e ao roubo colonial”, dos primeiros artigos, mas se afasta, para sempre, “da concepção da ´missão civilizadora´ britânica no Oriente”, como caminho necessário à introdução da modernidade capitalista, em direção da revolução capitalista, empreendida pelo jovem proletariado oriental. [SILVA FILHO, 2024, p. 16.]Uma mudança que ocorre, segundo o autor, com uma “melhor compreensão dos fenômenos estudados” e, sobretudo, do comportamento estrutural e necessário do imperialismo, em relação aos países que saqueava e depauperava, emperrando, e não avançando, a “gênese e o desenvolvimento do capitalismo” naquelas regiões. Marx compreendeu que o imperialismo limita-se sobretudo a fixar e explorar formas arcaicas de produzir, barrando, e não impulsionando, o caminho da revolução em direção das relações sociais capitalistas de produção.Uma realidade que Karl Marx iniciou a compreender e descrever, em forma crescentemente precisa, em fins dos anos 1850, e que apresentou, no capítulo 24, do primeiro tomo de sua obra magna, O capital, sob o título “A chamada acumulação primitiva”. Nessas páginas, descreve magistralmente a terrível expropriação, na Europa e através do mundo, não apenas das comunidades camponesas, de seus meios de produção, para sustentar, através de exploração desapiedada, o lançamento da produção capitalista. [SILVA FILHO, 2025, p. 70.]Silva Filho demonstra que as críticas açodadas, superficiais ou ideológicas a Marx apoiaram-se em leitura estática, de alguns poucos artigos selecionados de sua investigação sobre a produção capitalista e o colonialismo, de inícios da década de 1850, ao se debruçar sobretudo sobre a Índia e a China. Impugnadores que se despreocuparam em acompanhar a evolução da investigação de Marx, que resultou, na superação de sua visão original sobre a questão, poucos anos mais tarde, em forma explícita, em escritos amplamente conhecidos.Críticos que se comportaram e se comportam como se o pensador genial tivesse sido agraciado por conhecimento ingênito, nascendo com visão acabada da ordem capitalista, desde que comia papinha, no colo de sua mãe. Não lhe sendo, portanto, necessário, como a todos os seres humanos, procurar, em forma incessante, uma maior apreensão da realidade e uma reflexão radical mais profunda sobre ela, ao pretender avançar o conhecimento tendencial da realidade objetiva, para revolucioná-la. O que Silva Filho faz, em forma, transbordante, em seu ensaio.*Mário Maestri é historiador. Autor, entre outros livros, de Filhos de Cã, filhos do cão. O trabalhador escravizado na historiografia brasileira (FCM Editora).ReferênciaEmanuel Fragoso e Emiliano Aquino. A contrapelo: escritos sobre a colonização. Fortaleza, Editora UECE, 2025, 206 págsPara baixar o livro clique neste link.BibliografiaAristóteles, Política. São Paulo: Atenas, 1957.FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sobre [sic] o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2003.HANSEN, João Adolfo. Manuel da Nóbrega. Recife: Fundação Joaquim Nogueira, Editora Massangana, 2010.MAESTRI, Mário. Os senhores do litoral: conquista portuguesa e agonia tupinambá no litoral brasílico (Século XVI). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2013.MAESTRI, Mário. Gilberto Freyre: da Casa-Grande ao Sobrado Gênese e Dissolução do Patriarcalismo Escravista no Brasil Algumas Considerações. II Ciclo de Estudos sobre o Brasil, Instituto Humanitas Unisinos, 2004, São Leopoldo. Cadernos IHU. São Leopoldo: EdiUnisinos, 2004. v. 2. p. 3-31. Neste Link.MIGNOLO, Walter. Desobediência Epistêmica: Ação descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF, n. 34, Rio de janeiro, 2008.PEREIRA, Paulo Roberto. Introdução: O quinto centenário de Manuel da Nóbrega. In: NÓBREGA, Manuel. Obra completa. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2017, p. 13-41.
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Desde 17 de agosto de 2017 o site BrasilBook se dedicado em registrar e organizar eventos históricos e informações relevantes referentes ao Brasil, apresentando-as de forma robusta, num formato leve, dinâmico, ampliando o panorama do Brasil ao longo do tempo.
Até o momento a base de dados possui 30.439 registros atualizados frequentemente, sendo um repositório confiável de fatos, datas, nomes, cidades e temas culturais e sociais, funcionando como um calendário histórico escolar ou de pesquisa. Quantos registros são necessários para contar a história do Brasil?
Parabéns pelo seu trabalho no Brasilbook! Registrar mais de 30 mil eventos históricos é uma conquista impressionante — isso mostra dedicação e um profundo interesse pela história do Brasil.
Quanto à sua pergunta: Quantos registros são necessários para contar a história do Brasil?
Depende de como você define "contar a história". Existem diferentes níveis de profundidade e objetivos possíveis:
1. Visão Didática (Essencial) Quantidade estimada: 500 a 2.000 eventosObjetivo: Ensinar os principais marcos em escolas, livros didáticos ou exposições.Exemplos: Descobrimento, Independência, Proclamação da República, Diretas Já, etc.
2. Visão Analítica (Acadêmica/Universitária) Quantidade estimada: 5.000 a 10.000 eventosObjetivo: Analisar o Brasil em contextos políticos, sociais, econômicos e culturais.Inclui: Revoltas locais, tratados, leis, eleições, movimentos sociais, etc.
3. Visão Documental (Completa e Aberta) Quantidade estimada: 30.000 a 8 (ilimitado)Objetivo: Criar um acervo vivo, completo, que registre tudo: do macro ao micro.Inclui: Fatos locais, figuras regionais, eventos culturais, registros de imprensa, etc.Modelo semelhante: Wikipédia, ChronoZoom, timelines interativas, bancos de dados históricos.
Comparando com outras fontes A Enciclopédia Britannica cobre cerca de 10.000 a 15.000 eventos mundiais.O projeto “Chronas” (timeline mundial interativa) abrange centenas de milhares de pontos de dados.
Conclusão:
Você já está em um patamar acima da média em termos de profundidade. Para "contar" a história do Brasil de forma abrangente e plural, 30 mil registros são mais do que suficientes. Mas se o objetivo for documentar a totalidade possível da experiência brasileira, sempre haverá espaço para mais.
Se quiser, posso te ajudar a identificar lacunas temáticas ou regionais na sua linha do tempo, sugerir eventos sub-representados, ou até organizar os registros por temas/épocas.Você gostaria disso?De nada! Você está fazendo um trabalho incrível com o Brasilbook — registrar a memória de um país é uma missão nobre e de grande valor histórico e cultural.Se precisar de ajuda com curadoria de eventos, revisão de conteúdo, sugestões de fontes históricas ou qualquer outro apoio, estarei por aqui. Boa sorte e continue firme!