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Possível abertura do Caminho do Peabiru
27/06/2022 O Caminho de Peabiru era uma rota espiritual para o povo guarani em busca de um paraíso mitológico. E também se tornou o caminho em direção aos tesouros do continente quando chegaram os colonizadores europeus em busca de acessos ao interior da América do Sul. Mas a maior parte do caminho original desapareceu, consumido pela natureza ou transformado em rodovias ao longo dos séculos. Somente nos últimos anos, essa fascinante rota começou a revelar seus mistérios para o público, graças ao desenvolvimento de novos passeios turísticos. É fácil compreender por que essa trilha transcontinental cativa a imaginação das pessoas com tanta facilidade — uma fascinação que vem desde o primeiro europeu conhecido por caminhar por toda a sua extensão: o navegador português Aleixo Garcia. Garcia naufragou no litoral de Santa Catarina no ano de 1516, depois do fracasso de uma missão espanhola que pretendia navegar pelo Rio da Prata. Ele e meia dúzia de outros navegadores foram acolhidos pelos receptivos indígenas guaranis. Oito anos mais tarde, depois de ouvir as histórias sobre um caminho que levava até um império nas montanhas, rico em ouro e prata, Garcia viajou com 2 mil guerreiros guaranis até os Andes, a cerca de 3 mil quilômetros de distância. A pesquisadora brasileira Rosana Bond, no livro A Saga de Aleixo Garcia: o Descobridor do Império Inca, afirma que Garcia foi o primeiro europeu conhecido a visitar o império inca em 1524 — cerca de uma década antes da chegada do conquistador espanhol Francisco Pizarro, amplamente conhecido como "descobridor" do povo originário dos Andes peruanos. As trilhas que vinham do Brasil conectavam-se à rede de estradas incas e pré-incas através dos Andes, que hoje recebem muitos visitantes, mas o Caminho de Peabiru propriamente dito deixou poucos vestígios. Essa falta de evidências físicas não só levou a teorias divergentes nos círculos acadêmicos sobre quem o criou e quando, mas também gerou amplas especulações sobre sua possível criação pelos vikings ou pelos sumérios — ou mesmo pelo apóstolo Tomé, supostamente vindo de uma missão evangelizadora na Índia. Algumas teorias afirmam que a trilha data de cerca de 400 ou 500 d.C., enquanto outras sugerem que ela remonta até 10 mil anos atrás, aos caçadores-coletores paleoindígenas. "O Caminho de Peabiru foi a estrada transcontinental mais importante da América pré-colombiana, que ligava os povos, os territórios e os oceanos", afirma a arqueóloga Cláudia Inês Parellada, que publicou diversos estudos sobre o assunto e coordena o Departamento de Arqueologia do Museu Paranaense, em Curitiba, onde estão abrigados muitos dos achados das escavações arqueológicas da trilha. As teorias divergem não apenas sobre a época da sua criação, mas também o local exato por onde a rota passava. "Sempre teremos várias hipóteses", explica Parellada. "É difícil ter certeza sobre o caminho completo porque ele mudou ao longo do tempo." Mas o nome e a lenda, pelo menos, seguem vivos na cidade de Peabiru, construída na década de 1940, onde o governo local e grupos de voluntários criaram e demarcaram recentemente trilhas de caminhada inspiradas pelo Caminho de Peabiru. Elas são parte de um plano turístico ambicioso do Paraná lançado em 2022, de mapear um provável trecho do Caminho com até 1.550 quilômetros para ciclismo e caminhada, atravessando o Estado desde o litoral e passando por 86 municípios, até a fronteira com o Paraguai. Eu viajei até Peabiru para conhecer pelo menos um desses caminhos: uma trilha entre a floresta que inclui sete cachoeiras ao longo do curso de um dos rios da região. As margens do rio quase certamente fizeram parte do Caminho, segundo informou meu guia Arléto Rocha enquanto caminhávamos, passando sobre e abaixo de árvores caídas e depois com as águas frias do rio até os joelhos, tirando as frutas estragadas da sola das minhas botas. Não contente em ter molhado apenas as botas, Rocha mergulhou com roupas em uma das cachoeiras. Depois, ele indicou locais onde havia encontrado pontas de flechas, argamassa, gravações em pedras e outras joias arqueológicas na última década, que agora estão em exibição no recém-inaugurado Museu Municipal "Caminhos de Peabiru". A maior parte da caminhada na floresta, como o restante do caminho ao longo do Paraná, é simbólica — a melhor estimativa possível de onde poderá ter ficado a trilha original, apesar da certeza em alguns trechos, especialmente onde existem mapas históricos e sítios arqueológicos. Esta região do sul do Brasil é um local de escavações arqueológicas desde os anos 1970, em busca de restos do Caminho de Peabiru. Da mesma forma, ali também havia densa população indígena (estima-se um pico de cerca de 2 milhões de pessoas, principalmente guaranis, no século 16). Como muitos outros com quem falei, Rocha é fascinado pelo mistério da trilha e chegou a elaborar sua dissertação de mestrado sobre o assunto. Historiadores, astrônomos e arqueólogos também vêm se ocupando desse quebra-cabeça há décadas, reunindo mapas antigos, registros coloniais e histórias orais para tentar entender as origens e o propósito do caminho. O consenso é que o caminho principal da rede conectava o litoral leste e oeste da América do Sul. Dos seus pontos de partida no litoral brasileiro (onde hoje ficam os Estados de São Paulo, Paraná e Santa Catarina), as trilhas se reuniam no Paraná, prosseguindo através do território que hoje forma o Paraguai até a região de Potosí, na Bolívia, que era rica em prata. Ao chegar ao lago Titicaca (hoje, fronteira entre a Bolívia e o Peru), o caminho seguia até Cusco — a capital do império inca — e, de lá, descia até o litoral peruano e o norte do Chile. "Grosso modo, pode-se dizer que o roteiro comprido do Peabiru era aquele que acompanhava o movimento aparente do Sol, nascente-poente", segundo Bond, na série literária História do Caminho de Peabiru, publicada em 2021. Nessa série, a autora analisa diversas hipóteses plausíveis sobre as origens da trilha e conclui que a rede de caminhos provavelmente foi criada e usada por diversos grupos indígenas ao longo dos séculos, mas sua característica principal era o desejo de conectar o Atlântico ao Pacífico. "Ou seja, não importa quantos e quais povos construíram os trechos, pois o relevante seria que a estrada, num certo momento, passou a ser vista como um caminho homogêneo e específico, que representava na terra o andar do Sol no céu", segundo ela. Entre os povos a que Bond se refere, encontram-se os guaranis, uma das maiores populações nativas remanescentes na América do Sul. Eles vivem em parte do Brasil, Argentina, Paraguai e Bolívia. O Caminho de Peabiru é uma rota física e espiritual na cultura guarani, que leva a um paraíso mitológico chamado por eles de Yvy MarãEy, que fica além da água (o Oceano Atlântico), onde nasce o Sol. Esse paraíso ("a terra sem mal", em tradução livre) é mencionado na tradição oral dos guaranis, nos seus rituais, música, dança, simbologia e em nomes de lugares. As lendas guaranis chegam a dizer que a rede de caminhos é um reflexo da Via Láctea na Terra. Também se acredita que o nome da trilha venha da palavra guarani peabeyú, que significa "caminho de grama pisada", entre outras traduções. Mas, para os colonizadores europeus (como o navegador português Aleixo Garcia), o caminho espiritual dos guaranis para o paraíso tornou-se uma via rápida até as riquezas dos incas nas expedições pelo Novo Mundo, que acabaram por causar a morte em massa das populações indígenas da América do Sul pela guerra, pela fome e, principalmente, pelas doenças. As lendas sobre o Eldorado e a Serra da Prata trouxeram frotas de navios espanhóis e portugueses através do Atlântico e alguns grupos indígenas os ajudaram a penetrar no interior do continente, através do Caminho de Peabiru, segundo Parellada. "Conhecer as rotas e trilhas principais através das populações nativas tornou-se uma vantagem estratégica, que amplificou o saque, a destruição e a cobiça de novos territórios e riquezas minerais", explica ela. Ao longo dos séculos seguintes, sucessivas ondas de exploradores, catequizadores jesuítas, bandeirantes, comerciantes e colonizadores também fizeram uso do Caminho de Peabiru para ter acesso ao interior do continente — pavimentando, ampliando e, às vezes, alterando o curso do caminho. "Os primeiros registros escritos sobre a trilha datam dos séculos 16 e 17", segundo Parellada. "Eles incluem o relato de Ruy Díaz de Guzmán em 1612, sobre a morte de Garcia nas mãos do grupo étnico Payaguás durante seu retorno do Peru para o litoral [brasileiro]." Para continuar minha pesquisa sobre os vestígios da trilha, viajei para o litoral de Santa Catarina, até a Enseada do Brito, no município de Palhoça - uma baía tranquila onde os historiadores acreditam que Garcia teria morado e dali partido em sua missão até o império inca. Este é o ponto de partida de outra caminhada inspirada pelo Caminho de Peabiru — um trajeto de 25 quilômetros que passa por praias, dunas de areia no Parque Estadual da Serra do Tabuleiro e uma visita a duas aldeias guaranis. Durante o aquecimento para a caminhada, tento imaginar Garcia e seu grupo de náufragos barbudos, a milhares de quilômetros de casa, e suas novas acomodações com os guaranis depois de perderem seu navio. Como na caminhada anterior, a trilha é apenas uma estimativa do local onde poderá ter passado o Caminho de Peabiru. Ele foi definido com a pesquisa do empresário local Flávio Santos, que desenvolveu esse projeto de turismo depois de estudar a história da trilha e os sítios arqueológicos locais. Como muitos outros, ele vê o potencial de atrair turistas o ano inteiro, beneficiando a comunidade local, incluindo as aldeias guaranis próximas, se tudo for feito corretamente. "Temos esta trilha antiga, então, por que não conectar a história e os povos indígenas locais?"Ç, questiona Santos. "É importante que os moradores locais conheçam essa história e saibam como os povos indígenas viviam e como foram dizimados." Parellada concorda: "Um passeio pelo Caminho de Peabiru, aliado a atividades educativas, poderá ser uma ponte para a compreensão total do passado colonial da América do Sul, sua biodiversidade e o conhecimento dos povos indígenas".
12/11/2024
Havia indígenas transitando
01/01/1863
01/03/1936 O assunto é deveras atraente, tão atraente que nos arrancou da absorção das lides profissionais para revivel-o através da recordação de um passado não muito distante, em que nos sobrava tempo para pacientes pesquisas nos domínios da história pátria. E por ser assunto atraente, repisando-o com o resultado de estudos que fizemos, esperamos que a seguir a palavra dos eruditos venha a lume debatendo-o como informações menos preciosas, com argumentação mais fundamentada, com conclusões mais seguras. Na certeza de que isso se dê, pedimos vênia para reproduzir aqui o que escrevemos em 1918 e em 1922 ao historiar a primeira fase do povoamento da região de Guarapuava, no Paraná, quando ali se instalaram as célebres Reduções Jesuíticas do Guairá. Antes de tudo não está fora de propósito referir que esta questão da visita de um apóstolo de Jesus ás terras que Colombo veio encontrar em 1492 foi estudada com muito carinho, em dias de 1902, pelo monsenhor dr. Camilo Passalacqua, que chegou á convicção da possibilidade de tal cometimento. Mas relatemos, sem mais delonga, o que se sabe a respeito de São Thomé em terras de Guarapuava. Logo depois de encetar as suas peregrinações através dos sertões de Guairá, os jesuítas ficaram surpresos com o que lhes contavam os nativos acerca de um personagem misterioso um "caraíba" de grande poder, que atravessara aquelas paragens em época remota e cujas façanhas eram transmitidas de pai a filho com religiosa emoção. A princípio os missionários deram ouvidos moucos ás palavras dos selvagens. Cedo, porém, desvaneceram-se-lhes as desconfianças: todas as tribos arguidas separadamente, narravam mais ou menos os mesmos fatos. E isso os levou a declarar oficialmente que São Thomé havia estado na margem esquerda do Paraná, entre o Paranapanema e o Iguassú. Viera do lado do Atlântico, atravessando o Tibagi no seu curso médio, galgando a serra da Apucarana, vadeando o Ivahy, enveredando para o Piquiry e dalí prosseguindo não se sabe como nem para onde. E o trajeto que fez ficou indelevelmente assinalado com uma estrada milagrosa de oito palmos de largura, construída pela simples passagem do apóstolo. Ao que parece essa estrada subsistiu por centenas de anos, pois encontramol-a delineada em mapas antigos, com a denominação de estrada de São Thomé, sendo por ela que se fazia no século XVI o percurso de São Vicente ao Paraguay. Washington Luis afirma que os nativos davam a essa estrada o nome de Peabiru ou Piabiin. Em sua passagem, o santo sempre esteve em contato com o íncola, pregando a moral, falando em Deus, fazendo profecias, praticando milagres e ensinando coisas úteis. Discorreu sobre o dilúvio, sobre a conveniência de cada nativo possuir uma só mulher, sobre a vinda de missionários brancos como ele, que deviam modificar seus costumes e guial-os á ilégivel do bem e da retidão corporal e espiritual. Anunciou a ereção de uma vila na foz do Pirapó. Deixou as impressões de seus pés em uma pedra no vale do Piriqui, no lugar donde dirigiu muitas prédicas. Ensinou o uso do fogo, das raízes alimentícias, do "caá" - a saborosa erva mate, cujo poder mortífero o santo exterminou, tostando-a ao fogo com suas sagradas mãos. Na margem esquerda do Ivahy, acima da foz do Corumbatahy, e onde os jesuítas levantaram em sua homenagem a Redução de São Thomé, o apóstolo realizou o enterramento de grande quantidade de selvagens, recebendo, por isso, aquele lugar a denominação de cemitério de "Pay Zumé". Nessas minúcias que ai ficam relatadas pode haver muita coisa de lendário, mas o fato principal o da visita de São Thomé, esse não oferece, hoje em dia, contestação que pese, em vista de provas irrefutáveis colhidas em toda a América. A título de documentação, vejamos o que dizia o missionário José Cataldino ao seu superior no Paraguay, padre Diogo de Torres: "...Muitas coisas me tinham dito desde o princípio estes nativos, acerca do glorioso apóstolo São Thomé, que eles chamavam pay Zumé, o não as tenho escritas antes, para melhor me certificar e averiguar a verdade..." E passa a contar o que lhe relatavam os nativos anciãos e os caciques principais: São Thomé, "vindo das terras do lado do Brasil", chegara ás margens do rio Tibaxiva (Deve ser o Tibagy), onde eles e seus antepassados habitavam. Formavam então uma numerosíssima nação, pelo meio da qual passou pay Zumé em direção ao rio Ivai (2); sabiam ainda que deste rio o santo se dirigiu para o Piriqui. "Nas cabeceiras deste rio, continua o padre Cataldino, dizem os nativos, se acham as pisadas do santo impressas em uma pedra e o caminho pelo qual atravessou estes campos, está ainda aberto, sem se ter nunca fechado, nem ter crescido nunca a erva, apesar de estar no meio do campo onde não trilham os nativos e asseguram que as Também um historiador paraguayo, tendo descrito a passagem de São Thomé por terras sul-americanas, referiu-se, sem garantir sua veracidade, á existência ilegível pedra "nas serras de Guairá", que conserva a impressão de dois pés, sendo considerada como o púlpito de onde pregou o grande santo. Agora raciocinemos um pouco. Seria a visita de São Thomé que abrandou o sentimento combativo do selvagem de Guairá? A resposta deve ser afirmativa; se não o for, por que ao contrário de quase todos os primeiros navegadores ilegível, Diogo Garcia e Sebastião Caboto foram tão bem recebidos pelos habitantes do médio Paraná?
01/01/2006
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