Em 28 de junho de 1963, nossa cidade viveu uma de suas mais intensas e marcantes tragédias — um triste incidente que deixou 4 vítimas fatais e quase 30 feridos.
Até então, o Rio já havia vivido muitos outros episódios nefastos com um número muito maior de vítimas fatais.
Ainda assim, o incêndio do Edifício Astória, que completa hoje 58 anos, está gravado na memória carioca. O que ocorreu afetou a cidade sobretudo como um trauma, mesmo com um número de fatalidades pouco numeroso.
A relevância desse evento para nossa história reside justamente aí: na façanha que conseguiu salvar as vidas de tanta gente. Sem precedentes para aqueles tempos, a ousadia e a eficiência do resgate, uma gigantesca operação marcada por momentos de heroísmo, foi também pautada por um sentimento de solidariedade coletiva que surpreendeu os cariocas da época.
Uma cidade inteira estava unida em torno do mesmo objetivo: salvar dezenas de pessoas da morte que parecia uma certeza quase absoluta.
O Edifício Astória ficava no número 14 da Rua Senador Dantas, bem ao lado da Cinelândia e do Palácio Monroe — mesmo imóvel hoje chamado de Windsor Astúrias Hotel. Em 1963, era um excelente prédio comercial, ocupado por importantes escritórios e empresas.
Por volta das 10:30 da manhã, no 13o andar, um curto-circuito em um dos aparelhos de ar condicionado dos estúdios de dublagem da conceituada empresa Herbert Richers, faria, em questão de minutos, os pavimentos mais altos do prédio serem consumidos pelas chamas. O foco inicial do incêndio foi muito intenso, sendo logo notado por funcionários da empresa, que tentaram solucionar o problema usando oito extintores que estavam à mão.
A tentativa foi em vão e o fogo logo se alastrou pelo andar inteiro. Quem estava nos andares mais baixos conseguiu, ao ouvir o alarme, descer até o térreo sem grandes complicações.
Infelizmente, a fumaça e o calor das labaredas logo tornaram inviável a situação das pessoas que estavam no 13o andar e nos pavimentos superiores. O terror daquela tragédia chegou, sem demora, até o 22o e último pavimento do Astória.
Para agravar esse cenário desolador, bem no início do incêndio, o único elevador do prédio teve seus cabos rompidos pelo calor do fogo, ferindo sem gravidade os que nele estavam.
Além disso, a fuga pelas escadas não era uma opção, já que ainda não existiam portas corta-fogo naquela época. Essa rota de escape revelou-se um inferno ainda maior, aumentado pela proximidade das paredes. O desespero tomou conta das dezenas de pessoas que estavam espalhadas pelos andares mais altos do edifício.
A chegada do então Corpo de Bombeiros do Estado da Guanabara foi extremamente rápida. Todo o efetivo da força se deslocou até o local. Dos 600 militares, a maior parte estava dedicada diretamente ao salvamento das vítimas.
Outra menor percorria os arredores em busca de água para encher os tanques que logo ficaram secos. As caixas d’água dos prédios vizinhos também não foram suficientes. Uma das soluções encontradas foi o uso das águas da Guanabara, coletadas por Bombeiros em lanchas, às margens do MAM.
Um grupo de trinta pessoas que haviam ficado presas no 20o andar decidiram quebrar as paredes até acessar o prédio adjacente, o Hotel Serrador. Com a ajuda de um grupo de Bombeiros que estava do outro lado, o plano deu certo e ainda rompeu uma das colunas d’água do hotel, amenizando o fogo infernal daquele cômodo.
Um grande número de pessoas concentrou-se no 16o andar, pois ainda parecia menos afetado pelo calor e pela fumaça. Aflitas e desorientadas, as vítimas, muitas delas já com queimaduras graves, tentavam equilibrar-se nas janelas, à espera de um milagre.
O trabalho dos Bombeiros teve enormes contratempos. A escada “magirus”, usada para esses incidentes, só alcançava o 10o andar do Astória e nada se podia fazer, nem jogar água, nem resgatar a pequena multidão que se equilibrava com extrema dificuldade nas sacadas das janelas.
A solução encontrada pelos nossos valorosos Bombeiros foi usar a mais importante das habilidades humanas — a criatividade. Confrontados também pela inevitável consciência de que cada minuto sem uma solução, mais pessoas poderiam estar mortas, de maneira tão horrível.
Essa junção de fatores levou os Bombeiros a conceber soluções inéditas e inovadoras, no afã de salvar o maior número possível de vidas.
Um grupo de Bombeiros deslocou-se até o terraço do Edifício OK, imóvel vizinho ao Astória, de pouco mais de 10 andares — onde hoje é o Hotel OK. Os dois prédios estão separados pela Rua Embaixador Régis de Oliveira, que é, na verdade, uma travessa estreita.
A solução encontrada foi a montagem de pontes improvisadas, feitas de escadas de alumínio amarradas a grandes cordas de nylon. Os bombeiros pensavam que poderiam entrar no prédio para lançar água nas chamas. Não funcionou.
Entretanto, a ponte improvisada, apesar de instável e frágil, alcançou as janelas do 14o andar, permitindo o resgate da maior parte das vítimas encurraladas nas janelas.
Eis que, em meio ao resgate que parecia seguir seu curso, um jovem pegou a todos de surpresa e saltou do 19o andar, em direção ao terraço vizinho, sem saber se haveria alguém para amortecer sua queda.
Desesperado, pois o fogo já lhe queimava o corpo, Gildo Mata Nunes saltou rumo à sorte incerta. Por obra do destino ou talvez do acaso, o Cabo Napoleão Pereira estava no mesmo exato local onde o jovem caiu, amortecendo-lhe a queda.
Gildo sobreviveu e teve, como sequelas, múltiplas queimaduras de segundo grau e um fêmur quebrado. Menos afortunado, Napoleão teve sua coluna vertebral gravemente danificada. Na sequência dessa história insólita, uma tragédia.
Sebastião Pereira, um senhor de mais idade, ao ver o exitoso salto de Gildo, resolveu replicar o mesmo ato extremo. O resultado não foi nem sequer parecido e esse senhor perdeu sua vida ao despencar de altura tão elevada.
Provavelmente já sem alternativas para sobreviver, e em extrema aflição, outras duas pessoas saltaram das janelas em encontro à morte. Uma delas era Ziza Goettenauer dos Santos Couto, funcionária da Herbert Richers.
Ziza havia levado seu filho, Paulo César, ao Centro nesse dia, que era seu aniversário de 10 anos. Foram mãe e filho juntos comprar sapatos para o aniversariante e, antes do incêndio começar, já estavam de volta ao estúdio de dublagem, onde o fogo começou.
Momentos depois, o menino veria sua própria mãe saltar de uma janela, certa de sua morte, que lhe parecia provavelmente inevitável. O outro a dar um salto fatal foi um homem, pouco tempo depois de Ziza.
O menino, apavorado e traumatizado, foi encontrado pelo soldado Hamilton Neves. Após assistir a essas três fatalidades, o Bombeiro tomou a decisão de ir, por conta própria, ao encontro dessas pessoas, com a esperança de resgatar quem estivesse mais vulnerável.
O órfão Paulo foi levado imediatamente por Hamilton, que o protegeu dentro de sua farda e saltou para o prédio vizinho com a ajuda de uma corda. Essa corda se rompeu devido ao calor do incêndio e ambos colidiram com força contra a fachada do Edifício OK.
Protegido pela farda e pelas costas do Bombeiro, o menino não se feriu. Para levá-lo são e salvo até o chão, Hamilton desceu por 15 andares pela mesma corda, até deixar Paulo sob os cuidados dos médicos. Foi aí que o heroico bombeiro se deu conta de que suas mãos estavam em carne viva. De tanta dor que sentia, Hamilton desmaiou subitamente, logo depois de cumprida sua missão.
A última vítima fatal foi justamente a pessoa que atravessou por último a tal ponte improvisada. Esse foi o exato momento em que as amarras de nylon se desfizeram, desequilibrando a já instável e apavorada travessia da moça, que veio a despencar fatalmente até o chão.
Algo que repercutiu consideravelmente na Imprensa carioca no dia seguinte ao incêndio foi o fato de que o então governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, havia se dirigido às pressas ao local logo de manhã.
Pelo que dizem os jornais, Lacerda teria acompanhado de perto os trabalhos de resgate, chegando a subir no terraço do Edifício OK para acompanhar os esforços bem de perto. Só teria saído de lá quando não havia mais ninguém preso no inferno das chamas.
Esse trágico episódio da nossa história, apesar de tanto sofrimento e de mortes que poderiam ter sido evitadas, mostrou também a força da solidariedade humana.
São muitos os exemplos, mas é digna de nota a admirável a atitude dos restaurantes do entorno, que passaram a distribuir gratuitamente alimentos e bebidas aos profissionais do resgate.
Entre eles, além dos Bombeiros e médicos escalados oficialmente para a missão, estavam também Bombeiros e médicos que, mesmo de folga, apareceram em massa para ajudar. Foi uma mobilização que inspirou a cidade a ser melhor.
O prédio sofreu danos estruturais severos e os dois últimos andares estavam condenados à demolição. Outros andares mais abaixo precisavam de reformas estruturais complexas e caríssimas.
A partir daí, teve início uma batalha judicial, não só motivada pelo Ministério Público. Donos de escritórios que ficavam no Astória acusaram a Herbert Richers e outras empresas de manter materiais inflamáveis em suas dependências.
Nada foi esclarecido ou comprovado. As despesas eram tantas para a recuperação do edifício que nem mesmo a seguradora conseguiu arcar com os valores. Não havia outra alternativa. O Edifício Astória foi a leilão, sendo finalmente adquirido por um grupo financeiro.
O hotel que hoje lá se encontra guarda apenas uma distante semelhança com o palco da tragédia que venho hoje lhes contar. De “Astória” mudou para “Astúrias”. Só isso. No local não há nenhuma placa, quadro ou menção aos momentos de tristeza, de sofrimento e da heroica luta pela sobrevivência que se desenrolaram naquele dia; momentos que nossa cidade demorou a esquecer.
Essa odisseia pela vida em algum recanto das nossas memórias, para que não nos esqueçamos daquelas pessoas de carne, osso, sangue e alma — as que se foram e também as que ficaram para contar a história.
*Daniel Sampaio é advogado, memorialista e ativista do patrimônio. Fundou o Instagram @RioAntigo e é presidente do Instituto Rio Antigo.
**Este texto não seria possível sem a extensa pesquisa de André Decourt, brilhantemente apresentada no antigo blog “Foi Um Rio Que Passou”, em 2013.