“As incríveis aventuras e estranhos s incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knivet infortúnios de Anthony Knivet”, tradução de Sheila Moura Hue, consultado em - 05/08/2023 de ( registros)
“As incríveis aventuras e estranhos s incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knivet infortúnios de Anthony Knivet”, tradução de Sheila Moura Hue, consultado em
5 de agosto de 2023, sábado. Há 1 anos
A circunavegação fracassada circunavegação fracassada
Quando partiu de Plymouth, na Inglaterra, a 26 de agosto de 1591,com a intenção de dar uma segunda volta ao mundo, Thomas Cavendish (1560-92) pensava repetir a façanha que havia realizadofazia três anos. A essa altura, ele era a nova maravilha da navegaçãoinglesa, o terceiro a circunavegar o globo, repetindo o heróico feitode Francis Drake, e, a exemplo do preferido da rainha, tambémtrouxera para casa um riquíssimo butim, especialmente preciosasmercadorias orientais do galeão espanhol Santa Ana. Essa segundaviagem de volta ao mundo de Cavendish também tinha como objetivorecuperar as fi nanças do jovem navegador, que já tinha dissipado tudoo que conseguira na primeira. A essa nova empreitada se juntaraminvestidores privados e jovens de famílias nobres em busca de fortuna, como Anthony Knivet, um dos jovens embarcados no galeãoLeicester, comandado por Thomas Cavendish.
A exemplo de outras fi guras do século XVI, a biografi a de Kniveté um pouco nebulosa, mas tudo indica que tenha sido fi lho ilegítimode um nobre, sir Henry Knivet, que, por não poder legalmente herdaros bens do pai, seguira a carreira militar. A nova expedição do entãocélebre e festejado Cavendish era uma boa promessa fi nanceira para osjovens gentlemen nela engajados, pois somente aos homens dessa posição social era franqueada a pilhagem de navios e das cidades atacadas.Mas o começo promissor desembocou em um desfecho inesperado etrágico: Cavendish não conseguiu passar do estreito de Magalhães,perdeu quase todos os seus navios e seus homens e, voltando para aInglaterra, morreu no meio do Atlântico – após escrever uma amarga carta –, de desgosto, provavelmente por suas próprias mãos. Knivet,por sua vez, foi abandonado semimorto, com os pés gangrenados, emuma praia no litoral de São Paulo e passou quase dez anos no Brasilcomendo, digamos assim, o pão que o diabo amassou. Como escravo dafamília Correia de Sá, trabalhou em engenho de açúcar, foi escudeiro,mercenário, negociante de índios escravos, explorador do sertão, e viveu,quando conseguia escapar de seus patrões, vários períodos com índios,nu e perfeitamente adaptado entre eles. Condenado à morte váriasvezes, enfrentando perigos fatais ao desbravar sertões inexplorados elidar com índios canibais, além de atrozes castigos físicos e doenças,Knivet consegue sempre escapar, não milagrosamente, mas por seuspróprios meios, por sua inteligência e indústria.
Durante esses dez duros anos, planeja três fugas. A primeira quando a frota de Richard Hawkins passa pelo Brasil, a segunda quando consegue ir para Angola, de onde pretendia escapar para a Inglaterra, e a terceira quando se junta a outros ingleses habitantes do Rio de Janeiro. Mas a oportunidade só viria quando a família de Salvador Correia de Sá, em 1599, se muda para Lisboa levando Knivet, seu escudeiro inglês.
Ele não consegue a liberdade – pois seu conhecimento das rotas terrestres e marítimas do território brasileiro e das minas que se escondiam nos sertões tinha um alto valor estratégico, e não poderia ser transmitido aos ingleses –, mas, após trabalhar como intérprete para negociantes escoceses, consegue, com a ajuda de uma noviça inglesa de um convento de Lisboa, retornar à Inglaterra, em setembro de 1601, em um navio de comerciantes holandeses. A essa altura seu pai já havia morrido, e tudo leva a crer que foi através de seu tio, lord Thomas Knivet, um dos membros da Privy Chamber [Páginas 15 e 16]
ao não comer frutas e raízes venenosas que tantas vezes mataramseus companheiros; e sua espantosa resistência física diante dascondições mais extremas. Em resumo, sua impressionante capacidade de sobreviver no inóspito Brasil da década de 1590.
O Rio de Janeiro de Anthony Knivet e de Salvador Correia de Sá parecia organizar-se em torno de três eixos principais: a produção de açúcar, a obtenção de índios escravos e a busca por minas de ouro e pedras preciosas. Knivet trabalha em dois engenhos, desempenhando diferentes tarefas: carregando cana-de-açúcar, empacotando e transportando o açúcar para os navios.
Trabalha inicialmente como escravo, até suas roupas se desfazerem em farrapos, sob as ordens de um feitor espanhol que odeia ingleses, a quem pretende assassinar; anos depois, passa a ser remunerado e tratado com mais humanidade. Outra atividade do marinheiro inglês é entrar em contato com tribos indígenas que costumam vender como escravos sua própria gente ou prisioneiros de outras aldeias. A família Correia de Sá não está particularmente engajada na “guerra justa” pregada pelos jesuítas – que pretendiam salvaguardar os direitos dos povos nativos estipulando que só poderiam ser aprisionados se atacassem os colonos.
Knivet embrenha-se pelo sertão, por lugares nunca antes pisados por um europeu, entrando em contato com tribos desconhecidas e negociando escravos que serão usados nos engenhos e em trabalhos domésticos. Suas outras entradas pelo interior do Brasil, seguindo rotas indígenas e caminhos desconhecidos, são viagens de exploração em busca de minas de ouro e de pedras preciosas, que se incrementaram no governo de d. Francisco de Sousa. O que movia essas entradas era principalmente a recente descoberta da gigantesca montanha de prata em Potosí, na atual Bolívia, e também os mitos de indígenas brasileiros sobre uma montanha de metais preciosos, a lendária Sabarabuçu. Percorrendo o interior de Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, Knivet e seus companheiros deparam, em vários lugares, com pepitas de ouro, ouro em pó e uma grande variedade de pedras preciosas, como diamantes, rubis, safiras, e com a mitológica montanha resplandecente, segundo ele, tão brilhante que chega a cegar a vista dos viajantes, e tão alta que se perde entre as nuvens.
Knivet, no interior de São Paulo, sente-se na iminência de avistar Potosí, e os indícios de metais e pedras preciosas que encontra pelo caminho só fazem aumentar sua certeza. O Brasil que ele percorre é, verdadeiramente, o eldorado. Eram tantas as pedras preciosasque, conta ele, “recolhíamos pedras num dia para, no dia seguinte, jogá-las fora em vista de outras maiores e melhores”, e a região era tão rica em minas que “se os espanhóis conhecessem essa região, não precisariam ter ido até o Peru, pois não há lugar como estepara todo tipo de metal valioso ou pedra preciosa”.
Nessa época, a grande promessa de ouro e de pedras preciosas era o interior da capitania de São Vicente, atual estado de São Paulo – quase um século antes da descoberta do ouro em Minas Gerais –, para onde o governador-geral d. Francisco de Sousa se transferira de modo a coordenar viagens exploratórias, e onde já estava em atividade a mina de ouro de Jaguará. Em suas andanças pelo interior de São Paulo, Knivet não atinge o eldorado com queIntrodução21sonha, Potosí, mas, no fim de seu livro, ao elaborar um [Páginas 20 e 21]
bos historicamente aliadas aos franceses, ou, ainda, quando, ementradas pelo sertão, algumas aldeias faziam frente à chegadados colonos, entre outras práticas bélicas contra os índios. Orelato de Knivet descreve aldeias dizimadas e índios mortosna casa do milhar. Particularmente interessante é uma longa estadade Knivet entre os tamoios, expulsos para o interior após a conquista do Rio de Janeiro, que são convencidos por Knivet a voltar para olitoral e lá são massacrados pelos homens de Martim de Sá. Nessemomento da narrativa, temos a história de Abauçanga, o últimodos tamoios, de 120 anos, que morre em batalha, de forma suicida,mas com uma bravura que maravilha os portugueses. Abauçangapreferia morrer a ser escravo dos portugueses.Knivet se identificava especialmente com essa mentalidade. Emvários momentos diz que prefere ficar entre os “canibais” a voltarpara as mãos dos portugueses, de quem é escravo e por quem é tratado impiedosamente. Identifica-se tanto com os índios, que chegaa afirmar que o melhor amigo que já teve é Guaraciaba, um índio,foragido como ele: “Nunca um homem teve uma amizade tão sinceraquanto eu a dele.” Na parte final de seu livro, em que elabora umadescrição das várias tribos com as quais teve contato, muitas vezeselogia a civilidade, a gentileza e até mesmo características físicasdos indígenas, aproximando-os de ingleses e holandeses. Os portugueses, aqui, são as bestas feras, os selvagens, em contraposiçãoa algumas tribos indígenas, gentis, educadas. Sobre os molopaqueschega a afirmar: “Se esses canibais tivessem conhecimento de Deus,posso arriscar dizer, não haveria gente no mundo como eles. [Página 23]