Bem sabia Borba Gato, diante daquela fatalidade, do destino cru que o aguardava. Bem sabia das vinganças que iriam desabar sobre a sua cabeça! Por isso não esperou que estalasse contra ele a sanha régia: naquele mesmo dia, fugindo às justiças, o paulista embrenhou-se às correrias por aqueles bosques asselvajados de além-Mantiqueira. Foi viver, segregado dos homens, como hirsuto bicho de mato, dentro do sertão terrificante daquelas paragens brutas.
BORBA GATORodou o tempo. O sonho da prata esfriara. Portugal, contudo, tentou ainda mais um esforço no sentido da descoberta das serras tão desejadas. É que o soberano recebera longo relatório do governador Paes de Sande em que este assegurava não se ter ainda descoberto a prata de Paranaguà e de Sabarabuçu por dois motivos:
1) porque não se haviam prometido aos paulistas todas aquelas grandes honras e todas aquelas grandes mercês, assim como aqueles postos de mando no governo da sua república, de que os mesmos paulistas eram mui gulosos. E isso ainda com a promessa, importantíssima para os paulistas, de que "continuaria a sua Republica florente nas qualidades e na riquezas, capaz de vir a ser a Villa de S. Paulo a cabeça do Brasil".
2) porque não pode descobrir nem entabolar minas que não sabe o que el-las sãm. Ora, continuava o governador, muito azedo, "esse D. Rodrigo de Castelbranco nunca foi escrutador ou bruxulla; nunca foi mineiro, nunca seguio betas nem proffundou estados; nunca foi senhor de minas, nem teveofficio de temperar a pedra moida; e se fallava em alguns termos, era pellos ouvir e não pellos praticar".
Ouvindo o Conselho Ultramarino, um dos conselheiros foi logo dizendo que,quanto a D. Rodrigo, talvez "este não ouvesse tido aquela experiencia e sciencia que no papel se supõe necessaria, mas que tinha bastante deligencia da materia.Pois, estando eu na Bahia lhe vy fazer diferentes os ensaios em pedras da serra de Tabaiana, e tambem vy que dos ensaios tirou prata". "E quanto às promessas dos paulistas, achava, sem restrição, medida muy adequada, pois a ambição doshomens tudo facilita, e, com isso, não se despresava deligencia tão util como essa".
E acrescentava ainda que em Sabarabuçu e em Itabaiana devia realmente haverprata, portanto — "Tabaiana e Sabarabussú concorrem, debaixo da mesma altura eparallello, com o cellebrado cerro do Potosy, que lhe fonte de prata inexausta quetem inundado as quatro partes do mundo. E como se conjectura que sendo aproducção de todos os metaes effeito do callor e actividade do sol, pela egualdadedo parallello participarão aquellas serras das mesmas influencias".O Rei, tendo tudo visto e examinado, mandou ao seu governador uma cartaem que dizia:"Antonio Paes de Sande, Am.0 Eu, el-Rey, vos envio muyto saudar.Mandando ver o que me reprezentaste em hum papel sobre as minas de ouro, e depratta de Pernagoà, Tabahana, e Serra do Sabarabussú, me pareçeo recommendarvos a execução do arbitrio........ dando-vos a faculdade para que, em meu nome,possaes propor, e dar todas as honras e mercês que deveis prometter aos paullistas;e, feita a delligencia, me dareis conta do que tiverdes disposto, e obrado, para quecom a verdadeira noticia, ou se alcance o dezengano ou se confirmem asmercês...25"Mas é exatamente por esse tempo — 1695 a 1700 — que o Brasil inteiro seenche da fama súbita das minas de ouro. Naquelas estrondosas minas de ouro, tãoabundantes, que os paulistas haviam afortunadamente descoberto nos Cataguazes.Quanta mina, Senhor! É a do Ribeirão do Carmo, é a de Ouro Preto, é a da Pitangui,é a do Ribeirão do Garcia... Ecos de descobrimentos novos, de catas inesperadas,de veeiros que rompiam improvisamente, estrugiam agora de todos os quadrantesdo sertão. Tantos, tão rumorosos, que o governador Artur de Sà e Menezes decidiuse a ir, em pessoa, ver de perto aquelas riquezas que brotavam a flux no rústico ElDorado. Urgia, porém, antes de qualquer outra medida, tratar da abertura dumcaminho, expedito e fàcil, que ligasse com rapidez a região das lavras à cidade doRio de Janeiro. Quem, com pràtica de sertão, poderia faze-lo? Os paulistas. Eisporque Artur de Sà foi entender-se com os sertanistas de Piratininga. E entender-separticularmente com aquele sertanista de prol, amigo do Rei, filho de Fernão DiasPaes Leme: Garcia Paes.
Em S. Paulo, certo dia, Garcia Paes procurou o governador. Procurou-o em sigilo. E, a sós os dois, disse o filho do caçador-de-esmeraldas ao procônsul reinol:
— Vosmecê conhece bem aquela desgraça que arruinou a vida do meu cunhado...
— Borba Gato?
— Borba Gato!
— Conheço bem o caso, Garcia Paes. E então?
— Então, senhor governador, depois do desastre, e como Vosmecê de certo jà ouviu dizer, Borba Gato sumiu. Por muitos anos não deu ele notícia do seu paradeiro. Vosmecê não pode avaliar o desespero que é para a minha gente a perda de Borba Gato! Nenhum parente se conforma em saber que o meu cunhado, homem reto, companheiro firme de meu pai, vive fugido da justiça como criminoso. A mulher25 Carta Régia, Documentos Interessantes. www.nead.unama.br42dele, que é a mana Maria Leite, saiu de S. Paulo e foi morar em Taubaté. Instalou-seno lugar chamado Paraitinga, que é boca de sertão, fica rente da estrada que vaipara as lavras. A mana pousou nuns campos daquela paragem, ergueu casa, eficou-se ali, que é perto dos Cataguazes, na fiúza de ver o marido um dia aparecer.Mas tudo baldado! Passaram-se anos e anos sem que Borba Gato desse notícia de si... Artur de Sà ouvia em silêncio. Garcia Paes, com a sua singeleza cabocla,continuou a desenrolar pinturescamente a rústica história do cunhado:
— Vinte anos andou Borba Gato por aquela mataria como um bicho. No fiodesses vinte anos, corre pra cà, corre pra là, encontrou ele uns bugres de boaavença, da nação chamada piracicava, que o receberam como amigo. Borba Gatoarranchou-se entre eles. E viveu como bugre no meio desses bugres. Tornou-se atéo maioral desse gentio. Ora, faz pouco tempo, numa tarde de vento grosso e chuvabraba, surge em casa da mana um homem barbudo, cabeça branca, que entra pelacasa de sopetão. Uma rapariguinha de pouca idade, que jà é filha duma filha damana, estando por acaso na sala-de-janta, ao reparar no estranho que vem varando,sai a gritar pela casa:— Um homem barbudo tà aí, mãe! Um homem barbudo tà aí, mãe!Acode a mãe da menina a ver o que é. E ao dar com o velho, ali, naquelelusco-fusco de chuvarada, vestido de couro, botas, um arco de bugre na mão, amoça também se amedronta. E corre, com os olhos saltados, pelo quarto da manaMaria adentro:— Tà aí um homem barbudo, mãe!— Um homem barbudo?— Barbudo, vestido de couro, com um arco de bugre...A mana estremeceu. Sentiu uma voz là dentro que dizia: é ele! E veio àspressas ao encontro do homem que a moça e a menina não sabiam quem era. Nãose enganara o coração da velha! Na sala, mal vê o chegadiço, a mana solta um gritode festa:— Borba Gato!Era, de fato, Borba Gato. A filha, que ele deixara criança, não o puderareconhecer. A netinha, essa nascera e crescera enquanto o avô andava pelo mato.Mas a mana Maria reconheceu logo o marido. E os dois velhos abraçaram-se ali,chorando, depois de vinte anos de separação.Artur de Sà escuta de muito boa sombra o filho de Fernão Dias. E torna-lhe:— Eu soube dessa volta de Borba Gato ao povoado, Garcia Paes. Nãosoube assim com essas miudezas. Mas soube. E como tenho em grande conta aBorba Gato, nem o quero mal pelo crime que praticou, mandei ordens a ele para quevoltasse ao sertão e se esforçasse por descobrir a serra do Sabarabuçu. Descobrir aSabarabuçu. Vosmecê bem o sabe, é o maior serviço que Borba Gato pode prestarao Rei. E, com tal serviço, o caminho mais certo para que Borba Gato obtenha operdão do crime.www.nead.unama.br43— Mana Maria botou-me a par dessa sua bondade, senhor Artur de Sà. Eaté me mandou estas letras em que vêm as ordens de Vosmecê...Garcia Paes desdobra ante o governador um velho papel. Nele, entre outrascoisas, dizia Artur de Sà: "pelas noticias que tenho, na paragem a que chamamSabarabussú haverà mina de prata; a cujo serviço mando Borba Gato para queexplore os morros e serras que houver naquelas partes.— Perfeitamente, Garcia Paes; foram essas as minhas ordens.— Pois Borba Gato, com essas ordens, tornou ao sertão. E por là andouuma fiada de tempo. Na semana passada, porém, aparece no Taubaté um bastardode Borba Gato. E o bastardo me trouxe a mim uma notícia de peso. Por causa dessanotícia é que eu vim aqui falar com Vosmecê...— Pois é dizer o que hà, Garcia Paes!Cai um relâmpago de silêncio. E Garcia Paes, pausado, olhando fito ogovernador:— Senhor! Borba Gato é homem que não mente. É, como sempre foi,homem inteiro e verdadeiro. Pois Borba Gato mandou dizer que agora, guiado pelosíndios, acaba de descobrir no sertão...Garcia Paes abaixa a voz:— A serra do Sabarabuçu!Artur de Sà franze o sobrolho:— Descobriu a serra do Sabarabuçu? Borba Gato mandou dizer isso, GarciaPaes?— Sim, senhor: mandou dizer que descobriu a Sabarabuçu!Sabarabuçu! Parecia, com o volver de tantos anos, definitivamente esvaida afama da serra mirífica. A fama da montanha-grande-que-resplende, toda de prata,que lucilava encravada dentro dos matos! E eis que agora, là do fundo do sertão,Borba Gato despacha aquela mensagem radiosa: descobrira a Sabarabuçu! Nãopodia haver, como remate àqueles achados que enchiam o sertão dos Cataguazes,coroa mais preciosa nem mais fúlgida.O governador ouve a nova auspiciosa. E com alvoroço:— Garcia Paes, mande avisar a Borba Gato que eu estou de vereda paraRio; mas que, do Rio, irei sem tardança ao sertão das minas. Que Borba Gato,quando tiver conhecimento da minha partida, não se afaste de onde està: eu irei vêlo à serra do Sabarabuçu. Por enquanto, e para mostrar o goto que tive em recebera notícia que recebi, vou dar a Borba Gato uma carta-de-seguro, com franquia, paraque ele possa andar livre, sem medo às justiças, por toda a comarca dosCataguazes.www.nead.unama.br44E assinou a carta-de-seguro. Com aquela carta, jà conseguia o foragidoquase completa liberdade: a comarca dos Cataguazes, naqueles tempos, ia dossertões da Mantiqueira aos sertões do Peru!No mesmo dia, partindo a toda pressa para a banda das minas, um própriolevava a Borba Gato a palavra e o papel do governador.
Primeiro Congresso de História Nacional: Explorações Geográficas, Arqueológicas e Etnográficas