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CARTA DE BALTHAZAR FERNANDES (233), DO BRASIL, DA CAPITANIA DE S. VICENTE DE PIRATININGA AOS 5 DE DEZEMBRO DE 1567.
5 de dezembro de 156703/04/2024 21:57:50
Jornal Correio Paulistano
Data: 10/10/1918
Créditos:

Acabaram-se já, por bondade de Deus Nosso Senhor, de cumprir os desejos de nossos Padres e Irmãos que estão por esta íosta do Brasil com a vinda e visitação do nosso padre Ignaciod Azevedo (234); ficam tão consolados todos, assi do bom exemplo que com suas boas obras lhes deu particular e geralmente, como com declarar as Constituições e Decreto da Congregação, modo de viver da Companhia, que não era cá tão praticado como lá, que una você dizem toãosBenedictus Dominus Deus Israel, quia visitavit plebem suam, por ser tão grande o desejo que tinham de sua vinda e chegada, o qual creio que redunda em grande gloria de Nosso Senhor e do bem das almas de casa e fora, e conversão do Gentio, e finalmente de toda a terra.

Tem já tudo visto, excepto Pernambuco, onde estavam dousPadres quando chegámos á Bahia, e havendo elle de correr ascapitanias que estão pela costa abaixo com o Padre Provincial,deixou ordenado que fossem outros dous Padres para lá emquanto elle não fosse (235), pela necessidade em que parece que estava a terra delles e mais para levarem os avisos necessários, pois que se havia de passar um anno ou mais, como já é passado, sem poder ir lá, porque se navega por esta costa com monções.

Chegámos a esta derradeira capitania de S. Vicente pela quaresma de 1567, na semana de Lázaro. E emquanto nella esteve foi ao campo a uma casa que lá temos, que se chama Piratininga, onde ha conversão de Gentio. Estavam nella dous dos nossos Padres; foi também á outra povoação que se chama Itanhaem, que é visitada dos nossos quando podem, onde também ha Gentio.

E foi por vezes a Santos, que é perto de S. Vicente povoação deBrancos, a pregar e a outros negócios; estaria nesta capitania tres ou quatro mezes, onde acabou de concluir com o padre Luis da Grã, Provincial, e o padre Manoel da Nobrega todo o essencial que convinha á visitação, deixando em escripto tudo o que se determinou acerca do que pareceu que convinha, cujo treslado ficava em cada capitania assi do que convinha para a mesma casa da tal capitania, como para todas as capitanias e provincia queagora temos, em logar de avisos, que guardamos como obediência..

Partiu-se desta capitania pera o Rio de Janeiro, de onde tinhamos vindo com o padre Luiz da Grã e o padre Manoel da Nobrega, e o tempo que chegou a esta capitania véspera de Santiago, onde chegaram todos a salvamento; mas dahi, querendo partir pera a bahia de Todos os Santos e outras capitanias, tresvezes commetteram-no por mar, sem poderem passar Cabo Frio, com ventos contrários e tempestades, e determinando-se a esperar pola monção que vem em Março, todavia o padre Ignacio de Azevedo tinha tão grandes desejos de passar, que mandou o Governador, que está também no Rio, fazer uns bordos a um caravelão que navega bem pola bolina, com 20 ou 30 remos, pera assim poder passar o Padre, e também pola necessidade que havia de passar este caravelão a dar rebate ás capitanias que acudissem ao Rio com mantimentos, por se começar a sentir falta delles.

Do estado em que o Rio está, creio que será V. R. sabedorpor outras: por isso não escrevo isso largamente. A somma dissoé estar o Governador em paz com o Gentio da terra, e os Francezes estão botados já fora delia por guerra, ainda que todavianão deixam de vir algumas naus ao Cabo Frio a fazer suas fazendas e levar brasil, contra quem não pôde ir a nossa armada(ainda que pequena) pólos tempos contrários. Faz na cidade doRio quanto pode.

Li em uma carta que de lá veiu, que havia jánelle 150 e tantos mercadores e que os mais dedes tinham já suasmulheres. A terra é das boas que ha no Brasil; tem muito brasil,algodão e pôde ter muito assucar como o prantarem, e muito mantimento, e muitos legumes, e muitas carnes, como gado vacum,que já ha principio delle, e tem muito pescado e bom, e tudo odemais que é necessário pera a vida, está em bom sitio e tem bonsares.

Os que ficamos nesta capitania de S. Vicente e em Piratininiga sujeitos ao padre Joseph (236) por Superior, somos quatro Padres e um Irmão, Adão Gonçalves (237) se: Gonçalo deOliveira, Affonso Braz, o irmão João de Souza (238) e os outros4 padres Vicente Rodrigues, por Superior, Manoel de Chaves,Manoel Viegas e eu no campo em Piratininga, que está algumas18 ou 20 léguas pelo sertão dentro, por mui áspero e trabalhoso caminho, que tem uma serra grande de passar, a qual é tão alta que faz outra região e campo differente de S. Vicente:

é terracomo essa do Reino, fria e temperada, dá-se nella vinho, azeitesi houver muitas oliveiras, havendo já mostras disso; dá pão comolá, si o semearem, mas é tão bom o mantimento desta terra quenão alembra o pão do Reino; ha muito gado vacum, que cadaanno vem com fruito, por onde se multiplica muito sem trabalho algum por haver muito pasto nos campos, que são mais grandes que os de Santarém, que são de quem nos quer.

Finalmente é esta terra das boas que ha no Reino, e se dará nella, segundo parece, quanto se lá dá: é uma grande magua ver tanta e tão boa terra perdida, não havendo quem na habite, nem cultive. Ao redor deste Piratininga uma duas e tres léguas ha seis aldêas dè índios da terra, afora outras casinhas que estão por diversas partes, dos quaes uns são christãos e outros não.

O nosso exercicio dos que estamos aqui é o mesmo que lá ha,guardando nossas constituições e regras e os avisos que nos deixou o padre Ignacio e o modo de viver da Campanhia, trabalhando cada um de se ajudar dos meios que ella nos dá pera alcançar seu principal fim, com que Deus Nosso Senhor seja maisglorifiçado em nossas almas e nas dos próximos, principalmentenas deste pobre e desemparado Gentio.Dous dos Padres entendem em visitar e ensinar estas aldêas,indo cada somana a uma, uma vez ou mais vezes, e dormindo láuma noite ou duas, como a necessidade pede. O tempo que láestão lhes ensinam a doutrina e as cousas da Fé, e se lhes dánoticia em praticas assim geral como particularmente e para istose tange primeiro nossa campainha chamando-os á doutrina, quese lhes ensina ao pé da cruz.

Este Gentio, assi como é grosseiro de entendimento e bruto,assim não tem malicia, porque, com andarem todos nus assi homens como mulheres, naturalmente nem-um pejo têm, nem reinamalicia nellas e são tão innocentes nesta parte, que parece quevivem no estado da innoceneia; e si alguns têm muitas mancebas,é por serem Principaes, com grande casa, e terem muitos filhos.E está-lhe isto tão encaixado na cabeça que difficultosamentese lhes tira. Querem que lhes façamos todos os filhos e filhaschristãos, e elles mesmos também; mas largarem as mancebas elargarem seus costumes gentilicos e aprenderem as cousas necessárias como são grandes, difficultosamente querem. Os ritos queha entre elles são: terem mancebas, crerem muito seus feiticeiros,de tal maneira que ainda que lhes preguemos contra as mentirasdos seus pagezes quanto se pôde dizer, si um pagez lhe diz umasó palavra em contrario, aquella crêm mais e seguem que quantonós dizemos, e si vão a alguma guerra com grandíssimos trabalhos, si lhe diz um pagez que se tornem ou hão de morrer, oüque dêm guerra ainda que todos morram nella, hão de crêl-o. Omodo que estes feiticeiros (239) têm de os curar é chuparem-nos,mettendo em cabeça ao doente que lhe tirou de dentro do corpouma grande mentira, que lhe mostram, scilicet: uma palha oulinha ou outra cousa que querem. E o doente cuida que fica sãoe lhes dá por esta cura quanto querem e pedem.Estão tão casados com os vinhos que bebem que logo estãoum dia e uma noute continuadamente a beber, ou mais, até quejá a natureza não pôde, que parece impossivel poder-se-lhe tirar4 8 4 LXI. — CARTA DE S. VICENTE (1567)

ou moderar, e quando bebem estes vinhos se empennam de pennas vermedias e amarellas, fadando e gabando-se de suas valentias, contando e fazendo nisto grande matinada.

Os que estão por aqui junto de nós, a quem nós visitamos, algumas cousas destas não fazem, e si o fazem é por detraz e ás escondidas, comonas feitiçarias e outras superstições, principalmente já não matam os seus contrários que tomam em guerras em casas; mas osque estão pelo sertão mais dentro, onde nós não imos o fazem etêm nisto posto sua felicidade, que tomam nisso nomes (240) *decobras, e pássaros, e rãs, e baratas e outros peiores como titulode muita honra e fidalguia, e os que entre elles não têm aindanome desta maneira, si toma algum não deixará de o matar nascordas no meio do terreiro, conforme a seus costumes, ainda quelhe dêem uma casa cheia de resgate, búzios e contas, (241) que édinheiro que corre nesta terra. Mas por esses e outros peceadosenormes que ha entre elles, ha também castigos de Deus NossoSenhor.

É gente pobríssima, que assi como não trazem sobre ocorpo nada, assim não têm nada; ha grandes fornes e elles tãomal apercebidos do necessário que não curam sinão do que teme sente. Ha de quando em quando grandes mortandades entreelles, como aconteceu pouco tempo ha, que pedaços lhe cahiam decarne com grandes dores e um cheiro peçonhentissimo.Dizem e affirmam isto por verdade, que ha nas mattas unsdiabos a que elles chamam Curypyrans (242), que matam a muitos delles e ouvem as pancadas e não vêm quem lhes dá, e assificam logo muitos mortos e lhes apparecem, segundo elles dizemvisões, que depois morrem disso.Um homem branco nosso amigo e digno de fé, que foi muitopelo sertão dentro a resgatar com elles cera, redes e peças, noscontou que andando pera matar um menino, tamaninho que otraziam no collo correndo toda aldêa com elle, pedindo-lhes muito que lho vendessem pera o tirar dessa extrema necessidade e não querendo, lhes pediu que lhe deixassem fazer christão, o que elles não recusaram. Mataram-no depois de feito christão, e aconteceu que a casa do Principal da aldêa, que era grande, ardeu toda, não se sabendo como, e ella só no meio das outras, e o 4 8 5 BALTHASAR FERNANDESmesmo Principal cuidando nisto morre subitamente, porque são mui sujeitos á malenconia (243). Como adoecem são desemparados dos mesmos seus e morrem ao desemparo.

Acerca do fruito que fazemos na conversão deste desemparado Gentio creio que é grande diante de Deus Nosso Senhor-,tomando a.. . secca e nua de todas as partes, de maneira que delles não temos outra cousa sinão ter muita paciência em os soffrere trazer o coração no céo andando pola terra, passando por suascasas e deitando mão delles nos trabalhos e perigos de vida emque se acham, nos quaes principalmente parece que os toca NossoSenhor, e de seus filhos bautisando-lh os e doutrinando-lhos,principalmente dos filhos daquelles que estão seguros de não tornarem ao certão a viverem conforme a seus costumes, e aos outros e a todos in extremis, que isto é o que ganhamos andandosobre elles.

E a doutrina e ensino que lhes damos servem de estarem melhor apparediados pera esta hora, dando-lhes noticia da Fé, dizendo-lhes mal de seus peceados, que elles hão de avorrecer sobretudo por amor de um Sancto e Summo Bem que ha de ser sobre tudo amado. E já pôde ser que isto lhes aproveite tanto que os alumie Nosso Senhor no tempo dos perigos, porque creio verdadeiramente que entre elles ha de haver alguns que Nosso Senhor tenha predestinados pera si, e outros porventura que cuidaram que não ha mais que fazer, não lhes cahira tão boa sorte como a estes, cujo signal se viu em muitas obras marav7lhosas que Deus tem feitas cá pólos nossos, das quaes não faço menção nesta.

Somente direi aqui o que me aconteceu, que ha quatro diasque cá estou, ao qual dou muitas graças a Deus Nosso Senhor,sendo indignissimo disso, e querendo-se elle servir de um tão vilinstrumento como eu sou cá nestas partes.

Indo com outro Padre em companhia a umas aldêas, no caminho nos deram novas em como estava uma índia já de diaspera morrer, já sem falia, que não era christã.

Chegando-nos,bradamos por ella; parece que tornou a viver e fallou-nos e pediu com muita instância que a bautisassemos: apparelhada o melhor que pudemos, bautisei-a; dahi a nada deu a alma a seu4 86 LXI. - , CARTA DE S. VICENTE (1567)Creador, por onde senti uma consolação tão grande em minhaalma que parece que a tinha Deus assim esperando por nós peraque por meio do bautismo lhe desse sua gloria. Fui a outro comoutro companheiro muito á pressa estando pera morrer; apparelhámol-o e casamol-o primeiro em lei da natureza, porque nãoera christã a com quem elle estava, e depois de bautisado, dahia pouco tempo morreu.

O mesmo digo de outros dous adultos que bautisei in extremis, que morreram. Destes tinha muito que escrever si faliara* dos nossos Padres, mas porque não são bautismos solemnes cá celebrados, sel-o-hão diante do Supremo Juiz e de todo o mundo, como eu espero, e ainda que cá se não achem as pedras preciosas em minas publicas e polas praças, acha-se todavia quem nas sabe buscar varrendo a casa ainda que seja entre o cisco e no monturo, a qual aehada por bem empregado hei de vender tudo, deixar a pátria, passar os mares; desta ha muitas nestas terras perdidas, esmaltadas com o sangue de Jesus Christo, assi pera nós como pera os que de lá vierem, si cavarmos bem e buscarmos onde as ha.

Nosso Senhor nos dê sua graça com que imitemos aquelle que tomou sua ovelha perdida ás costas e sobre seus hombros, tomando nós ás costas e sobre nossos hombros estas que por cá andam perdidas e na bocca do lobo, pera que as tragamos ao seu curral e se faça unum ovile et unus pastor, pera o qual eu peço para mim e para os meus Padres e Irmãos que cá andamos sua benção e sermos encommendados em seus santos sacrificios e orações.

Do Brasil, da capitania de S. Vicente de Pyratininga, aos5 de Dezembro de 1567.
CARTA DE BALTHAZAR FERNANDES (233), DO BRASIL, DA CAPITANIA DE S. VICENTE DE PIRATININGA AOS 5 DE DEZEMBRO DE 1567.


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