A Heresia dos Índios - Catolicismo e Rebeldia no Brasil ColonialRonaldo VainfasCompanhia das Letras, 261 págs.R$ 21,00
Bahia, 28 de junho de 1591: Heitor Furtado de Mendonça dá início à primeira Visitação da Inquisição às terras do Brasil, que tem como objetivo tornar efetiva a administração inquisitorial da fé (e em particular a perseguição aos judaizantes) nas capitanias do Brasil, desde o início colocadas sob a jurisdição do Tribunal de Lisboa.
Nada faz crer que a Visitação tenha tido alguma finalidade mais específica, ou que o Visitador tenha vindo preparado para encontrar algo diferente do que já conhecera, ou julgava conhecer, em Portugal. Mas logo no segundo dia do período de graça reservado às confissões e denúncias, aparecem duas pessoas a denunciar Fernão Cabral de Taíde, acusando-o de ter dado proteção em sua fazenda a um grupo de índios que praticavam cerimônias pagãs.
Nos dias que se seguem multiplicam-se as denúncias contra o senhor de engenho: chegam a ser 38, quase um quinto de todas as denúncias feitas em Salvador. Enquanto tenta reconstruir o episódio e desvendar as motivações dos intervenientes, o Visitador dá-se conta, talvez, de que está a lidar com algo que ultrapassa a sua experiência inquisitorial.
Os fatos, tanto quanto é possível hoje saber, foram os seguintes. Entre seis e dez anos antes, aparecera no sertão baiano um profeta indígena, que juntou à sua volta uma comunidade de algumas centenas de índios empenhados na procura da ``Terra sem Mal".
O fenômeno em si, conhecido como ``santidade", não era novo e encontrava-se profundamente enraizado na cultura tupi-guarani. As suas cerimônias tinham já sido descritas, a partir de 1549, por Nóbrega, André Thévet, Hans Staden, Jean de Léry e outros. E em princípio essas ``santidades" não diziam respeito à Inquisição, que só tinha autoridade sobre cristãos batizados.
Acontece, no entanto, que começaram a ser atraídos para a comunidade do profeta um número sempre maior de índios foragidos dos engenhos e fazendas do Recôncavo ou fugitivos das missões. Algumas fazendas e um aldeamento jesuítico foram incendiados.
Senhores de escravos e jesuítas começaram a reclamar providências, e em 1585 o governador Teles Barreto enviou uma expedição para cortar o mal pela raiz. Quase ao mesmo tempo partia outra expedição, particular, enviada por Fernão Cabral de Taíde, com o objetivo de atrair o profeta e a sua comunidade pacificamente para as suas propriedades em Jaguaripe, no litoral.
Argumentando que assim seria mais fácil destruir a seita, Cabral logrou convencer o governador a ordenar o regresso de seus homens. A expedição de Cabral, liderada pelo mameluco Domingos Fernandes Nobre, o Tomacaúna, estabeleceu contato com a comunidade.
Depois de se ter integrado na ``santidade", Tomacaúna convenceu uma parte dos seus componentes a irem estabelecer-se na fazenda de Cabral. Aí foi criado um novo grupo, chefiado por uma profetiza, que começou a atrair índios escravos das fazendas das redondezas.
Há notícias, também, da adesão de mamelucos, negros da Guiné e mesmo brancos. Cabral prestou-lhes apoio, pelo menos apoio material. Argumentando que tudo não passava de um estratagema de Cabral para aumentar a mão-de-obra à sua disposição, os colonos da Bahia pressionaram o governador, até que este finalmente ordenou a destruição da comunidade e a devolução aos seus legítimos donos dos escravos que se tinham refugiado em Jaguaripe.Quer tivesse realmente tido como objetivo atrair a seita para o litoral para depois a destruir, quer visasse apenas reforçar o seu poder temporal, parece muito provável que o apoio dado por Fernão Cabral aos membros da ``santidade" tenha sido de caráter essencialmente instrumental. Mais complicada era a situação dos mamelucos que tinham dado sinais inequívocos de adesão à ``santidade". Entrava aqui em jogo toda a ambiguidade da sua identidade cultural híbrida: filhos de pais europeus e mães índias, tinham vivido longos anos como índios entre os índios, mas também punham os seus conhecimentos da língua e vida indígena ao serviço dos colonizadores. Tinham, em alguns casos, praticado a antropofagia, mas organizavam também expedições a fim de capturar índios para as fazendas do litoral.A adesão ativa dos mamelucos à ``santidade" configurava-se como um caso evidente de apostasia herética. Mas o Visitador, considerando o serem ``da casta dos gentios" apenas como atenuante, menosprezou as suas implicações. Emblemático da maneira como o Visitador se mostrou incapaz de ultrapassar o sistema de classificações elaborado para dar conta das realidades européias foi um dos interrogatórios de Tomacaúna. As tatuagens do mameluco -sinais evidentes da pr tica da antropofagia- tinham despertado a desconfiança do Visitador. O mameluco alegou ter aderido à seita por fingimento e ter-se riscado para se parecer valente e facilitar a sua aceitação pelos índios. No terreno movediço das identidades culturais, a sua formação inquisitorial deixara Furtado de Mendonça impreparado, e ele aceitou a justificação. Mas, em relação a outra questão, que lhe era mais familiar e lhe pareceu ser terreno mais seguro, foi mais insistente. Durante as suas incursões pelo sertão, teria Tomacaúna sempre respeitado as restrições alimentares impostas pela Igreja? Quantas vezes comera carne em dias proibidos? Não tinha ``farinha, favas, abóboras, milho, frutas do mato ou algum peixe" para comer nesses dias?A incompreensão do inquisidor reflete a distância que já separava o universo mental europeu das realidades culturais da sociedade brasileira em formação. Em seu esplêndido novo livro ``A Heresia dos Índios", Ronaldo Vainfas procura reconstituir toda a complexa ambiguidade da identidade cultural mameluca, utilizando como ponto de partida a sua participação no episódio da ``santidade de Jaguaripe". Seguindo a esteira do clássico estudo de Carlo Ginzburg, ``Os Andarilhos do Bem", Vainfas tira partido das incompreensões do Visitador para retirar da documentação inquisitorial elementos fragmentários (mas não deformados, porque não enquadráveis no esquema inquisitorial), que lhe permitem uma reconstrução muito sugestiva dessa identidade mameluca.
Mas não era só a cultura colonial que se tornava híbrida e ambígua. Servindo-se da extensa documentação inquisitorial sobre a ``santidade do Jaguaripe" e comparando as informações obtidas com relatos anteriores sobre as ``santidades" das décadas de 1540 e 1550, Vainfas mostra como esse movimento já manifestava sinais evidentes de colonização do imaginário tupi-guarani.
O próprio profeta, para começar, tinha sido catequizado pelos jesuítas e chamava-se, indiferentemente, Tamandar e Antonio. Os que aderiam ao grupo eram rebatizados, as figuras principais com nomes de santos, os restantes com nomes tupis.
Em Jaguaripe, o grupo tinha à sua frente uma profetiza -fenômeno desconhecido no mundo tupi- que se chamava... Santa Maria Mãe de Deus.Analisando a maneira como os jesuítas tinham traduzido termos e conceitos cristãos para a língua geral, Vainfas mostra como os elementos mais ``heréticos" do culto da ``santidade", e o caráter insurgente do movimento, tinham em grande parte a sua origem nos esforços sincretísticos de tradução religiosa empreendidos pelos jesuítas. Reelaborando de maneira inesperada o mito tupi, e espelhando involuntariamente as categorias mentais dos colonizadores, os membros da ``santidade do Jaguaripe" se propunham instituir a ``Terra Sem Mal", substituindo-se aos jesuítas e escravizando os portugueses...A ``santidade de Jaguaripe" foi em igual medida reação à colonização e seu produto direto, e refletia as ambiguidades e contradições da Bahia quinhentista. O próprio fato de se terem tornado hereges significava que os índios da ``santidade de Jaguaripe" já faziam parte, embora numa posição subalterna e, por isso mesmo, potencialmente insurgente, da sociedade colonial em formação.Texto Anterior: O singular universalPróximo Texto: Outras intençõesÍndice