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“São Paulo na órbita do Império dos Felipes: Conexões Castelhanas de uma vila da américa portuguesa durante a União Ibérica (1580-1640)” de José Carlos Vilardaga
201004/04/2024 03:40:48
SP na órbita do império dos Felipes
Data: 01/01/2010
Créditos: José Carlos Vilardaga

por um de largura, deveria contar ainda com um andaime de proteção para os vigilantese defensores da vila.261 Seu caráter defensivo era, assim, visualmente, evidente.

De fato, desde o princípio da vila, a manutenção dos muros de taipa figurou como uma preocupação oscilante em função dos momentos mais, ou menos, ameaçadores. Na década de 1560, por exemplo, a vila viveu sob assédio constante dos índios que habitavam o entorno. Verdadeiramente, seus primeiros anos não foram nada fáceis. Em julho de 1562, uma reunião de índios que resistiam à presença portuguesa no planalto, somada a grupos já supostamente catequizados, e bastante insatisfeitos, promoveu violento ataque à vila, colocando, pela primeira vez, em xeque a rede de alianças costuradas pelos colonos com as lideranças indígenas locais. Do lado dospadres e colonos, o cacique Tibiriçá, aliado de primeira hora, lideraria o exército defensor. Mas, ao final, ele mesmo seria abatido pelo inimigo que não poupou vítimas entre os índios agressores ou defensores da vila: o vírus da varíola. Ao lado do famoso cacique, seu genro, o ressentido João Ramalho, foi decisivo na defesa da vila de São Paulo neste crítico ano de 1562. Ramalho guardava consigo a insatisfação do desmanche da antiga vila de Santo André, onde fora patriarca e peça chave.262

Nas Atas dos anos de 1562 e 1563, encontramos a aflição dos oficiais quepediam, com recorrente urgência, para se “acabar os muros e baluartes”, “fechar as portas com cadeados” e “construir guarita”. Em 5 de novembro de 1562, os oficiais deram um ultimato para que os moradores terminassem os muros da vila. Ainda em dezembro do mesmo ano, Salvador Pires, procurador e povoador dos antigos, foi enviado “ao mar” para comprar coisas importantes para a defesa da vila.

Salvador era filho deJoão Pires, o Gago, que viera com Martim Afonso de Sousa em 1531. Residiu em SantoAndré da Borda do Campo, vila em que seu pai foi o primeiro juiz ordinário, e depois setransferiu com outros colonos para São Paulo, onde ganhou sesmaria do capitão-morJerônimo Leitão. Foi o procurador do concelho, em 1563, juiz, uma década depois, evereador, em 1578. Casou-se com Mécia Fernandes, ou Mécia Açu, num dos típicoscasamentos do planalto de Piratininga, ocorridos entre um colono branco e uma índia, e com nítida função de estabelecer alianças. Ela, Mécia, era filha do cacique Piquerobi, deUruray, mais tarde aldeamento de São Miguel.264

O clima de guerra e de preocupação com a ameaça indígena só fez crescer ao longo destes anos, tanto que os oficiais da Câmara recomendaram, em fevereiro de 1563, que todas as portas da vila fossem fechadas com cadeados para evitar possíveis ataques indígenas [13/02/1563].

Outro personagem de proa na pequena vila, peça chave na sua defesa, ao lado de Salvador Pires, foi Domingos Luis, o Carvoeiro, eleito “capitão do gentio” em 1563. Domingos Luis teria recebido tal epíteto por ter nascido em Marinhota, freguesia de Santa Maria da Carvoeira. Foi casado com Ana Camacho, bisneta de João Ramalho, e, muito provavelmente, era oficial mecânico, uma vez que havia participado da construção da igreja dos jesuítas e, mais tarde, da igreja do Guaré, origem de Nossa Senhora da Luz. Deveria ser um sujeito um tanto irascível, visto que Anchieta chegou a avisar ao capitão-mor Jerônimo Leitão que Domingos Luis estava acabando a Igreja, mas que os índios se achavam meio amotinados, pois tinham “medo do carvoeiro” [“Carta de Anchieta, de Piratininga, ao cap. Jerônimo Leitão”. 15/11/1579. Cartas, Informações, Fragmentos históricos e sermões do Padre Anchieta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933.].

Apesar de desempenhar funções no concelho desde os anos 1570, em 1584 houve uma tentativa de impedir que Domingos Luis assumisse cargos na república, por “não haver entrado até agora em oficio” [04/08/1584]. Naquele momento, seu passado de oficial mecânico deve ter pesado contra ele.

Retomemos o ano de 1563, mais especificamente junho, quando Pires recomendou que nenhum índio fosse levado para fora da vila e que se recolhessem os que estivessem espalhados pelas “taperas”, porque as notícias de uma guerra eminente aumentavam a dependência dos colonos em relação aos gentios aliados para sustentar a defesa de São Paulo. Assim, reforçava-se a proibição de que índios fossem mandados ao sertão e ao “quãopo” (campo) [26/06/1563].

Em maio de 1564, os oficiais da câmara redigiram uma carta a Estácio de Sá,capitão-mor da armada do rei, estacionada em São Vicente, reclamando sua ajuda paraenfrentar os índios tamoios que ameaçavam a vila. Falavam da importância de SãoPaulo, seja para a criação de gado e o abastecimento de São Vicente, seja pelo papel domosteiro de São Paulo, da Companhia, e seu trabalho missioneiro. Ressaltavam que acapitania de São Vicente estava na fronteira, “entre duas gerações de gente de várias qualidades e forças que há em toda a costa do Brasil como são os tamoios etupiniquins”, e que era constantemente ameaçada e cercada por inimigos. Lembravamcom pesar a morte de homens brancos que haviam perecido no sertão, como Franciscode Serzedo e João Fernandes. Por fim, constava um alerta com tom de ameaça: se nãofossem socorridos, abandonariam a vila. A ameaça não foi, como sabemos,verdadeiramente cumprida, e os moradores não só reagiram como, mais tarde, partirampara a ofensiva.269Já nos anos 1570, como as tensões se amenizaram, os sinais de relaxamentoquanto à defesa da vila foram notórios. Em 1575, por exemplo, Domingos Rodriguesabriu uma porta indevida no muro de taipa, por sua conta e risco, somando assim maisuma às duas “oficiais”. Por notificação da Câmara, foi obrigado a fechá-la e ainda pagaruma multa. O sujeito não se deu por vencido e, via petição junto ao capitão-mor,explicou que sua roça ficava do lado de fora do muro e que, se não tivesse aquela porta,sua mulher e “escravos” teriam que andar demais para executar o serviço. Ao final,ressaltou sua pobreza - e a da terra - como justificativa. O despacho final liberouDomingos da dívida, mas negou-lhe a reabertura da porta, afinal “por enquanto énecessário ficar a vila cercada”.270

Nesta década de 1570, a ameaça mais imediata de ataques de índios inimigos parecia estar afastada, mas a preservação dos gentios aliados e de serviço na vila ainda era uma preocupação. Em junho de 1572, num auto de ajuntamento, “todo o povo da vila” recomendava que ninguém ajuntasse índios para serem levados ao Rio de Janeiro sob pretexto de irem à guerra ou prestar socorro, uma vez que nenhum pedido oficial deste tipo chegara a São Paulo. Dentre os que deveriam ser notificados estava Domingos de Braga, parente provável de Diogo de Braga, que em 1562 já havia sido notificado por recolher índios de São Paulo e andar pra fora da vila com eles e os Lucena.271

Portanto, a disputa e a administração em torno desta população indígena,cada vez mais essencial tanto na guerra, quanto na paz, tanto no trabalho quanto namanutenção da vila, foram, nos anos de 1560-1570, das questões que mais mobilizaramos moradores. Ao mesmo tempo, os Braga e os Lucena parecem revelar que, desdemuito cedo, alguns núcleos familiares da vila se especializaram na arregimentação etranslado de índios pelos caminhos da vila de São Paulo, que não eram poucos. [Páginas 83, 84 e 85]

Também na década de 1570, surgiram as primeiras medidas para a regulação davida urbana, o que denotava certa estabilização e incremento populacional. Nestesentido, citamos medidas e notificações quanto ao uso das muradas, usadas, por algunsmoradores, para abrir portas ilegais ou como paredes de casas ou apoio para chiqueiros,e pedidos para “alimparem” as frentes das casas. Na parte interna aos muros, umuniverso modesto de casas de taipa e cobertura de palha predominava numa espécie depolígono permeado de ruas tortuosas, becos e azinhagas. Ainda em 1581, o único lugarde culto era a igreja do colégio dos jesuítas, de certa forma a origem da vila cerca detrinta anos antes. Fernão Cardim, circulando por São Paulo um ano depois, comentavaque, na vila, não havia cura “nem outros sacerdotes senão os da Companhia, aos quaistem grande amor e respeito e por nenhum modo querem aceitar cura”. E complementavaque não tinham “igreja na vila senão a nossa. Os moradores sustentam seis ou sete dosnossos, com suas esmolas e com grande abundância”.272 Tal situação não perduraria, e,poucos anos mais tarde, a igreja do colégio começaria a enfrentar a concorrênciaespiritual da Matriz, iniciada em 1588.A população do planalto era bastante espraiada, e costumava refugiar-se nonúcleo urbano nos momentos de tensão. Grande parte dos povoadores vivia na árearural, extra-muros, onde mantinha suas terras, lavouras e criações. Alguns colonostambém conservavam casas de taipa na vila para assistir às procissões, missas ouparticipar de eventos extraordinários. Dentre os espaços rurais ocupados entre os anos1560 a 1580, o principal acompanhava o Tamanduateí e englobava o Ipiranga e a regiãoonde hoje é Santo André. Iniciou-se também o avanço na direção de Carapicuíba eNossa Senhora do Ó. A partir de 1580, já havia alguns colonos em torno dosaldeamentos de Pinheiros, São Miguel e Guarulhos. Nas décadas iniciais, a vila apresentou um pequeno desenvolvimentopopulacional. Em carta de 1561, a recém-formada Câmara de São Paulo informava àrainha Catarina que conseguira mobilizar “trinta homens brancos” e outros “trintamancebos mestiços da terra” para se juntar aos índios na defesa da vila. Era ainda omomento em que se solicitava à rainha que “os degredados que não sejam ladrões sejamtrazidos a esta vila para ajudarem a povoar porque há aqui muitas mulheres da terramestiças com quem casarão e povoarão a terra”.273 Cardim falou de “120 vizinhos”, em 1582, dado reproduzido por Anchieta, em sua Informação do Brasil, de 1584.274 Em 01de maio de 1589, os oficias da Câmara requereram junto ao governador-geral, atravésde carta, a nomeação de um vigário, visto que a Matriz já havia sido iniciada, o povoestava fintado e a população ultrapassado os 150 moradores. Segundo levantamento deNuto Sant´Anna, no período de 1554 a 1570, havia cerca de 80 “homens livres”(brancos e mestiços) e, entre 1581 e 1590, foram localizados 171 moradores,apresentados por ele nominalmente. Podemos então, com relativa segurança, afirmarque, por volta de 1580, o planalto contava com uma população de 120 moradores,considerando-se os mencionados homens livres (brancos e mestiços), mas nãonecessariamente chefes de família e donos de bens de raiz.275. A levar em conta olevantamento de Nuto Sant´Anna, esta população teria sofrido um incremento de 50novos moradores até o final da década, que bem podem ser, em parte, filhos tornadosindependentes, mas que devem, certamente, incluir levas de forasteiros recémchegados.276 Naquele contexto, e em termos relativos, representavam cerca de 40% deincremento populacional em uma década. Além de diminuta, pouco variada: esta poderia ser a descrição do perfil dapopulação da vila em seus primeiros anos. A maioria esmagadora era lusitana emameluca e, apesar do trânsito assíduo no mundo paraguaio desde os anos 1550, erampoucos os castelhanos, à primeira vista, que se estabeleceram em São Paulo. Somentenos anos de 1580, surgem, por exemplo, Alonso Peres Cañamares, vindo do Paraguai noretorno de uma expedição paulista, os Saavedra, provavelmente de mesma procedência,e alguns homens de origem flamenga, como Francisco Teixeira Cid e Jacques Felix.277Muitos nomes, aportuguesados, escondem as origens de diversos personagens, emboraalguns poucos possam ser minimamente identificados, como os Malio, de origemitaliana, ou os Furquim, de origem francesa. De qualquer modo, entre 1560 e 1580, apopulação da vila era reduzida e marcada por algumas figuras relevantes como os já [Páginas 86 e 87]

aldeia indígena de Ururaí, do chefe Piquerobi. A aldeia foi batizada de São Miguel pelopróprio José de Anchieta, provavelmente inspirado no padroeiro de sua terra natal,Tenerife. No final da década de 1570 e início dos anos de 1580, a aldeia foi bastanteassediada pelos moradores da vila de São Paulo, que disputavam sua força de trabalho eterras. Nesse sentido, a Câmara se viu pressionada a tentar frear o ímpeto de avançosobre os índios:280Nenhuma pessoa de qualquer qualidade e condição que seja não façam casas nasaldeias dos índios nem em seus arrabaldes menos de duzentas braças e querendo afazer menos pedirá licença aos oficiais que ao tal tempo servirem e isto por razãode muitos inconvenientes e agravos que se fazem aos índios...281 Buscava-se, assim, disciplinar uma população que parecia cada vez mais ansiosae necessitada da mão de obra indígena, teoricamente disponibilizada pelas aldeias. Aconcessão de uma sesmaria efetuada pelo capitão-mor Jerônimo Leitão em 1580, sobpressão dos jesuítas, revelava o início das tensões e contradições que só se ampliaramao longo das décadas seguintes.282 Nos anos 1580, com a vila ainda bastante vulnerávelem suas defesas e estabilidade, o poder de pressão ou mesmo as necessidadeseconômicas não permitiram que os colonos do planalto estabelecessem um desafioaberto à autoridade dos padres. Em termos econômicos, a vila, nestes anos de 1570 e 1580, tinha um perfilbasicamente de subsistência, produzindo ainda um excedente pouco representativo parao comércio. Desde as análises de John French até as mais recentes, o que se percebe éque a virada econômica substancial da vila de São Paulo teria ocorrido a partir dos anos1590, e, para isso, concorreram a estabilização dos conflitos com os indígenas dosarredores, ou seja, a pacificação do planalto, e a disponibilização de terras de um rocioem expansão sucessiva. A busca pela mão de obra passou, então, a mover e mobilizar asenergias da vila em torno do suprimento de trabalho para as lavouras em expansão.283Nos anos iniciais da década de 1580, a produção, ainda bastante exígua, era detrigo, algodão, cana-de-açúcar para aguardente, vinha, marmeleiras, rosas, gado, “suínos [Página 89]

dez, e doze mil marmelos, e aqui se fazem muitas marmeladas e cedo se escusarão asda ilha da Madeira.286A venda de marmelada para outras regiões deveria render algum lucro e a feituradas caixas constituía, sem dúvida, uma das atividades dos carpinteiros da vila. Oschamados oficiais mecânicos, categoria a qual os carpinteiros pertenciam, não eramabundantes na vila até a virada da década de 1570. De fato, ainda em 1575, diante danecessidade de se fazer uma caixa para a guarda de papéis da Câmara, os oficiaiscomentavam que “nesta vila não há carpinteiro”.287 Seu aumento numérico poderiasignificar um certo aumento da prosperidade da vila, mas, segundo algumas análises, nocaso de São Paulo, a autossuficiência dos moradores - geralmente entocados em suascasas rurais, dispondo de razoável mão de obra servil, e alguns deles introduzidos nospróprios ofícios - impedia que essa possível prosperidade se alastrasse ou sedescentralizasse para outros setores.288A regulação e fiscalização dos ofícios mecânicos foi tema frequente entre osoficiais do concelho. Ilustrativo disso é o caso de Bartolomeu Fernandes, ferreiro, quefoi multado em dez cruzados por ensinar o ofício a um índio, em sessão de 1578. Nestamesma sessão, estabeleceram-se “taxas nos oficiais sapateiros, ferreiros, carpinteiros,carniceiros e alfaiates”. Dois anos depois, Bartolomeu foi multado novamente, pelamesma razão: continuava a ensinar o ofício ao mesmo índio, que, nessa altura, jádeveria ser hábil ferreiro. Aos carpinteiros, além das caixas de marmelada, coube muitodas funções de marceneiros, como, por exemplo, a produção de um rústico mobiliário.Foram também importantes na construção de um casario, tanto urbano quanto rural, queganharia maior concretude e solidez na mesma medida em que a vila se estabilizou e seconsolidou.De todo modo, diante das cobranças das autoridades do reino ou da capitania, apequena população do núcleo tentava, sempre que possível, fazer valer sua vontade.Assim, reagiu à demanda de entregar gado à armada de Estácio de Sá estacionada emSão Vicente, nos anos 1560, e à tentativa, em 1576, do almoxarife de sua alteza, Martimda Costa, de cobrar os dízimos dos peixes retroativos a nove anos, formando doisajuntamentos do povo, em 25 de julho e 30 de setembro, para rejeitar a ideia. Alegavamsimplesmente não ter dinheiro e que o foral de doação da capitania impedia a cobrança.289 Sob a ótica do “povo”, tornava-se urgente enviar gente para contestar acobrança.Já no final da década de 1570, a vila começou a ter seus primeiros criminosos,mas ainda carecia de aparelho carcerário. Os oficiais camarários reclamavam que,quando havia um preso, não poderia haver sessão da Câmara, visto que compartilhavamo mesmo aposento. O juiz de 1579, Antônio Bicudo, declarava acintosamente que nãomandaria prender ninguém, já que não adiantava nada, pois um preso acusado de furtoera visto andando livremente pela vila.São Paulo era, verdadeiramente, uma pequena, miúda, vila do império portuguêsna América prestes a mudar de mãos a partir de 1581, com o juramento de Tomar. Nesteano, exerciam seus ofícios na Câmara os juízes Domingos Dias e Manuel Ribeiro; osvereadores Manoel Fernandes, o moço, e Antônio Bicudo; e o procurador Salvador dePaiva. Todos eles eram moradores pioneiros e estavam organizados no modelogeneralizado de concelhos municipais na estrutura administrativa portuguesa, commínimas variações no número de vereadores (de dois a três) ou na existência, emalgumas vilas maiores, de um juiz de fora. São poucas as atas restantes deste ano, enenhuma delas dá conta da virada política no destino do reino de Portugal e suaspossessões. A posse da nova dinastia castelhana passou em branco, ao que parece, nadocumentação oficial paulista. Por meio das atas e à primeira vista, a vida parecia terseguido sem sobressaltos e sem reviravoltas.Segundo Carvalho Franco, 1581 também foi o ano da primeira grande expediçãodos colonos da capitania à região do Paranapanema, alcunhada pelos castelhanosassuncenhos de Guairá. O capitão Jerônimo Leitão teria subido o Tietê e feito umagrande arregimentação de índios tupiniquins e carijós.290 A única referência na Câmarasobre esta presumível expedição trata dos preparativos feitos na vila em 15 denovembro de 1580, quando “estavam os mancebos para irem a guerra a Paraíba...”. Dequalquer forma, é um nítido sinal de que a vila estava saindo da condição defensiva,predominante nas duas décadas anteriores, e parecia partir para a ofensiva.291Esta teria sido apenas a primeira de uma série de investidas lideradas por estelongevo capitão-mor de São Vicente. Durante vinte anos, entre 1572 e 1592, com [Páginas 91 e 92]

De todo modo, vale a pena procurar descobrir quem eram, afinal, estes“pobrecitos” povoadores perseguidos por Valdés. Embarcados, em sua esmagadoramaioria, em Sevilha ou Cádiz,304 sem saber exatamente para qual destino ou função,vários destes homens de guerra, marinheiros e povoadores ficaram pelo caminho,espalhando-se por diversas partes da América. Na verdade, através do relato de PedroSarmiento, ficamos sabendo que, já em Cabo Verde, pelo menos 50 tripulantes teriamfugido.Dentre os embarcados, encontravam-se inúmeros portugueses, como os queaparecem na “Relação de estrangeiros residentes em Charcas” mandada fazer pelolicenciado Alonso Maldonado de Torres em 1610, segundo as ordens de Sua Majestade:Pedro Gonçalves, de la ysla Tercera, no tiene hazienda, a veinte y ocho que vinoem los galleones de Flores Valdés sin licencia de Su Magestad, tiene quarentaanos” e “Domingos Sobrinho, natural de la ciudad de Lisboa, tiene de haziendaun yngenio de moler metales em esta villa, a mas de treinta años que vino en laflota de Diego Flores de Valdés sin licencia de Su Magestad, cinqüenta e cincoanos.305As Índias, ou mais genericamente “lá para as bandas do Peru”, deveriam fascinare aguçar a imaginação de alguns destes personagens embarcados nas armadas, poisrepresentavam, no imaginário ibérico, a aventura, a riqueza e a fuga, todas permeadasde uma grande névoa de geografia e sonho. Foi no contexto da armada de Valdés, porexemplo, que Potosí estava no auge em termos de produção, constituindo, efetivamente,um “motor” para o movimento migratório entre os anos de 1570 e 1620.306 Na frota deValdés, podemos destacar alguns dos embarcados que nos interessam mais detidamenteneste capítulo: Bartolomeu Bueno, Josepe de Camargo, Francisco Martins Bonilha, JuanMartins Barragan, Antonio Raposo, Antonio Preto, Marcus Lopez e Diego Sanchez.Bartolomeu Bueno era carpinteiro da ribeira de Sevilha, daí o nome pelo qualficou conhecido - Bartolomeu Bueno da Ribeira. Segundo Carvalho Franco, emhipótese com a qual concordamos, o Ribeira se associava aos carpinteiros contratadosna ribeira (da ribeira), em Sevilha, o que filiava o nome “carpinteiro de ribeira” àconstrução naval.307 Segundo Pedro Tacques, a chegada de Bartolomeu Bueno em São [Página 97]

querido de Anchieta, ou pelo papel de destaque que os Buenos, igualmente uma famíliade castelhanos, tiveram no bairro. Mesmo assim, o ofício de carpinteiro de Bartolomeu continuou a ser relevantena sua identificação no cotidiano da vila. Em 1588, o também carpinteiro GonçaloPires, morador da vila desde os anos 1570 e improvisado na construção do prédio doconcelho, queixou-se de que, em uma de suas ausências da vila como juiz do ofício,tivera sua casa invadida e seus padrões de aferimento entregues para o recém-nomeadojuiz dos ofícios de carpinteiro Bartolomeu Bueno. Segundo Pires, o castelhano“aferindo ele uma vara, a não soubera aferir, que lhe nem a vara, nem terças, nemsesmas; somente marcava nas cabeças”.344 Mesmo criticado em sua capacidade, issonão impediu que Bartolomeu se mantivesse como juiz do ofício até 1629, funçãointerrompida presumivelmente por sua morte.345 Em 1602 o próprio Bartolomeu seriaconvocado pela Câmara para averiguar as obras da Igreja Matriz, ainda inacabada e comdiversos problemas estruturais. Pelo visto, ele mesmo não resolveu a questão, já que amatriz viria a ser terminada somente no final da década, com o impulso construtor doengenheiro flamengo Cornélio de Arzam, recém-chegado à vila em companhia do entãonomeado governador da Repartição Sul, Dom Francisco de Souza. Em suma, após engajar-se na armada de Valdés em meio à crise dos anos 1580em Sevilha, Bartolomeu chegou à vila de São Paulo, onde, em menos de dez anos, sefirmou como homem bom, com bens de raiz e gado, carregado de filhos e tendo acesso afunções na república, apesar de sua condição de analfabeto e oficial mecânico. Dentreseus filhos, dois se casaram com filhos de Josepe de Camargo (Izabel da Ribeira comFrancisco de Camargo e Bartolomeu Bueno da Ribeira com Mariana de Camargo); umcom uma filha do Carvoeiro (Amador Bueno com Bernarda Luiz) e outro com uma netade Antonio Preto (Jerônimo Bueno com Clara Parente). Nestes anos iniciais, a origemcastelhana parece ter pesado muito pouco na inserção de Bartolomeu no contexto davila. Seguramente não o atrapalhou, considerando-se a recepção bastante positiva quetiveram, inclusive, outros castelhanos, como o próprio Camargo, os Saavedra, os Godoye mesmo o “galego de nação Jorge de Barros Fajardo”, genro de João Maciel. Nosso outro castelhano, Josepe de Camargo, tem uma trajetória um pouco maislacunar, em termos de documentação. Casou-se com Leonor Domingues, filha do [Página 108]

engenhos, obrigando o capitão a pedir socorro junto aos moradores da vila de SãoPaulo, que, simplesmente, se recusaram a prestá-lo. Entre os conflitos do mar e dosertão, optaram pelo do sertão, que lhes dizia respeito.361

Embora, no planalto, Sardinha tivesse organizado, nos meses de setembro e outubro de 1592, entradas punitivas e estabelecido um sistema de revezamento na vigilância do forte, exemplos de pedidos como os do castelhano João de Santa Anna, que solicitava à Câmara um “chão” no rocio da vila em 1592 por “ser muito necessário recolherem-se os moradores à vila e nela terem casas por respeito de estarmos em guerra”, 362 davam mostra de que a situação estava mesmo longe de apaziguar.

De fato, apesar de os conflitos serem empurrados para áreas cada vez mais distantes, ainda em 1593 a pressão indígena se fazia sentir, só que agora na área de Mogi, onde atacaram gente de Antonio Macedo e Domingos Luis Grou. Numa única emboscada no rio Jaguari, segundo as Atas, teriam morrido o francês Guilherme Navarro, Francisco Correa, Diogo Dias, Manuel Francisco e Gabriel Pena. Os depoimentos dos sobreviventes assustavam a todos, que, em uníssono, exigiam do capitão Jorge Correa, estante em São Paulo, talvez para acalmar os ânimos, que não voltasse a Santos sem antes dar uma lição nos índios de Bogi [03/10/1593].

Pressionado pelas ameaças dos corsários no litoral e com o apoio da Companhiade Jesus, Correa se recusou a aceitar a intimação e ainda proibiu a guerra intencionadapelos moradores de São Paulo. Os oficiais, então, escreveram para o Rio de Janeiro,solicitando ajuda ao governador-geral e ao próprio rei. Fatos que talvez expliquem aprimeira intervenção do governador-geral, D. Francisco de Souza, em São Paulo,quando mandou que se remetesse Correa preso à Bahia e que fosse designado comonovo capitão-mor da capitania João Pereira de Souza Botafogo, enquanto o donatárionão nomeasse um substituto. Correa acabou absolvido das acusações e retomou o postona capitania, mas suas relações com os habitantes de São Paulo continuaram azedadas.Em 1597, os moradores reunidos praticamente intimaram o capitão a comparecer à vilapara ver in loco a situação e, assim, parar de governar somente por cartas enviadas dacosta vicentina ou, ainda pior, de querer proibir as entradas ao sertão.364 Em dezembrodo ano seguinte, os moradores voltavam a queixar-se de que “não entende o capitãonesta vila”, pontuando que ele, agora, inventara de exigir licenças para que se fizesse [Página 115]

América meridional, que incluía a região dos rios Paraná e Paraguai, por sua vez, eraalvo de notícias de riqueza desde a terceira década do século XVI, como comprovam ascartas de Diego Garcia, em 1526, Sebastião Caboto, Pero Lopes de Souza e do próprioCabeza de Vaca.377 Os padres jesuítas estacionados no planalto de Piratininga tambémnoticiavam tais possibilidades. Segundo Nóbrega, uma das razões para que Tomé deSouza mandasse fechar o caminho rumo ao Paraguai era o fato da região ter muito ouroe prata.378

Com efeito, em 1559 a rainha regente D. Catarina comunicava ao governador Mem de Sá que enviara o mineiro Luis Martins para averiguar as notícias das minas na capitania de São Vicente.379 Teria acompanhado o mineiro, o capitão-mor Brás Cubas que, conforme carta depois enviada ao governador, dizia ter encontrado algum ouro cerca de 30 léguas de Santos. Afirmava ainda que o mineiro havia entrado mais uma vezna região e, sozinho, localizara seis outros locais com ouro. Esta entrada, do prático em mineração Martins, teria percorrido as redondezas de São Paulo, recolhendo algum ouro e pedras verdes, de pouca monta e interesse, na região de Jaraguá e Caatiba.

Segundo Miriam Ellys, a entrada de Jerônimo Leitão ao Paranaguá, em 1585, teria também trazido algum ouro de lavagem da região ao sul. Lembremos, inclusive, que Afonso Sardinha, pai, participara desta entrada. De qualquer maneira, as suspeitas sobre a existência de metais preciosos na Capitania obedeciam a algumas informações concretas e outras tantas marcadas por expectativas e desejos.

Além das tais amostras de pouca monta encontradas e remetidas desde a década de 1550, as lendas de origem tupiniquim sobre o Itaberabaaçu - a Serra do Sabarabuçu -, ou “montanha resplandecente”, alimentavam a imagem deste interior meio mítico, como que guardando um novo Potosí. Sem contar a no mínimo curiosa “philosofia” da época que também contribuía para aumentar tais expectativas. Embora um pouco mais tardio, encontramos um exemplo dela em um documento da Biblioteca D´Ajuda, cujo título é “Relações das capitanias do Brasil”. Na parte sobre a capitania de São Vicente lê-se que:

Nos limites desta capitania pela terra adentro obra de quarenta léguas estão as minas de ouro e prata que Dom Francisco de Sousa diz ter descobertas, as quais muitos anos antes se tinha notícia e por boa razão de philosophia esta região do Brasil deve ter mais e melhores minas que as do Peru por ficar mais oriental que ela e mais disposta para a criação de metais. [Biblitoeca D´Ajuda. Códice 51-IX-25, f.142, Lisboa.]

Nesta geografia, uma certa latitude ampliada – a mesma de Potosí – seria, então,favorável à existência de metais, o que incluía a região do Paraguai, São Vicente emesmo as áreas africanas de Angola e Moçambique, do outro lado do oceano. Paraadensar ainda mais este quadro de expectativas, Sérgio Buarque de Holanda nos lembrado inconformismo dos portugueses diante da existência de metais em Potosí, e naAmérica espanhola de modo geral, e da inexistência deles no Brasil. De qualquer modo,tais iniciativas de pesquisa mineral no Brasil são contemporâneas de outras investidasda mesma natureza em outras partes, tanto da África quanto da América, tanto em áreasportuguesas quanto em áreas castelhanas, no contexto da União, todas sob o mesmomanto filipino.385Mas foi entre os anos 1580 e 1590 que as primeiras notícias mais consistentescomeçaram a chegar aos ouvidos dos interessados, que incluíam o recém-empossadogovernador-geral do Brasil, D. Francisco de Souza, e o próprio rei Felipe II. Entretanto,os primeiros investimentos da nova monarquia para investigar as minas do Brasil não sevoltaram para as da capitania de São Vicente, mas para as da região do rio SãoFrancisco, demandadas por Gabriel Soares de Souza. Este havia, desde meados dadécada de 1580, se trasladado para Madri, de onde articulou alianças e apoiadores paraseu projeto, inclusive junto a D. Cristóvão de Moura, aliado português e braço direito deFelipe II, e conhecedor da realidade portuguesa.O pedido bem-sucedido de mercês de Gabriel abriu um precedente cobiçoso afuturos postulantes de descobertas e beneficiamento de minas, já que vislumbravadireito de conceder sesmarias e lotes de minas, administração de mão de obra indígena, [Página 119 e 120]

Outros nomes prováveis são: o capitão de infantaria Diogo Lopes de Castro; ossoldados de origem basca e irmãos Diogo e Pedro Arias de Aguirre; o mineiro alemãoJacques de Oalte; o engenheiro de Gueldria, nos Países Baixos, Geraldo Betting; oengenheiro-mor e capitão de artilharia, gentil-homem florentino, Baccio de Filicaya; oaçoriano Simão Borges Cerqueira; o secretário particular Pedro Taques; os mineirosGaspar Gomes Moalho e Manoel Pinheiro Azurara464; os cortesãos Paschoal LeiteFurtado, Domingos Gomes Pimentel, Mathias Lopes e Jacome Rodrigues Navarro; osargento-mor Pedro de Oliveira; o alferes Jorge João; o mineiro e fundidor de ferroDomingos Rodrigues; o mineiro Manoel João e Diogo Gonçalves Laço.465 Outro nomeespeculado é o do também engenheiro florentino, Alessandro Massaii.466 O quesobressai na composição desta lista, um tanto exaustiva, é o nítido aparato militar e seuforte sentido técnico. Ademais, a presença de castelhanos, alemães, flamengos eitalianos – além dos portugueses - denota um pouco dos tempos filipinos e a amplitudede seu império.Afora a própria experiência militar, a atuação e a governança nessa área eramtambém atributos fundamentais ao ofício dos governadores. No caso de D. Francisco, oregimento que utilizava já trazia reforçada a incumbência de fortificar a terra eempreender conquistas. Além disso, ele vinha imbuído da necessidade de aplicarefetivamente o Regimento dos Capitães Mores, feito em 1570 ainda no reinado de D.Sebastião. Inspirado nas Ordenanzas de Carlos V, de 1534, que organizou o modelocastelhano dos tercios, o Regimento foi aplicado em 1585 na Paraíba por Martim Leitão.O primeiro sargento-mor do Brasil, função já derivada do Regimento, foi nomeado em1588 junto com Giraldes. O segundo, Pedro de Oliveira, veio com D. Francisco, a quemcoube uniformizar e formalizar o Regimento. Sua implantação teve grandes implicaçõesem São Paulo, onde a disciplina e a organização militar das entradas ao sertão foramresultados diretos da ação do governador.467 [Página 138]

Foi ainda sob o cumprimento dessa missão, já depois dos insucessos de Gabriel Soares no sertão do rio São Francisco, que o governador descambou para a parte sul da colônia, em outubro de 1598, deixando em seu lugar, na Bahia de Todos os Santos, ocapitão Álvaro de Carvalho.

Iniciava, assim, sua viagem rumo à capitania de São Vicente. Como já dissemos, fora para lá formalmente atraído em função das notícias de descobertas de ouro e prata nas minas de Jaraguá, Viraçoiaba e Vuturuna, nas cercanias da vila de São Paulo, todas elas com participação ativa de Afonso Sardinha, pai, e Afonso Sardinha, o moço, por volta de 1595.

A certeza da existência de metais preciosos no Brasil parecia tão grande que, ainda mesmo na Europa, o governador providenciara o provimento de ofícios para o setor mineral, como o de provedor das minas para o castelhano Agostinho de Soutomayor, que já havia estado em Monomotapa; o de feitor das minas para João Correia; o de fundidores para Gaspar João e seu filho Manoel João, e o de operários especializados das minas para Manuel Simão e Manuel Rodrigues.

Além desses, lembremos dos vários mineiros e engenheiros que acompanharam o governador em sua viagem, e podemos perceber que D. Francisco veio ao Brasil com o objetivo bastante claro de encontrar as tais minas, inicialmente inspirado nos projetos de Gabriel Soares e, mais tarde, seguindo os indícios vindos da capitania de São Vicente.

Suspeita-se que, desde as primeiras notícias das descobertas, D. Francisco estivesse predisposto a ir às capitanias do sul, visto que, já em 1595, o governador enviou a São Paulo Sebastião de Freitas, que havia percorrido com Gabriel Soares o sertão do São Francisco, e também o fundidor de ferro Manoel João.

Praticamente ao mesmo tempo, em 1596, fez disparar três entradas conjugadas para o interior partindo de diferentes locais: a de Diogo Martins Cã, que partiu do atual Espírito Santo; a de Martim de Sá, do Rio de Janeiro e a do recém-nomeado capitão-mor da capitania de São Vicente, João Pereira de Sousa Botafogo, da vila de São Paulo.

Em fevereiro de 1597, era lida, na Câmara da vila de São Paulo, uma carta do governador comunicando a chegada de Diogo Gonçalves Laço, nomeado capitão-mor, “ao efeito do ouro”. Na verdade, como afirma Frei Vicente do Salvador (1564-1639):

Muitos anos havia que voava a fama de haver minas de ouro, e de outros metais na terra da capitania de São Vicente (...) e já por algumas partes voava com asas douradas, e havia mostras de ouro; o governador se partiu para baixo no mês de outubro de 1598, levando consigo o desembargador Custódio de Figueiredo...

Diogo Laço foi enviado a São Paulo já como administrador das minas e traziaconsigo o primeiro aparato tecno-administrativo para a então pequena vila. Vinhaacompanhado do alferes Jorge João, dos mineiros Gaspar Gomes Moalho e ManoelPinheiro Azurara, e do fundidor Domingos Rodrigues. Laço foi a São Paulo, preparou avinda do governador e voltou à Bahia para buscá-lo. Entretanto, antes de chegar a SãoPaulo, Francisco de Souza estacionou em Vitória, na Capitania do Espírito Santo, paraaveriguar as notícias de esmeraldas que circulavam por ali. De lá, enviou a São Paulo ocapitão Diogo Arias de Aguirre, junto com 200 índios de serviço. Começavam, assim, amobilização e a arregimentação de mão de obra indígena para um futuro projetomineral. O que, de certo, não passou despercebido pela Cia de Jesus, que reclamou,através de seu provincial, deste tipo de transplante. Dizia ele que “os governadoresgeraes do Brasil pretendem mudá-los de umas capitanias para outras de diversossenhorios como se fez da capitania do Espírito Santo para a de São Vicente”.478De Vitória, D. Francisco se dirigiu ao Rio de Janeiro, onde atendeu a uma sériede demandas locais, o que o obrigou a providenciar a vinda do ouvidor-geral da Bahiapara continuar a resolver as querelas. Ali teria arregimentado, dentre outros, André deLeão e o boticário-cirurgião João Serrão. Na cidade, D. Francisco deve ter estreitadosobremaneira suas relações com o clã dos Sá. Mesmo porque não nos esqueçamos queMartim de Sá, filho de Salvador Corrêa de Sá, havia liderado uma das entradassolicitadas pelo próprio governador. Segundo Carvalho Franco, Salvador de Sá, o velho,possuía notícias e mercês de minas desde 1578, ostentando, inclusive, o título de [Páginas 142 e 143]

Barueri: Mas um dado para incrementar a tese do desenvolvimento articulado foi a criação do aldeamento de Barueri (Marueri), fundado pelo próprio Francisco de Souza e que seria de nativos aldeados sob controle direto do governador, em nome da Coroa, para servir nas minas.

“01/01/1657 - *A fundação da aldeia de Barueri por Francisco de Souza, bem como os indícios de que ele dispunha livremente dela estão em auto mandado fazer pelo Conde do Prado e Marquês das Minas, Francisco de Souza, neto do governador, em 1657, a respeito dos direitos dos herdeiros de Souza sobre a aldeia” [“São Paulo na órbita do Império dos Felipes: Conexões Castelhanas de uma vila da américa portuguesa durante a União Ibérica (1580-1640)” de José Carlos Vilardaga. página 154]

O modelo castelhano de repartimiento era referência fundamental nasperspectivas de desenvolvimento econômico estimulado pelo governador. Francisco deSouza, em seu parecer, Diogo de Quadros, em sua petição, e até mesmo o governadorgeral Diogo Botelho, em carta ao rei, se referiram explicitamente ao modelo castelhano,remetendo-se ao modo do Peru no trato com os índios.532 Que o modelo castelhano, noque tange à organização da mão de obra e à própria exploração mineral, inspirouFrancisco de Souza parece-nos evidente. Não pode ser coincidência que tanto ele quantoseu auxiliar direto tenham usado a mesma comparação. Além disso, um dos exemplosmais citados para lembrar o impacto do modelo castelhano de aldeias e repartimientosna América portuguesa é o memorial de Bento Maciel Parente, relativo às suas mercêsna conquista do Maranhão, em que pede para “mandar encomendar los pueblosconquistados y los demas que se fueren conquistados asi como se faze em las Indias deCastella”. Não se deve esquecer – nem ele esqueceu – que, antes de ir para o Maranhão,Parente esteve em São Paulo durante seis anos servindo a Francisco de Souza no“descubrimiento de las minas” e atuando, inclusive, como sargento maior dasentradas.533 Ao trafegar a legislação referente ao trabalho indígena neste período,Francisco de Souza teria sido permissivo em relação à escravização indígena. Não sófez vistas grossas ao alvará de 1595, que proibia terminantemente a escravização doíndio (mesmo os capturados sob o princípio da guerra justa), como fez valer a lei de1570, ainda do tempo de D. Sebastião, que a permitia desde que com licença direta dorei ou do governador.É clara a conveniência da lei de 1570, pois lhe dava ampla margem de manobrapara manipular este importante mecanismo de poder e governabilidade. Por outro lado,o governador lançou mão do alvará de 1596 que concedia aos jesuítas o papel de“protetores” dos índios descidos do sertão, pelo menos dos reduzidos nas poucas aldeiasjesuíticas.534 Com isso, aplacava as demandas jesuíticas e servia de anteparo às queixas [Página 158]

Os trechos aqui analisados dão a entender que, a partir da segunda metade doséculo XVII, teria predominado uma visão generalista sobre os moradores de São Paulo,de que todos unidos boicotariam as minas; o que substituiria outra perspectiva, queprevia a atuação de alguns grupos ou autoridades, como sugeriram Salvador Correia deSá e Lourenço de Mendonça. À primeira vista, isso poderia fazer pouca diferença, mascircunstanciar tais presumíveis ações impede que alimentemos, nessa primeira metadedo século XVII, sobre qual trabalhamos aqui, a imagem de uma população irmanada,conspiratória e unida em torno da proteção e disfarce das ditas minas. Ora, esta visãoacachapante apenas eliminaria a possibilidade de buscarmos facções, grupos e redes deinteresses em disputa e conflito.

Mas, independente das duas visões, o que podemos aferir sobre a existênciaefetiva de ouro em São Paulo? Como já dito, as notícias que atraíram o governadordavam conta de certo ouro encontrado pelos Sardinha (o velho e o moço), nas cercaniasde São Paulo. Em 14 de novembro de 1598, na iminência da chegada de Souza, AfonsoSardinha, o moço, encontrava-se em pleno sertão acompanhado de “alguns mancebos emais de cem índios cristãos” em demanda de ouro e outros metais.

Foi justamente na experiência mineral desta família que D. Francisco se apoiou, reconhecendo, inclusive, sua precedência nas pesquisas minerais. Em 19 de julho de 1601, o governador proibiu quem quer que fosse, exceto os Sardinha, de bulir nas minas, enquanto os mineiros que haviam sido solicitados não chegassem para avaliar as descobertas.

As reservas efetivamente exploradas foram de ouro – principalmente de faiscagem - e ferro. A prata, tão sonhada e sondada, aparentemente não foi descoberta em grandes quantidades, apesar dealgumas notícias e certa boataria em contrário.588 A expedição de André Leão, quepossuía a declarada missão de buscar prata, parece ter apresentado, nesse quesito,resultados infrutíferos. Já o ferro de Biraçoiaba e o ouro de Jaraguá, Caativa, Vuturuna eNossa Senhora de Monserrate eram de quantidade de duvidosa aferição. Entretanto,notícias esparsas, algumas pistas e informações denotam que houve ouro efetivamenteretirado das redondezas. [Página 176]

Assunção, por exemplo, conhecida como “madre de las ciudades”, serviuefetivamente de pivô para um processo de expansão que se espalhou essencialmente nossentidos leste, oeste e sul. Dela partiram novos conquistadores e homens em busca derepartimientos, costurando conexões com o altiplano boliviano, o mundo platino e ouniverso dos rios Paraguai e Paraná, num processo que tendia claramente a chegar aolitoral. Nesta expansão, fundaram-se Corrientes, Santa Fé, Tucumán, Salta, Santa Cruzde la Sierra, Buenos Aires e Santiago del Estero, todas na segunda metade do XVI. Nosentido leste, Ciudad Real do Guairá, Villa Rica del Espirito Santo e Santiago de Jerezcompuseram uma teia de núcleos populacionais que, juntamente com as reduçõesindígenas que pontilhavam o espaço paraguaio, estabeleciam uma rede de trocas econtrole sobre uma imensa população guarani.Esta teia de núcleos interiores, muito comum na colonização castelhana naAmérica, diferia, portanto, do que seria uma estrutura mais pulverizada efundamentalmente costeira do mundo imperial português. Entretanto, tornando maiscomplexo o que, até aqui, parecia bastante simples, o próprio Luiz Felipe Thomazressaltou que, no final do século XVI, já no contexto da União das Coroas, ainteriorização passou também a ser a característica determinante da colonizaçãoportuguesa. Tanto ele quanto Sanjay Subrahmanyan perceberam, neste fenômenoidentificado por ambos no mundo asiático, o que não poderia ser visto como meracoincidência: a influência da dominação castelhana.660 No nordeste brasileiro, ondeigualmente ocorreu a interiorização, esta derivaria do avanço das lavouras de açúcar,que triplicaram entre 1570 e 1614, e da necessidade de consolidar o povoamento,estratégia fundamental para a preservação dos territórios coloniais sempre ameaçadospelas outras potências europeias.661 A configuração deste processo na realidade do novoimpério filipino foi notada mais recentemente por Guida Marques, que, nele, vê umapolítica territorial fortemente marcada pelas próprias determinações do império.662 Dequalquer forma, o processo de conquista de territórios interiores e sua articulação aoscentros mais dinâmicos (de modo geral, ainda costeiros) é um fenômeno que atingegrande parte das possessões portuguesas tanto na Ásia quanto no Atlântico, no períododa União Ibérica. [Página 197]

Na América meridional, em especial na capitania de São Vicente, pode-seperceber que a vila de São Paulo, enclave interior bastante instável nos primeiros anos,se consolida gradualmente e, mais do que isso, se regionaliza, articulando-se aosespaços contíguos do litoral. Aliás, num primeiro momento, que particularmente nosinteressa aqui, articula-se com outros conjuntos regionais. O que significa dizer que, aprincípio, se refuta qualquer perspectiva de isolamento da vila de São Paulo. Atrelada aSão Vicente e Santos desde o começo de sua colonização e, nesse sentido, perfeitamentecompatível com o modelo imperial costeiro português, já para o início do século XVII,a vila se articulou regularmente com os interiores da América, notadamente com oParaguai, como pretendemos demonstrar.O contraste entre estes dois modelos – castelhano e português – não deve,portanto, ser absolutizado. Não são verdadeiramente esquemas estanques, mas apontamtendências de desenvolvimento de práticas de colonização dos impérios ibéricos. SãoPaulo, Moçambique e o próprio Nordeste açucareiro a partir dos anos 1570 contrariam aperspectiva puramente costeira e desterritorializada do império português.663 Assimcomo as frotas e redes portuárias da Nova Espanha, Nova Granada, Vice-Reino do Perue Filipinas mostram que o império espanhol era mais do que a mera territorialização. Dequalquer forma, as dissonâncias não invalidam uma análise mais sistemática. Contudo,as perspectivas conectadas, propostas por Gruzinski e Subrahmanyan, abrem novoshorizontes que possibilitam investigar os pontos de contato, de trocas, de “mestiçagens”e de múltiplos diálogos entre as formas e os sentidos da colonização. Por outro lado,John Elliott, ao adotar a história comparada, mostra inclusive como os processoscoloniais dialogavam e se espelhavam.664 Neste sentido, podemos ver as histórias deSão Paulo e do Paraguai não somente de maneira conectada, mas também comparáveisem inúmeras questões.A relativamente pobre, pouco povoada e instável vila de São Paulo - comomuitas outras espalhadas pelo império - enfrentou suas vicissitudes de diversas formas,mas em absoluto de maneira isolada. Esteve sempre articulada, desde o princípio.Mesmo sendo a única povoação lusa do interior da América portuguesa, relativamentedistante do mar, isso não significou afastamento dos pontos povoados da costa. O caminho para São Vicente era parte orgânica da vila, e o movimento de ida e vinda erafrequente desde os anos de 1560. Apesar da retórica que permeia as descrições docaminho do mar, toda ela recheada de dificuldades e temeridades, o trajeto sempre foiamplamente utilizado, com relativa regularidade, tanto para levar e buscar notícias,comprar e vender coisas, como para rumar para outras áreas costeiras. O caminho para oRio de Janeiro era também constante, como mostram as idas não só de índios recolhidosà revelia, como de moradores, raras vezes informadas à Câmara, a exemplo deDomingos Luis que para lá se dirigiu em fevereiro de 1575.665Qualquer levantamento preliminar, a partir de inventários e testamentos, emtorno das articulações dos moradores da vila com outras partes da colônia revela como,entre 1570 e 1640, inúmeros eram os sujeitos relacionados com o “mundo exterior”.Afonso Sardinha, como já dissemos, não foi uma aberração. Manoel João Branco tinhaum filho morando na Ilha Grande, uma filha e um genro na Bahia, negócios em Angolae terminou seus dias numa visita a Lisboa; Antonio Pedroso de Alvarenga tinhanegócios na Bahia, Rio de Janeiro e Buenos Aires; Francisco Godinho tinha devedoresem Portugal, Espírito Santo e negócios em Angola; Cornélio de Arzão tinha uma listaenorme de devedores de São Sebastião, Rio de Janeiro, Cananéia e até gente ida aoPeru.666 Ademais, São Paulo possuía moradores vindos da Bahia, Espírito Santo, Rio deJaneiro, Pernambuco, Portugal, Castela, Flandres, Itália, França... Moradores quetinham parentes espalhados por várias partes e filhos sendo ordenados em outroslugares, em especial Angola e Assunção. Enfim, a tese do isolamento só pode terservido para alimentar uma “mitologia”.667Em relação ao Paraguai, pode-se afirmar que, a este espaço imperial castelhano,no centro da América do Sul, a vila portuguesa de São Paulo atrelou parte dos seusdestinos. E aqui, propomos uma primeira inversão de olhar, já que podemos ver a vilapaulista e o espaço de fronteira entre os impérios de duas maneiras: como um pontoestratégico do avanço português (numa leitura retrospectiva e fortemente marcada pelalógica anacrônica dos nacionalismos) ou, conforme pretendemos, nas circunstâncias daUnião Ibérica, como uma vila a ser integrada nos processos de expansão concêntrica, [Páginas 198 e 199]

resgate com os índios -“nossos amigos”, segundo os camaristas -, o que tirava “asliberdades dos moradores”. [ACVSP, 13/12/1598] De certa maneira, os conflitos de 1590-1593 pareceram encerrar o quadro deameaças diretas da população indígena das proximidades do planalto ao núcleo da vila.As guerras e entradas passaram a abarcar regiões cada vez mais distantes e limítrofes,representando, por outro lado, a “pacificação” do planalto. Neste processo, uma dasfiguras de projeção, conforme já destacamos, foi Afonso Sardinha.Sardinha era, ao que tudo indica, tanoeiro de origem. Não se sabe quandopoderia ter chegado ao Brasil, nem mesmo se aqui havia nascido, mas casou-se emSantos em 1550, com Maria Gonçalves, filha de Domingos Gonçalves. [FERREIRA, Barros. Um homem exprime seu tempo...op.cit..]

Transladou-separa a vila de São Paulo em 1565, mas continuou atrelado à vila de Santos, onde tinhacasas de aluguel e negócios. Morreu em São Paulo em 1616, portanto bastante idoso.Ao longo de sua trajetória na vila de São Paulo, revelou-se um homem deimpressionantes conexões e ilações comerciais. De fato, seu testamento de 1592,produzido às vésperas de sua partida para a guerra, mostra que possuía naviosaprestados para Angola, encomendas em Buenos Aires e negócios e dívidas no Rio deJaneiro e Bahia. [Apontamentos históricos, geográficos, biográficos, estatísticos e noticiosos da Província de São Paulo: seguidos da cronologia dos acontecimentos mais notáveis desde a fundação da Capitania de São Vicente até o ano de 1876, Volume 2, 1952. Manuel Eufrásio de Azevedo Marques]

Negociava escravos da Guiné, tecidos, marmelada e gentios. Foi desua propriedade um dos primeiros trapiches de açúcar no planalto. Entre seus devedores,estavam tanto o antigo capitão-mor quanto o recém-chegado. Por isso, há de sedesconfiar quando ele alegava não comparecer a uma sessão da Câmara, como vereadorque era, em pleno natal de 1576, pois não tinha botas! 368 Na vila, foi almotacel, em1575, vereador, em 1572, 1576 e 1582 e juiz ordinário, em 1587. Portanto, em 1592, quando foi nomeado capitão da gente de guerra da vila, já apresentava uma longa ficha de préstimos à governança local. [Revista do Arquivo Municipal CLXXVIII (178), 1969. AMARAL, Antonio Barreto. “Afonso Sardinha. Um vereador do século XVI”. Revista do Arquivo Municipal CLXXVIII (178), 1969.]

O que, essencialmente, desconcerta em seu testamento é o grau de conexõespossíveis a partir do que sempre foi considerada uma vila isolada, na contramão das relações e dos fluxos comerciais.

As ausências constantes de Sardinha de São Paulo, sempre “no mar”, denotam que, da vila litorânea de Santos, ele geria seu comércio e suas encomendas, enquanto, do planalto, ele gerava suas rendas através do plantio de marmelada, criação de gado e também do gentio apresado em entradas cada vez mais constantes.

Sardinha já havia participado de uma incursão de Leitão aos Patos, em 1585, e liderado entradas punitivas, entre 1592 e 1593. Todavia, entre 1594 e 1599, sua presença foi atestada em entradas no sertão juntamente com seu filho mameluco, homônimo.

Em 9 de setembro de 1606, oficiais da Câmara ainda reclamavam que Afonso Sardinha, o pai, abrigara certos índios carijós que teriam ido buscar “paz e vassalagem” junto ao donatário da capitania, e que os teria mantido em sua casa, em Carapicuíba, se recusando a remetê-los à Câmara, onde deveriam fazer as tratativas para os préstimos de obediência. Na mesma sessão, buscava-se proibir que Sardinha, nesta altura provavelmente beirando os oitenta anos, empreendesse mais uma entrada ao sertão, como se ouvira dizer na vila.370

Neste sentido, fica claro que Afonso geria uma ampla mão de obra indígena, grande parte concentrada em sua própria aldeia, de Carapicuíba, mais tarde transferida aos padres da Companhia de Jesus através de seu testamento de 1616.

As empreitadas dos Sardinha pelo sertão e pelas redondezas da vila de São Paulorenderam também outros frutos, o que acrescentaria ainda mais funções ao múltiploAfonso, pai, como as de minerador e fundidor de metais. Não se sabe ao certo a dataexata de suas descobertas, mas foram as minas dos Sardinha que despertariam a atençãodo governador-geral do Brasil, D. Francisco de Souza.O filho Afonso Sardinha, o moço, era nascido em São Paulo, residia emEmboaçava, junto do rio Pinheiros, e minerava em Jaraguá. Descobriu minas de ferroem Araçoiaba em 1589, segundo Azevedo Marques, e com seu parceiro, ClementeAlvares, minas de ouro no Jaraguá, Vuturuna (Parnaíba) e Jaguamimbaba (nasproximidades da Serra da Mantiqueira). Sardinha, o moço, ainda teria construído doisengenhos para fundição de ferro em Araçoiaba, sendo um deles doado ao própriogovernador em 1600. O moço faleceu em 1604, em pleno sertão, e fez correr fama deque deixara em testamento “oitenta mil cruzados de ouro em pó enterrado num botelhode barro...” Afirmação que foi ironizada por Afonso Taunay, pois segundo ele, depoisda conversão aproximada desta quantidade em quilos, Sardinha o moço poderia serconsiderado um “Fugger brasileiro”.371 O estabelecimento de mineração no Jaraguá era370 ACVSP, 09/09/1606.371 TAUNAY. Afonso. Historia Geral das bandeiras paulistas. Volume V. São Paulo: Typ.Ideal, 1929 [“São Paulo na órbita do Império dos Felipes: Conexões Castelhanas de uma vila da américa portuguesa durante a União Ibérica (1580-1640)” de José Carlos Vilardaga. Páginas 116 e 117]

Tanto que ele mesmo criou o aldeamento de Barueri, para onde reduziu indígenas direcionados aos trabalhos em Vuturuna (Parnaíba), nomeando pessoalmente os capitães para administrála. ["SP na órbita do Império dos Felipes: Conexões Castelhanas de uma vila da américa" p.157]

De fato,Francisco de Souza atuou, pela primeira vez, na instância dos ofícios da capitania de São Vicente ainda em 1595, quando mandou que o capitão-mor, loco tenente de São Vicente, Jorge Correa, fosse à Bahia preso para averiguação de algumas denúncias que pairavam sobre ele. Para seu lugar, o governador-geral nomeou João Pereira de Souza, um dos homens que, mais tarde, lideraria uma das entradas ao sertão a mando do governador. [Página 169]

Os inventários mencionam pequenas quantidades relativas de ouro e prata, mas não há registro dos quintos efetivamente pagos, tirante as notícias de Morales em sua carta ao rei.Uma das raras tentativas de quantificação ou aproximação do montante foi feita por Miriam Ellys. A autora contabiliza, em 470 inventários, do período de 1578 a 1700, pequenas parcelas de ouro e prata, totalizando cerca de 200 quilos de prata e 19 quilos de ouro, presentes, na sua maioria, em peças e ornamentos, como pratos, brincos, cruzes, taças, anéis etc.Eschwege teria indicado, segundo a própria Ellys, cerca de 930 arrobas (15.000 quilos), número que foi encampado por Roberto Simonsen em sua História Econômica do Brasil.Para Ellys, a prata viria inteiramente do Peru in natura ou em peças já trabalhadas, já o ouro teria procedências variadas, como da Guiné, em moedas e objetos do tempo da expedição de Martim Afonso, e algum ouro local, que era de tão pouca monta que não alteraria a dinâmica econômica da vila.De todo modo, reconhece a existência de ouro em São Paulo, pois atesta a tenda de ourives nos inventários de Maria Pedroso e Maria Gonçalves, que foram mulheres de Cláudio Furquim, contabilizando um pouco mais de um quilo de ouro em pó nos documentos. A princípio, parece negar a existência de alguma prata local. [Página 177] [0]

inserida na publicação do Livro Segundo do Governo do Brasil593. Provavelmentedirecionada a Francisco de Souza, o sujeito relatava, nesta carta, que, depois de quaseter sido preso por tentar averiguar os quintos na casa de fundição da vila, acabou sendolevado por Simão Alvares para ver amostras de ouro trazidas por Clemente Alvares, quehavia descoberto e fundido um ouro “mui finíssimo e limpo” e que, segundo “Claudio”(talvez o ourives Claudio Furquim), tinha vantagem “do de Seraldo”, na verdadeGeraldo Correia Sardinha. Sabe-se que, natural de São Paulo, Clemente Alvares erahomem empenhado e dedicado aos metais. Parceiro de Afonso Sardinha, o moço,durante suas empreitadas de pesquisa de minas, casou-se com a filha do castelhanoMartim Rodrigues Tenório, um dos envolvidos no erguimento do engenho de ferro emSanto Amaro. Tornou-se, assim, cunhado do engenheiro flamengo Cornélio de Arzão,também envolvido, a partir de 1609, com a produção de ferro. Em 1600, ficou comoguardião de certo metal que parecia prata, e foi responsável por fazer os testesadequados.594 As Atas da Câmara denunciam sua presença no sertão, com sua tenda deferreiro, resgatando com os índios em pelo menos duas ocasiões.595

Em 16 de dezembro de 1606 – estimada data da carta apócrifa - Clemente compareceu à Câmara de São Paulo para registrar algumas minas que tinha descoberto e, desse modo, não perder os direitos sobre elas, observando o que determinava o novo Regimento das Minas de São Paulo.

É provavelmente deste ouro que nosso missivista em questão falava. Portanto, as notícias concretas destas riquezas minerais são mesmo esparsas e fragmentárias, mas aindaassim sugestivas.

Este regimento, supostamente inspirado em D. Francisco, de que fala Clemente, já causou certa dúvida na historiografia quanto à sua efetiva aplicação em São Paulo. Eschwege dizia que ele ficara perdido na Espanha por 50 anos, sendo de fato registrado em São Paulo e Rio de Janeiro apenas em 1652.597

Varnhagen, por outro lado, afirmava que ele havia sido registrado em Iguape já em 1605. Pela certidão apresentada por Manoel Pinheiro Azurara, mineiro-mor do Brasil, como peça de sua defesa num processo em Assunção, ficamos sabendo que ele comparecera à Câmara de São Paulo em julho de 1604 com suas provisões e Regimento que trazia do governador Diogo Botelho – que bem pode ser o tal regimento.

Assim que chegou a São Paulo, teria começado a usar de seu ofício, e “mandou apregoar a liberdade das minas do ouro e que pagassem os quintos a sua majestade”. Em agosto, acompanhado de padres da Companhia de Jesus e do escrivão e tabelião público Belchior da Costa foi às minas de Monteserrate e São Francisco, e lá fez a repartição das minas entre alguns moradores, e “senalou” as de Dom Francisco, naquele momento um morador “comum” da vila de São Paulo.

Pinheiro teria voltado à vila e tentado, conforme seu regimento, arregimentar gentios para serem distribuídos nas minas, mas, como já assinalamos, não foi bem sucedido devido à “pouquidade do gentio”.598 Para além deste regimento de 1603, foram feitos outro, em 1618, e mais um, em 1644. O de 1618, ainda no contexto da União das Coroas, fora elaborado especialmente para as “minas de São Paulo e São Vicente” e, ademais de reforçar a liberdade das minas, versava sobre a administração dos gentios, aldeados segundo a lei de 1611 e repartidos nas minas conforme algumas restrições.599

Estes regimentos só reforçam as expectativas e os investimentos feitos em tornodas supostas minas. Segundo nos diz Taunay, baseado numa consulta de SalvadorCorreia de Sá e Benevides realizada pelo Conselho Ultramarino em 1677, o regimentode 1603 teria surgido em função das várias dúvidas existentes em relação às minas, emespecial, depois das notícias da morte do tal mineiro alemão que andava com Franciscode Souza e dos boatos de que se fundia ouro do tamanho da “cabeça de um cavalo”.600

Seja como for, o tal regimento teria sido trazido pela delegação que o governador mandara para a Espanha, com algumas tarefas, e que retornou à vila em 1604. Entre 1601 e 1602, o governador enviou a Valladolid, onde estava instalada a corte de Felipe III, os mineiros Diogo de Quadros, Manuel João (o tal Morales, da carta), Martim Rodrigues de Godoy e Manoel Pinheiro (o Azurara).

Além dasparticulares demandas de mercês, eles levavam amostras das riquezas minerais de SãoPaulo, cartas com pedidos da Câmara da vila e a missão de organizar a extração demetal, o que incluía alguns pontos sensíveis, como a possibilidade de descer gentios, a598 ANA, Civil e Criminal, 1549, 4, 1606.599 BNRJ. Coleção Castelo Melhor, 01,02,035, doc.17.600 TAUNAY, Afonso. História geral...op.cit. Esta história do ouro do tamanho de uma cabeça de cavalo aparece emoutro documento. No Libro de los sucessos del ano de 1624, alocado na BNE (MSS2355), fala-se deste mineiroalemão, só que teria sido assassinado a mando dos jesuítas, que temiam que a notícia da riqueza aumentasse aservidão dos gentios. Conforme o manuscrito, o mineiro descobrira que poderia retirar “tan gran pedazo de oro comoel cavallo en que estava”, e tal noticia alarmara tanto os padres, que, na mesma noite, o mineiro foi encontrado morto.Apesar de o livro referenciar o ano de 1624, o documento é posterior a 1640, já que dá conta da Restauração(rebelión, conforme seu texto) que parecia ter ocorrido há pouco, e da expulsão dos jesuítas da vila, porque, segundoo manuscrito, não respeitavam os direitos dos moradores. Menciona ainda que os jesuítas tiravam ouro de São Pauloe o enviavam ao Duque de Bragança, para financiar a revolta. O documento é do reinado de Felipe IV, já que nele sefala da prata que nunca foi retirada do Brasil no tempo de Felipe III, “ni en el de su majestade”. [Páginas 178 e 179]

por um de largura, deveria contar ainda com um andaime de proteção para os vigilantese defensores da vila.261 Seu caráter defensivo era, assim, visualmente, evidente.De fato, desde o princípio da vila, a manutenção dos muros de taipa figuroucomo uma preocupação oscilante em função dos momentos mais, ou menos,ameaçadores. Na década de 1560, por exemplo, a vila viveu sob assédio constante dosíndios que habitavam o entorno. Verdadeiramente, seus primeiros anos não foram nadafáceis.

Em julho de 1562, uma reunião de índios que resistiam à presença portuguesa no planalto, somada a grupos já supostamente catequizados, e bastante insatisfeitos, promoveu violento ataque à vila, colocando, pela primeira vez, em xeque a rede de alianças costuradas pelos colonos com as lideranças indígenas locais.

Do lado dos padres e colonos, o cacique Tibiriçá, aliado de primeira hora, lideraria o exército defensor. Mas, ao final, ele mesmo seria abatido pelo inimigo que não poupou vítimas entre os índios agressores ou defensores da vila: o vírus da varíola.

Ao lado do famoso cacique, seu genro, o ressentido João Ramalho, foi decisivo na defesa da vila de São Paulo neste crítico ano de 1562. Ramalho guardava consigo a insatisfação do desmanche da antiga vila de Santo André, onde fora patriarca e peça chave.262

Nas Atas dos anos de 1562 e 1563, encontramos a aflição dos oficiais que pediam, com recorrente urgência, para se “acabar os muros e baluartes”, “fechar as portas com cadeados” e “construir guarita”. Em novembro de 1562, os oficiais deram um ultimato para que os moradores terminassem os muros da vila.

Ainda em dezembro do mesmo ano, Salvador Pires, procurador e povoador dos antigos, foi enviado “ao mar” para comprar coisas importantes para a defesa da vila.263 Salvador era filho de João Pires, o Gago, que viera com Martim Afonso de Sousa em 1531. Residiu em Santo André da Borda do Campo, vila em que seu pai foi o primeiro juiz ordinário, e depois se transferiu com outros colonos para São Paulo, onde ganhou sesmaria do capitão-mor Jerônimo Leitão. Foi o procurador do concelho, em 1563, juiz, uma década depois, e vereador, em 1578. Casou-se com Mécia Fernandes, ou Mécia Açu, num dos típicos casamentos do planalto de Piratininga, ocorridos entre um colono branco e uma índia, e [Página 83]

muito provavelmente, era oficial mecânico, uma vez que havia participado da construção da igreja dos jesuítas e, mais tarde, da igreja do Guaré, origem de Nossa Senhora da Luz. Deveria ser um sujeito um tanto irascível, visto que Anchieta chegou a avisar ao capitão-mor Jerônimo Leitão que Domingos Luis estava acabando a Igreja, mas que os índios se achavam meio amotinados, pois tinham “medo do carvoeiro”. (“São Paulo na órbita do Império dos Felipes: Conexões Castelhanas de uma vila da américa portuguesa durante a União Ibérica: 1580-1640”, 2010. José Carlos Vilardaga. Página 84) [0]

América meridional, que incluía a região dos rios Paraná e Paraguai, por sua vez, eraalvo de notícias de riqueza desde a terceira década do século XVI, como comprovam ascartas de Diego Garcia, em 1526, Sebastião Caboto, Pero Lopes de Souza e do próprioCabeza de Vaca.377 Os padres jesuítas estacionados no planalto de Piratininga tambémnoticiavam tais possibilidades. Segundo Nóbrega, uma das razões para que Tomé deSouza mandasse fechar o caminho rumo ao Paraguai era o fato da região ter muito ouroe prata.378 Com efeito, em 1559 a rainha regente D. Catarina comunicava ao governadorMem de Sá que enviara o mineiro Luis Martins para averiguar as notícias das minas nacapitania de São Vicente.379 Teria acompanhado o mineiro, o capitão-mor Brás Cubasque, conforme carta depois enviada ao governador, dizia ter encontrado algum ourocerca de 30 léguas de Santos. Afirmava ainda que o mineiro havia entrado mais uma vezna região e, sozinho, localizara seis outros locais com ouro.380

Esta entrada, do prático em mineração Martins, teria percorrido as redondezas de São Paulo, recolhendo algum ouro e pedras verdes, de pouca monta e interesse, na região de Jaraguá e Caatiba.381 Segundo Miriam Ellys, a entrada de Jerônimo Leitão ao Paranaguá, em 1585, teria também trazido algum ouro de lavagem da região ao sul. Lembremos, inclusive, que Afonso Sardinha, pai, participara desta entrada.382

De qualquer maneira, as suspeitas sobre a existência de metais preciosos naCapitania obedeciam a algumas informações concretas e outras tantas marcadas porexpectativas e desejos.383 Além das tais amostras de pouca monta encontradas eremetidas desde a década de 1550, as lendas de origem tupiniquim sobre o Itaberabaaçu - a Serra do Sabarabuçu -, ou “montanha resplandecente”, alimentavam a imagemdeste interior meio mítico, como que guardando um novo Potosí. Sem contar a nomínimo curiosa “philosofia” da época que também contribuía para aumentar taisexpectativas. Embora um pouco mais tardio, encontramos um exemplo dela em um documento da Biblioteca D´Ajuda, cujo título é “Relações das capitanias do Brasil”. Naparte sobre a capitania de São Vicente lê-se que:

Nos limites desta capitania pela terra adentro obra de quarenta léguas estão as minas de ouro e prata que Dom Francisco de Sousa diz ter descobertas, as quais muitos anos antes se tinha notícia e por boa razão de philosophia esta região do Brasil deve ter mais e melhores minas que as do Peru por ficar mais oriental que ela e mais disposta para a criação de metais.385 [Biblitoeca D´Ajuda. Códice 51-IX-25, f.142, Lisboa. “São Paulo na órbita do Império dos Felipes: Conexões Castelhanas de uma vila da américa portuguesa durante a União Ibérica (1580-1640)” de José Carlos Vilardaga, 2010. Páginas 119 e 120]

Na segunda ida de D. Francisco ao Brasil, um tal Manuel Vandale, flamengo, que também se dizia morador da Bahia de muitos anos, pediu em Madri para ir com o governador como “morador y poblador de las minas del Brasil y lengua de los mineros estrangeros”.

Identificado como cunhado de um mercador rico da Bahia, o tal Manuel foi acusado, num papel anônimo endereçado ao Conselho, desses que “são providenciais e enviados por Deus”, de que suas intenções eram ruins. As acusações davam conta de que ele queria se embrenhar no sertão com seus escravos e passar de engenho em engenho promovendo levantes de escravos contra seus amos.

Por fim, sugeria-se que ele fosse “apertado” para confessar. (AGS, Secretarias Provinciais, Libro 1463). O tal Manuel, sem se dar por vencido, ainda foi a Lisboa, solicitar para ir ao Brasil buscar sua mulher, mas lá também suas pretensões lhe foram negadas (Biblioteca D´Ajuda. Códice 51-VII-15).

Seja como for, o postulante embarcou assim mesmo, já que o governador Diogo de Meneses comunicava, em carta ao rei, que remetia a Lisboa, preso, o tal Vandale, conforme sugeria provisão de VM. (Carta de Diogo de Meneses de 22/04/1609 in CORTESÂO..op.cit.).

Mas nosso sujeito estava longe de esmorecer, pois Paul Mers identifica um tal Manuel Van Dale, vivendo em Santos em 1612, como representante da família Schetz nos pleitos movidos por essa família contra os herdeiros de Jerônimo Leitão em torno do Engenho dos Erasmos. (MERS, Paul. Engenho dos Erasmos. Vestígios de uma primeira multinacional. In vitruvius.com.br/arquitextos/ arq070/arq070_03.asp. Outros rastros de Vandale estão em Eddy Stols, que fala dele como um flamengo denunciado à Inquisição, mas sem precisar as circunstâncias (STOLS, Eddy. A pintura flamenga e as riquezas açucareiras na América colonial; p.376.), e também em Oliveira França, que o identifica como um sujeito que teria auxiliado os flamengos no assalto à Bahia em 1624, o que nos parece bastante razoável e explicaria como ele foi parar em São Paulo – provavelmente fugido -, local onde morreu entre 1626 e 1627, deixando um rico e polpudo inventário. FRANÇA, Eduardo D´Oliveira. “Um problema: a traição dos cristãos-novos em 1624”. Revista de História. O testamento e inventário de Vandale está publicado: I&T. DAESP, Vol. 7, 39-77. Sabendo-se que Cornélio de Arzão, engenheiro flamengo, também veio com D. Francisco em 1608, e depois foi preso pela Inquisição na vila de São Paulo em 1628, pode-se sugerir conexões entre Arzão e Vandale, Além do mais, o governador Meneses, em sua carta, menciona outro flamengo, que lhe teria escapado, chamado Cornelius. Não seria oArzão? [“São Paulo na órbita do Império dos Felipes: Conexões Castelhanas de uma vila da américa portuguesa durante a União Ibérica (1580-1640)” de José Carlos Vilardaga. Página 135]

Dizia Frei Vicente que Francisco de Souza morreu pobre, sem dinheiro para umavela sequer, num quarto do colégio de São Paulo. Dizia Antonio de Añasco, lugartenente de Hernando Arias, que Francisco morreu de tristeza pela notícia da morte deseu filho Antonio, quando este ia a Portugal levando amostras de riquezas minerais ao rei.632 Dizia Antonio Paes de Sande, governador do Rio de Janeiro em 1698, que D.Francisco morreu de desgosto já que os paulistas escondiam o ouro e teriam matado omineiro alemão enviado para sondar as minas.633 Diz certo manuscrito do ano de 1624que Francisco morreu de desgosto porque os padres da Companhia atuavam contra ele,sabotando as descobertas minerais já que imaginavam a enormidade de índios queseriam necessários à exploração das minas.634 As Atas se calam. Por elas sequersabemos quando exatamente ele morreu. E não sabemos, ainda hoje, onde foi enterrado.Por aproximação, estima-se que tenha morrido entre 10 e 11 de junho de 1611, em meioa uma epidemia que atingia a vila.635 Ou seja, não sabemos bem quando, nem onde emuito menos de quê morrera o governador. As versões dão conta mais das ansiedadesde cada um do que de uma informação legítima. Até mesmo nas versões de sua morte ogovernador foi apresentado de diversas maneiras. E talvez essa série de versões nosajude a revelar um pouco mais do que foi a história da região nas décadas posteriores:uma disputa acirrada por hegemonia e pelos despojos do governador, com aliançasinstáveis, conexões interrompidas e a eclosão de grupos e facções em confronto. [“São Paulo na órbita do Império dos Felipes: Conexões Castelhanas de uma vila da américa portuguesa durante a União Ibérica (1580-1640)” de José Carlos Vilardaga. Páginas 187 e 188]

Ao que tudo indica, alguma mão de obra negra foi efetivamente utilizada notrabalho de beneficiamento das minas de ouro. Segundo certidão apresentada emautodefesa pelo mineiro-mor Manoel Pinheiro Azurara, de julho de 1604, num processocriminal movido contra ele em Assunção, os camaristas de São Paulo comunicavam queAzurara tentara alocar gentios paras as minas, mas “a pouquidade dos mesmos gentios eoutros inconvenientes que não foram seu particular” o impediram. Mesmo assim, asminas de Montesserrate e São Francisco estavam sendo exploradas por moradores deSão Paulo e gente de “fora com escravos da guine”. [“São Paulo na órbita do Império dos Felipes: Conexões Castelhanas de uma vila da américa portuguesa durante a União Ibérica (1580-1640)” de José Carlos Vilardaga (2010). Página 159]

não seduzia muita gente. O adelantado Jaime Rasquim, em 1557, por exemplo, já emdesespero para angariar colonos para povoar a região, acabou abrindo possibilidade atodos que quisessem ir, tirante “moriscos, mulatos y estranjeros”, mas mesmo a estesfez-se uma exceção, caso fossem marinheiros. Ao final, depois de permitir inclusive quecasados fossem sem suas mulheres, conseguiu um pouco menos de 300 colonos, parauma meta inicial de 600! Para completar o fracasso total do empreendimento, nenhumdeles chegou ao Paraguai, pois a má navegação acabou levando todos a São Domingos.Num cenário ainda mais desalentador, em 1562, dezenas de colonos de Assunção foramembora da cidade rumo ao Peru. Um êxodo em massa!694 De todo modo, mesmo comtodos os contratempos, uma expansão, ainda que lenta e pouco populosa, efetivamentese deu no território guairenho.O processo de conquista empreendido pelos castelhanos no Guairá se iniciou em1554, com Garcia de Vergara, que fundou, com 60 espanhóis advindos de Assunção, opovoado de Ontiveros, nas margens do rio Paraná. Dois anos depois, em 1556, o novogovernador da Província do Rio da Prata e Paraguai, Gonzalo de Mendoza, enviou RuyDíaz de Melgarejo para fundar Ciudad Real del Guairá, na foz do rio Piquiri, também àsmargens do rio Paraná. A vila, situada a dez quilômetros de Ontiveros, foi povoada em1557, com 100 colonos que acompanharam Melgarejo e pela população de Ontiveros,transferida para Ciudad Real.O mesmo Melgarejo fundaria, em 1570, Villa Rica del Espiritu Santo, distante60 léguas de Ciudad Real. Levava com ele mais cavalos que homens: 40 vecinos e 53cavalos.695 Em 1575, já com os títulos de tenente-governador, capitão-geral e justiçamaior de Ciudad Real e Villa Rica, tentou desenvolver a mineração de ferro e pareceusonhar com algum ouro ou prata, justificativas que utilizou, aliás, para a fundação donovo povoado. Agindo como típico conquistador, Melgarejo distribuiu solares,encomiendas e mandou erguer fortaleza. Fundou a vila entre as nascentes dos riosPiquiri e Ubay, no “camino sabido e andado por donde entro el dicho gobernadorCabeça de Vaca y por onde este testigo guio e traxo con el ayuda de dios nuestro senoral capitan Hernando de Trejo e gente de la armada del governador Juan de Senabria”.696Contudo, Villa Rica, localizada em lugar alto e fértil, sofreria ainda uma mudança de sítio em 1599, transladando-se para as proximidades do rio Corumbataí com o Ubay.Villa Rica, como seu nome indica, nascia sob a promessa de uma riqueza mineral daqual se ouvia falar. As minas de ouro, prata, ferro e outros minerais, que teoricamentepovoavam o interior, compartilhavam, no fundo, do mesmo espaço sonhado pelosportugueses de São Vicente. O miolo da América deveria ser riquíssimo para aqueleshomens.697Mas a ocupação castelhana do Guairá se deu, essencialmente, sob o impacto dasdisputas entre as facções políticas e caudilhescas, bem como em demanda de terras edos desejados índios carijós. Dentre as cidades guairenhas, que ainda teria o acréscimode Santiago de Jerez (fundada por Ruy Diaz de Guzmán em 1580), Villa Rica assumiriaum papel de destaque.698 Segundo o relato de um padre jesuíta:Concepción del Bermenjo tenía 70 vecinos: de ellos eran encomenderos 25: 6 milindios frentones de servicio, no labradores, "gente viva y mui vil... colerica". Delas otras ciudades se expresa: Corrientes tiene sesenta españoles y pocos indios depaz; Asunción doscientos vecinos y 6 mil indios de paz, los demás alzados,Villarrica, cien vecinos y más de cien mil indios tributarios, sin contar mujeres yniños... El Sp. santo (ciudad Real) 60 vecinos y pocos indios. Jeréz tiene 60 vecinosy muchos indios de naciones distintas de la guaraní y que Santa Fe contaba conmuchos indios antes de la peste habida por entonces. Buenos Aires tiene 60vecinos699.Apenas Assunção parecia concentrar maior população europeia na região, aopasso que Villa Rica tinha à disposição uma abundante população indígena. As duasprincipais vilas guairenhas apresentaram um desenvolvimento bastante diferenciado:enquanto Villa Rica demonstrou relativa prosperidade, Ciudad Real manteve certaestagnação. A proximidade desta com o centro erval das redondezas do porto deMaracayú, mais bem posicionado e privilegiado pelo monopólio de embarque da erva,deve ter estrangulado economicamente a vila. Além disso, cedo a região foi atingida porgrave escassez da mão de obra guarani a sua volta. Segundo o jesuíta anônimo quevisitou a região em 1620, Ciudad Real possuía de 25 a 30 vecinos, “toda la gente ruin e la tierra es mal sana”.700 Numa leitura um pouco mais simpática, mas igualmentedesalentadora, o provincial Nicolas Duran, em 1627, em sua carta ânua, falava que:

Os espanhóis que vivem nesta cidade são aproximadamente cinqüenta homens,filhos da boa gente que veio de Espanha para o Paraguai, e se consideram muitoricos porque se contentam com sua pobreza. A roupa ordinária é de algodãotingido e raras vezes conseguem alguma roupa de Espanha. Não existem lojas demercadores e não se encontram oficiais de artes mecânicas porque todos os são,em suas casas... Não tem ambições, nem desejo de obter honra nessa vida, nem deexaltar sua linhagem, porque o oficio mais supremo a que aspiram é o de seralcaide de seu povoado. 701

Por outro lado, Villa Rica del Espírito Santo, que teve uma segunda fundação em1589, mantendo-se até 1632, parece ter atingido uma maior prosperidade. Segundoestudos de Claudia Parellada, baseados nos vestígios arqueológicos em Nova Cantu,atual Paraná, a cidade teria uma área total de 300.000 metros quadrados e seria cercadapor chácaras. De acordo com o modelo codificado urbano da lei de 1573, o povoado era“enxadrezado de ruas retilíneas”. Possuía um centro com uma praça e terrenos ao redorque não poderiam, conforme o regimento, ser cedidos a particulares, mas sim à Igreja,aos edifícios reais e municipais. As ruas tinham de 10 a 12 m de largura e cruzamentosem ângulos retos. Suas quadras tinham a dimensão de 100x100m e eram cercadas pormuros de taipa. As casas eram pequenas e de taipa com telhas. No canto sudoeste dapraça, situava-se a igreja, também de taipa e com cobertura de telhas, dedicada a SãoJoão Batista e pertencente à Companhia de Jesus. Ao lado, existia um cemitério. Naparte leste da vila, dispunham-se as ruínas de casas de alvenaria, com poço paracaptação de água, e fornos para fundição de metais. As pesquisas arqueológicasencontraram ainda muitas escórias de ferro espalhadas pelas ruínas e casas subterrâneas,provavelmente para os índios guaranis.702

Dentre os moradores da vila desde os seus primeiros tempos estavam Alonso Benitez, Pedro Miño, Francisco Romero, Melchior Moreno, Manuel Duarte (português), Juan Baptista Troche, Hernando de Melgarejo, Juan Pérez de Godoy, Diego González, Francisco de Peralta, Juan de Villalba, Bartolomé de Contreras, Juan Alvear de Zuniga, Antonio Bernal e Gabriel Ponce de Leon, considerados os conquistadores do Guairá.

A simples enumeração destes nomes já nos remete a uma série de personagens que iriam se instalar ou construir vínculos com a vila de São Paulo. Dentre eles destacamos Benitez, Miño, Peralta, Torales, Zuniga, Ponce de Leon. [Páginas 207, 208 e 209]

Com o tempo se intensificariam por tal forma (as relações) que o próprio Nóbrega,em uma das cartas agora publicadas, chegou a alarmar-se ante a perspectiva dever inteiramente despovoada a capitania e pensou na conveniência de conseguir aCompanhia alguma entrada em terra de Carijós, “donde se fosse quando de todoSão Vicente se despovoasse”.749O fato de o interior paraguaio representar um poderoso imã ajuda a explicar asações de Tomé de Souza, que procurou preservar a capitania vicentina mantendo-avinculada ao mundo marítimo português. Ainda segundo Sérgio Buarque, as proibiçõessurtiram efeito, e o caminho teria sido, gradativamente, abandonado, ou então,eventualmente, utilizado às escondidas. “Durante o meio século que se seguiu a viagemde Salazar e dos Góis, ficou de todo esquecido, segundo parece, o caminho por terra aAssunção”.750

De fato, no levantamento nominal que fizemos das pessoas que atravessaram pelo caminho proibido de São Paulo (ANEXO), totalizando 108, nenhuma, daquelas que conseguimos localizar o tempo de entrada (85%), o teria feito no século XVI. Contudo, o trânsito no referido caminho não deve ter desaparecido de todo. Haja vista o caso do “Polaio”, proibido de fazê-lo já na década de 1570; a chegada dos Saavedras e Cañamares na vila, provavelmente vindos com bandeiras de São Paulo, identificáveis somente a partir da década de 1580 e os relatos de Diego Flores de Valdez, falando do caminho que ia ao Paraguai; todos parecem indicar que o caminho estava aberto. Um Gaspar Fernandes, acusado de traficar gentios do Paraguai para São Vicente na década de 1580, e um Manuel Fernandes, casado com uma integrante da família Adorno de São Vicente, que tinha um representante vivendo em Assunção e também frequentava o Guairá nesta década, mostram que mesmo uma incursão mais regular era possível nestestempos.751

De qualquer forma, no trajeto, deveriam pesar, sobretudo, as ameaças indígenas.Somente com certa conivência ou anuência dos grupos indígenas, este percurso poderiaser utilizado com o mínimo de regularidade. As redes de alianças feitas com os índiosnos primeiros tempos, tanto do lado tupi-português quanto do hispano-guarani, devemter garantido certa paz, preservando a segurança dos viajantes. O espaço entre oParaguai e a capitania vicentina era, de fato, mais um território indígena que colonial, eo relato de Ulrico Schmidil denota isso. Depois de atravessar o território dos karios, [Página 223]

o terreno do sertão e foi estabilizando o caminho que, aos poucos, seria retomado. Osportugueses e suas entradas, de um lado, e os castelhanos e suas malocas, de outro,foram reconstruindo uma relação de contato entre as partes, mas agora sob uma novarealidade macropolítica. Na década de 1550, os primeiros contatos foram marcadostanto pela rivalidade ibérica quanto pela necessidade de constantes parcerias impostaspela dura realidade local. Para Sérgio Buarque de Holanda, nesse momento inicial, ocontato entre São Vicente e Paraguai era mais desejado pelos castelhanos que pelosportugueses, numa curiosa inversão do que aconteceria a partir das décadas de 1630 e1640.762 Os anos de 1580 trouxeram à tona a nova formatação imperial filipina etransformaram o espaço guairenho-vicentino num único território em processo deformação e integração, já que os limites legais eram teoricamente desaparecidos, adespeito de, ainda no final do século XVI, cédulas reais tentarem restringir estesintercâmbios.

A primeira cédula que tenta impedir o trânsito terrestre entre a América espanhola e o Brasil é de 26 de junho de 1595, na esteira das incursões feitas a partir de Santa Cruz de la Sierra rumo ao Brasil. Somente em 1602, no reboque da autorização temporária do comércio de Buenos Aires, é que se tenta proibir o trânsito pelo Guairá.

Contudo, estes pareciam ter mais a ver com a tal preservação dos monopólios comerciais, do que propriamente com um olhar atento às afinidades lusocastelhanas no mundo paraguaio, tema que despertará a atenção somente no final da União Ibérica.

Mas foi no início do século XVII que o uso do caminho reapareceu explicitamente na documentação, tanto castelhana quanto paulista. Foi mais precisamente em 1603 que irrompeu o tema do “caminho de São Paulo”, o que parece ter derivado da política imperial castelhana em relação à presença de portugueses sem licença nos espaços coloniais do império.

Foi na sequência da cédula real de 1602, que solicitava aos governadores a expulsão dos portugueses sem licença, que as medidas punitivas e investigativas trouxeram à cena a via de São Paulo. Como efeito imediato da cédula real, o novo governador Hernando Arias promoveu o primeiro grande ímpeto repressor, reembarcando 28 portugueses clandestinos residentes em Buenos Aires [15.09.1603].

Nessa mesma ocasião, um auto de investigação foi levado a cabo em Assunção. Nele se condenou “un portugues llamado Pedro Acosta que entro por el camino prohibido de san pablo...” a voltar pelo mesmo, além de terem-lhe confiscado e leiloado o “negro esclavo de angola” que trazia consigo.

Curioso notar, contudo, que, ao mesmo tempo em que portugueses eram expulsos de Buenos Aires e Pedro Acosta processado e condenado em Assunção, tudo sob a governança de Hernando Arias, o próprio tenha estimulado a ida de soldados de Villa Rica pelo mesmo caminho de São Paulo para estabelecer contatos.766 Nas atas paulistas de 22 de novembro de 1603, ou seja, um mês depois da condenação de Acosta, lê-se que:

Soldados espanhóis que vieram da Villa Rica do Espírito Santo Província do Paraguai, a saber João Benites de La Cruz, procurador e Pero Minho, Pero Gonsales, Sebastião Peralta despachados pelo major dom Antonio de Andrasque a tratar que sendo-lhes necessário socorro como cristãos e vassalos de sua majestade lhe dessem desta...mas que não se meteriam fazendas de uma parte para outra até sua majestade ser avisado. [22/11/1603]

No dia seguinte, o capitão Pero Vaz de Barros, de São Paulo, acertou com o então ex-governador geral do Brasil, D. Francisco de Souza, a decisão de enviar de 12 a 15 homens pelo caminho:

Para verem a disposição da gente e os sítios e assentos dela e para saberem se está a terra toda segura de inimigos e que tudo se desse conta ao senhor governador geral para ele avisar a sua majestade...pelo proveito que se esperava de se abrir este caminho e comércio [23/11/1603].

O contexto abarcado por estas medidas ainda é ambíguo quanto às relações entre as partes. De um lado, uma política demarcatória, restritiva e persecutória, e, de outro, uma série de aproximações. Para além de certa retórica feita para dirimir qualquer dúvida quanto ao legalismo dos oficiais envolvidos, o fato é que, depois destes quatro soldados, outros tantos personagens fariam o caminho nos dois sentidos, e, apesar de o texto da ata pontuar que, somente após a aprovação do rei, se passaria fazenda, inúmeras mercadorias percorreram o tal caminho proibido. Interessante notar que, ainda em julho de 1603, portanto antes da abertura oficial do caminho, os oficiais da Câmara de São Paulo escreveram uma carta ao governador-geral reclamando de várias coisas,dentre elas a tentativa de Diogo Botelho de cobrar o terço dos índios descidos do sertão.E comunicavam que, se os moradores que estavam no sertão soubessem disso, semeteriam “no caminho do piquiri que he província do rio da prata”, o que reforça a hipótese de que o caminho foi trilhado continuamente desde a segunda metade doséculo XVI [19/07/1603].

De fato, a contiguidade entre os territórios era evidente. Diego Flores sugeriuque o rei tomasse a posse da capitania de São Vicente, vislumbrando as relações queárea tinha com o interior paraguaio. Em 1610, o Marques de Montes Claros tambémrecomendava que a vila de São Paulo entrasse para a nova governação, que naquelaaltura se estudava, do Paraguai separado do Rio da Prata.770 Hernando Arias, por outrolado, já desesperançoso com a integração das partes, achava que a solução seriadespovoar a vila, para garantir a sobrevivência do Guairá. Igual perspectiva, mas menosdrástica, teria o vice-rei do Peru, Conde de Chinchón, em 1630, ao sugerir que o reisimplesmente comprasse a capitania, que era mesmo de particular, para botar freio nosassédios paulistas às reduções. O que se pode deduzir destas sugestões, todascastelhanas, senão do ponto de vista da América espanhola, é que São Paulo era, oudeveria ser, parte da governação do Paraguai e Rio da Prata. Com base nesta crença, quenunca desapareceu, foi que a Villa Rica acionou a série de eventos e aproximações que,por algum tempo, tornaria a relação entre as partes bastante integradora e conectada.

Mas, por que isto ganharia relevância justo em 1603? Difícil responder a esta pergunta, mas ressaltemos que a bandeira de Nicolau Barreto, que partira de São Paulo em 1602, já havia passado por aquelas bandas e ajudara, com certeza, a aplainar ainda mais o terreno, visto o notório descimento de gentios que a entrada empreendeu.

Ademais, como mostramos no capítulo anterior, poderia já ser o resultado das iniciativas de Francisco de Souza na articulação comercial da vila com os novos espaços. Por fim, talvez não fosse fortuito o fato de que, neste ano, os ofícios da Câmara de São Paulo contavam com um vereador, José de Camargo, e um procurador, João de Sant´Anna, castelhanos, o que pode ter tornado os contatos um encontro regado a lembranças de Castela!

De todo modo, 1603 inaugurou uma nova fase na relação entre São Paulo e o Guairá. A documentação, esparsa entre São Paulo, Assunção e Espanha, mostra, entretanto, que esta relação foi marcada por muitas oscilações. Mesmo porque, obedecendo à política de restrição, continuou-se a fomentar processos judiciais contra os que utilizavam o caminho, conforme atestam diversos autos feitos entre 1603 e 1631, [Páginas 226, 227 e 228]

gobernador para despachar a todos los hombres como portugueses y castellanos quehallase en las provinsias de Guayra y Villa a la de San Pablo por donde avianbenido”803. Segundo testemunho de Corona, “salio este testigo con quarenta hombres dadita Villa Rica”.804 A informação, portanto, dá conta de uma espécie de deportação emmassa nas vilas de Ciudad Real e Villa Rica, abarcando cerca de 40 homens, o que, napaisagem demográfica da região, correspondia a quase uma Ciudad Real inteira emtermos de vecinos.Entretanto, gente continuou a fazer o caminho proibido, ao longo das décadasseguintes, e muitos se estabeleceram no Paraguai, ou em Assunção, ou em Villa Rica eGuairá. Ocasionalmente, processos, prisões e autos colocavam algum freio ou criavamcerto clima de apreensão, mas, como veremos, isso não impediu o trânsito nem sequer ocomércio com esses homens que alcançavam o Guairá. O próprio Juan Corona chegou aser processado por Manoel Pinheiro, em 1612, por ter-lhe tomado mil e quinhentaslibras de erva e enviado a Assunção sob título de doação para a cidade.805Ademais, mesmo nos momentos mais tensos das relações entre os moradores deSão Paulo e do Guairá, ou seja, de ataques sucessivos das bandeiras às reduções, esteslaços saltaram aos olhos. A pequena vila de Santiago de Jerez, por exemplo, no atualMato Grosso do Sul, às margens do rio Aquidauana, teve, desde o princípio, uma vidadifícil. Assediada constantemente pelos índios paiaguás e guaicurus, chegou a tersomente 15 moradores no início do século XVII. Com a chegada dos jesuítas e aformação das reduções do Itatim, a vila ganhou um pequeno fôlego, que durou até oassédio dos bandeirantes a partir do final da década de 1620. Para os jesuítas, oshabitantes renderam-se ao cerco dos paulistas e acabaram abandonando a vila em 1632,transladando-se, todos, para a vila de São Paulo. Mas, segundo Felix de Azara, queesteve na região no século XVIII, os “desgustados del gobierno [por causa dasordenanzas de Alfaro] se fueron establecer em San Pablo...”806 Qualquer que tenha sidoo motivo, sempre foram alegados o abandono da vila e a fuga para São Paulo.Como elemento ainda mais revelador destes vínculos, devemos ponderar quequase a totalidade dos hispano-paraguaios que foram para o planalto depois doabandono de Villa Rica e Guairá, na esteira dos ataques paulistas, se assentou definitivamente em Santana de Parnaíba, núcleo distante oito léguas de São Paulo. Aponte desta migração foi a família Fernandes; e o assentamento de uma parte destapopulação de castelhanos se fez em torno dos parentes de Baltazar Fernandes: sua filha(Maria de Torales), que lá ficara mesmo depois da morte da mãe, seu genro (GabrielPonce de Leon), seu irmão (Barnabé de Contreras) e seu cunhado (Bartolomeu deTorales). Mas também participaram do grupo outros moradores da região, com outrosvínculos com o planalto, dentre eles Simão de Miño e Sebastião Peralta, provavelmentefilhos ou parentes daqueles soldados vindos pelo caminho em 1603 [Os dois aparecem no inventário do capitão João Missel Gigante, feito em Santana do Parnaíba, em 1645. I&T,DAESP, vol.32. Simão teve seu próprio inventário feito em Santana de Parnaíba, em 1649. I&T. DAESP, vol.40.]. Segundotestemunhos colhidos pela Audiência de Charcas sobre o despovoamento de Jerez,alguns moradores de São Paulo tentavam atingir o Maranhão, quando foramconvencidos, por Don Diego de Orrego y Mendoza (neto de portugueses) e GabrielPonce, entre outros, a assediar os índios do Itatim e forçar o despovoamento da vila.808Mendonza - assim como Ponce - se transladou para Santana de Parnaíba, casando-secom uma das filhas de Baltazar Fernandes, Mariana Proença.Outros documentos comprovam ainda estas relações. Em testamento feito emSantana de Parnaíba por Ângela de Campos e Medina, lê-se “sou natural da Villa Rica,Província do Paraguai, filha legitima de João Baptista Troche e Joanna de o Campo, osquais me casaram com Diogo Guilhermo (...)”809 Ângela era irmã do padre vilariquenhoJuan del Campo y Medina, cuja trajetória se encerrou em Santana do Parnaíba onde setornara vigário. Além disso, seu marido Diogo também lá se assentara.

Juan e Angela eram pertencentes à família Troche, de conquistadores do Guairá. Ele, como vigário, fez otestamento, em castelhano, da matriarca dos Fernandes, Suzana Dias. Sua condição de castelhano servirá, em parte,de argumento nos ataques de Antonio Raposo Tavares, e outros, à igreja e aldeia de Barueri em 1633.

Em 16 de setembro 1639, numa Real Cédula se lamentava que “a província del Paraguay esta arriesgada pues de quatro ciudades que tenia le faltan las tres y solo a quedado la Assumpcion”. Recomendava-se, naquela ocasião, a prisão e o envio para Madri dos portugueses Antonio Raposo Tavares e Federico de Mello Coutinho, principais responsáveis pelo despovoamento da região. Entretanto, nesta cédula, surgia também uma rede de cúmplices que atingia, além dos clérigos Juan de Campo Medina, Francisco Xorxe e Salvador de Lima que “las fomientan...”, alguns castelhanos ou portugueses que foram vizinhos “del Paraguai por que servem de guia a los que van a las entradas”, dentre eles Sebastião de Peralta, Diego Guillermo, Diego Dorexo, Fulano Ponce, Francisco Sanches, Fernando Melgarejo, Gabriel Brite, Amador Gonçalves, Pedro Domingues.811 Grande parte tratava-se de moradores de Santana de Parnaíba.

Efetivamente o caminho para Villa Rica continuou a ser frequentado mesmo depois do abandono do núcleo original da vila, como atesta, por exemplo, o inventário de Felipe Nunes, que, em 1636, “vindo para esta vila no caminho da Villa Rica o mataram os índios”.812 Este Nunes já era morador antigo do Guairá, pois, em 1630, quando Xeria mandara fazer um levantamento de quem ali havia entrado pelo caminho proibido de São Paulo, lá estava o sujeito. Além disso, num suspeitoso processo de 1621, ele aparecia recebendo um tacho de cobre, parte dos bens confiscados de um mercador chamado Moxica Maldonado.813 Retomando o processo de Benitez de 1631 e o tal “bilhete” que teria sido enviado pelos portugueses, encontramos um trecho bastante significativo em que Cristóvão Diniz, morador de Parnaíba e cunhado de André Fernandes, alertava o“amigo” Benitez que eles apenas desejavam os índios (do pueblo de Ytupe, portanto, não era uma redução jesuítica) e avisava que o lugar seria atacado “com quarenta brancos de que me pesa muito de minha parte mas o que me consola é que nenhuma pessoa dos de Parnaíba estão cá, que todos somos recolhidos.”814 O fato de Diniz ressaltar o comportamento dos moradores de Parnaíba em contraste com os de São Paulo, nos revela relações e procedimentos não necessariamente consensuais por parte dos paulistas, mas que exprimem um grau de cumplicidade que já tinham com os circuitos guairenhos. E as conexões não eram recentes. Concluí-se, também, que os vínculos de Benitez se fizeram, principalmente, com os moradores de Parnaíba, dentreeles o próprio Diniz e, muito provavelmente, André e Baltazar Fernandes, nomes sempre presentes no trânsito pela via proibida. De fato, quando as bandeiras paulistas, lideradas inclusive por André, começaram a destruir as reduções jesuíticas entre os anosde 1628-1631, o espaço era já velho conhecido dos moradores, e muitos deles tinhamparte de seus ganhos atrelados a este trânsito.Trânsitos e intercâmbios pela via proibida [Páginas 237, 238 e 239]

Alves, do qual não conseguimos notícias, e Miguel Gonçalves Correa, a quem Arzãoemprestou 16.000 réis. Este último figurava no censo feito pelo governador Luis deCéspedes e Xeria em Maracayú, em 1629, como casado em Assunção. Quanto aocapital de Arzão, provavelmente virou erva-mate.818 De todo modo, estes dadosparecem indicar que uma parcela importante dos proibidos capturados peladocumentação acabava, de fato, permanecendo no mundo paraguaio, e atrelando suasvidas às possibilidades locais, em especial à erva-mate. As partes do Peru, na verdade,revelam uma imprecisão geográfica, identificando-se, grosso modo, com as Índias deCastela na América do Sul. O caso de Manoel Pinheiro Zurara, rapidamente esboçado no capítuloprecedente, merece um pouco mais de atenção aqui. Trata-se, sem sombra de dúvida, domesmo que aparece na data de chão dada ao vigário João Pimentel, em São Paulo, noano de 1607. Sabemos que, apesar de ter sido identificado como Miguel PinheiroAzurara e castelhano por alguns autores, era, de fato, português e seu primeiro nomeManoel.819 Conforme seu depoimento dado em Assunção, era “avencidado” há mais detrinta anos no reino de Nova Granada, onde tinha mulher e filhos. Os processos de 1606não apresentavam a sua idade, mas, em suas petições, sempre alegava ser “viejo y muienfermo”. Devia, portanto, ter chegado ainda jovem às Índias de Castela, por volta de1570. É provável que tenha vindo ao Brasil em 1590 por mandato de D. Francisco deSouza, pois era mineiro de ouro, e seguido para São Paulo, juntamente com ManuelJuan, a fim de averiguar os indícios do minério na região. Ele permaneceu longos anosna vila, já que, em 1600, escreveu o testamento de Gaspar Fernandes - genro de AntonioPreto e sujeito, por sinal, bastante assíduo na região paraguaia.820 Entre 1602 e 1604,esteve no reino, passando por Valladolid, Madri e Lisboa com Diogo de Quadros,Manuel Juan e Martim Rodrigues Godoy, na série de pleitos encomendados por D.Francisco de Souza.821 Zurara retornou com uma licença para entrar no reino de NovaGranada, onde residia sua mulher e filhos, uma autorização para levar com ele doiscriados, e uma mercê da nomeação como mineiro-mor das minas de São Paulo, pelotempo de dois anos, com salário de 1.500 cruzados sacados dos rendimentos das minas. [Página 241]

Ali, os carijós intermediavam o fornecimento de cativos aos portugueses. No caminho do Guairá, também contataram os guaranis, motivados ainda pela lógica das disputasindígenas do interior. A grande entrada punitiva de 1585, liderada por Jerônimo Leitão,por exemplo, tinha a intenção de atacar os carijós, ansiosamente aguardados comocativos pelos colonos, sempre abrigados no guarda-chuva da guerra justa. 858

John Monteiro mostra como até 1610 os grupos Temiminós, do ramo Tupi, teriam sido as vítimas preferenciais das expedições de apresamento dos paulistas, conforme revelariam o botim da entrada de Nicolau Barreto (1602-1604) e os índios trazidos por Manoel Preto em 1607, na volta de Villa Rica. Mas, segundo este autor, entre 1610 e 1640 é que se daria o período fundamental do descimento dos carijós em São Paulo.859

Coincidiria, basicamente, com o período das relações com o Guairá: da abertura dos contatos e intercâmbios frequentes à destruição das reduçõs guairenhas. Na verdade, uma parte importante das mudanças nas relações entre as duas regiões seconcentrou exatamente na disputa sobre essa massa indígena. Contudo, este descimentonão foi, como se imagina, simplesmente violento e arbitrário. São várias as referências aíndios descidos pacificamente ou migrações voluntárias para São Paulo nas atas daCâmara, como o episódio de Afonso Sardinha, que não quis apresentar certos carijós àvila. Muitos vinham atraídos pelas mercadorias, outros fugidos dos castelhanos doParaguai ou ainda alguns em demanda por parentes e membros da tribo.

Em 1607, o vereador Domingos Luiz reclamava que muitos moradores iam ao sertão, com tendas de ferreiro, fazer resgate com os carijós. Estes se deslocavam do interior por canoas até o “piassava”, onde faziam as trocas, principalmente, com objetos de ferro, visto que, por exemplo, Belchior Rodrigues pediu autorização para montar ali sua forja. [11/02/1607 e 01/12/1607.] Três anos depois, Clemente Alvares montou sua tenda de ferreiro em Pirapitingui, no salto do Tietê, provável lugar do “piassava”. [31/10/1610] Neste mesmo ano, Diogo de Quadros, o provedor das minas, organizou uma entrada para o sertão, gerando protestos da Câmara que pedia que ninguém o acompanhasse. De todo modo, os carijós eram já abundantes em 1615, tanto que, no retorno de uma bandeira do próprio Quadros, eles foram matriculados e partilhados entre 78 moradores.862

Em 1616,Martim de Sá, em carta ao governador Luís de Souza, propunha um plano de defesa da costa do Rio de Janeiro com aldeias de índios colocadas em pontos estratégicos. Estesíndios viriam de São Paulo, “dos indios carijós que de paz desceram os Pretos,principalmente Manuel Preto e seu irmão José Preto, e outros muitos que estão tomadosda aldeia de Marueri que mandou descer Dom Francisco de Souza para as minas”.863 Aabundância de carijós teria permitido até mesmo relativo comércio para outrascapitanias, sobretudo depois do resultado dos ataques de 1628-31. Montoya chegou aafirmar que um índio comprado pelos paulistas, junto aos pumberos, por 4 pesos erarevendido, no Rio de Janeiro, a 40 ou 50 cruzados.864

As rivalidades com os moradores do Guairá em torno dos carijós também começou cedo. Em 1608, já se protestava na Câmara que “algumas pessoas que vinham a essa vila se apoderavam de indios que pelo caminho achavam aposentados como seja ao longo deste rio Anhembi”, o que era prejudicial para as boas relações com eles, que vinham em paz “se meter conosco mais razão era ajudá-los a vir que não fugeá-los nem agravá-los...” [05/10/1608].

No mês de março do ano seguinte, alguns carijós se apresentaram à Câmara. Eram, segundo notícias, índios muito “maltratados e faltos de mantimentos”. Vinham voluntariamente, e encontraram, pelo caminho, outros grupos que também se dirigiam à vila. Relatavam como os “espanhóis” não queriam deixá-los vir, buscando, inclusive, atrair uma parte dos índios para eles mesmos. No final, um dos índios narrava que, chegando ao porto, em São Paulo, se depararam com alguns moradores que, aotomar conhecimento de sua chegada, os capturaram e tentaram cativá-los [28/03/1609].

Tais relatos mostram uma população razoável de carijós que se deslocava para as proximidades davila de São Paulo, onde era, de modo geral, tomada como cativa e distribuída entre osmoradores e para os trabalhos nas minas. E o afã com que os moradores caíam sobreestes carijós era impressionante. Esta chegada em levas sucessivas coincidia com asiniciativas de D. Francisco de Souza, embora, em 1609, uma nova lei proibisse a guerrajusta e desse, aos jesuítas, maior poder na administração destes novos carijós recémchegados. Neste mesmo ano, os jesuítas começaram suas ações missionárias e a formaçãode reduções na região do Guairá. Atraída e estimulada pelo governador Hernando Arias,que via na presença dos padres uma forma de garantir o controle do território, já quenão havia recursos humanos para o povoamento e conquista da região, a Companhia de [Páginas 256 e 257]

Nesse sentido, a separação das províncias se tornaria o resultado natural dasações de Hernando Arias, que, durante seus dois governos anteriores (1602-1609/1615-1618), promovera as mais duras perseguições aos proibidos que entravam tanto peloParaguai quanto por Buenos Aires.888 É difícil acreditar que Arias fizesse isso porexcesso de zelo. Alguns autores enxergam nas ações do governador criollo a tentativade controlar um comércio fugidio e clandestino, por meio do qual pretendia tambémexercer seus ganhos e impor alguns privilégios. Era um monopolista, pois sempreprocurou preservar alguns monopólios e certa restrição de importação para o Paraguai,preocupado em não desmontar a precária economia local, baseada no açúcar, cera, mel evinho. De todo modo, parece ter, aos poucos, perdido a paciência com São Paulo. Se nocomeço do século XVII ainda propunha uma conexão, em 1616 escrevia ao reisugerindo simplesmente que se despovoasse a vila, pois achava que era a única formade fazer cessar as investidas paulistas ao Guairá e impedir a entrada de gente proibidapelo caminho.889A criação da nova governação do Paraguai, pela qual Arias tanto lutara, nãopoderia mais, segundo sua perspectiva, incluir São Paulo como porto natural ou saídaatlântica. 890 Alguns anos antes, ele já havia proposto a criação de um porto mais ao sul,nas proximidades de Santa Catarina. Por outro lado, a governação subsequente deManoel de Frías não poderia prescindir do caminho pela via proibida, já que estavaformalmente apartada do comércio por Buenos Aires. De fato, a separação sósacramentou uma situação marginal de Assunção – e do Guairá – em torno das rotas decontrabando.Nas conexões entre o Guairá e São Paulo, costurava-se, portanto, uma teiaintricada de interesses que ia das rotas comerciais à disputa pelos carijós, o que explica,em parte, a ambiguidade das posturas e das relações das autoridades. Em São Paulo, em1615, as atas da Câmara reforçavam as proibições com uma carta do capitão Martim deSá recomendando que “ninguém vá ao sertão nem a Villa Rica”.891 Em Assunção, aproibição de “entrar portugueses espanoles estranjeros por el puerto de san Pablo”rendia processos e prisões.892 Entretanto, quando olhamos a tabela com as entradas de [Página 264]

Um último tema seria ainda agregado aos paulistas, todavia de maneira mais irregular. A identificação dos moradores com os mamelucos, curiosamente, aparece pouco nas missivas jesuíticas deste tempo. De modo geral, nestas, remete-se aos “portugueses” e “tupis” como seus asseclas. Já o governador do Paraguai, Martim de Ledesma Valderrama, em 1637, afirmava com todas as letras as “insolencias y atrevimentos de los portugueses mamelucos del puerto de San Pablo que en desacato de S magestade desde el ano de vinte y ocho anentrado a usurpar la real jurisdicion y terrasdesta província” [ 07/10/1637].

Pedro Taques também comentava sobre a obra do jesuíta Francisco Xarque de Almeida, publicada em 1687, que tratava os paulistas como “mamalucos elobos carniceiros contra os índios”.965 Por fim, numa carta do governador de BuenosAires, relata-se o caso de Juan de Peralta, morador de São Paulo que chegou à cidade nadécada de 1630, depois que sua vila natal, Villa Rica, “fue embadida por losmamelucos”.966 Por outro lado, mesmo Montoya, que chegou a promover umacomparação entre os moradores de São Paulo e os de Assunção em 1643, chamava ospaulistas de “gente mui belicosa y bestial, es cierto”, mas nada falava sobre osmamelucos. Estes, se comparados aos mancebos da tierra do Paraguai, deveriamcarregar certa visão negativa, como já referenciamos no capítulo 3. Para EfraimCardozo, os mestizos do Paraguai, ou mancebos da terra, eram “soberbos y inquietos”, eassociados, de modo geral, com a delinquência e excessiva liberdade, mesma tônicareconhecida por John Monteiro e, aliás, atribuída aos mamelucos que acompanhavam ospaulistas nas Minas Gerais no século XVIII.967 Na clássica obra fomentadora da “lendanegra” paulista no século XVIII, do padre Charlevoix, os mamelucos eram consideradosgeração perversa, e tinham tal nome “por causa da sua semelhança com os antigosescravos dos soldões do Egito”. 968A associação do morador de São Paulo ao mameluco não parece ter sido,portanto, tema fundamental da retórica jesuítica no tempo da União, sendo desdobradamais fortemente na segunda metade do século XVII. O que, sim, nos parece claro é que,entre o final da década de 1620 e o fim da União Ibérica em 1640, a retórica sobre omorador de São Paulo tentava acentuar sua condição de “português”, que afrontava aCoroa e a fé. Daí Antonio Ruiz de Montoya ter resolvido, inclusive, acionar uma série [Página 290]

e Benevides. D. José, o irmão que ficara na Espanha, veio ao Brasil, em 1640, e seinstalou no Rio de Janeiro, onde se casou com uma viúva herdeira de um engenho deaçúcar em Irajá. Mais tarde, trocaria este engenho por outro em Itacuruça, que pertenciaa Sá e Benevides. Instalado na vizinhança encontrava-se já D. João, até que, por fim, nadécada de 1650, D. Francisco também se mudou para Angra dos Reis pedindo terrasdevolutas em Itacuruça, justo em áreas que pertenciam a Salvador Correia de Sá eBenevides.1103 A família Rendon, depois de uma passagem marcante por São Paulo, setransladaria em peso para o Rio de Janeiro, consolidando os vínculos que possuíam comos Sá.O envolvimento de Francisco e Juan, juntamente com outros castelhanos, nasuposta “Aclamação” de Amador Bueno não é fato comprovado, mesmo porque nem aprópria aclamação o é. Mas este episódio, do qual falaremos mais adiante, é denotativode um possível conflito de identidades naquele contexto. Independente de umarivalidade ou oposição “nacionalista” entre castelhanos e portugueses, o que nos parecerealmente importante é comprovar um forte processo de partidarização que teriaocorrido na vila de São Paulo a partir da década de 1620. Efetivamente, em 1633, surgiuo primeiro indício de que o tema da identidade peninsular poderia servir como pretextopara embates. No dia 20 de agosto, os oficiais da Câmara de São Paulo, daquele ano,fizeram um termo e o levaram até a aldeia de Barueri para expulsar os padres que aliestavam. Alegavam, na ocasião, que os jesuítas, ao se apossar da aldeia, agiam contra ajurisdição real, pois a lei de 1611 garantia o poder temporal aos capitães, reservando-sea um clérigo somente o atendimento espiritual. O termo conclamava os “moradoresdesta vila e mais estantes e habitantes com seus negros vão a aldeia de marui ajudar adefender a jurisdição real porquanto os padres da companhia queriam usurpar fazendoconservador fora do direito e clérigos castelhanos forasteiros...” [22/08/1633]. O clérigocastelhano, em questão, era Juan de Medina y Ocampo, villariquenho com famíliaestabelecida em Santana de Parnaíba e homem próximo de André Fernandes.A ação dos oficiais Antonio Raposo Tavares, Pedro Leme, Lucas FernandesPinto, Paulo do Amaral e Sebastião Ramos de Medeiros era, na verdade, impulsionadapela disputa em torno dos índios da aldeia de Barueri, que, muito provavelmente, aindaservia para abrigar uma parte da grande quantidade de índios descidos das reduções doGuairá. Segundo provisão do próprio Felipe IV, os oficiais agiram com “excesso temerário e extorsão”, e quebraram “as portas de seu recolhimento profanando a igreja eas cousas sagradas a que acresce veemente suspeita de que o intuito principal dos ditosoficiais e mais povo daquela capitania é cativar os índios”. As verdadeiras razões nãopassaram despercebidas nem mesmo ao rei, que ordenou a punição dos envolvidos econfirmou a posse da aldeia para a Companhia de Jesus [07/06/1634]. Além disso, em torno deBarueri, existia uma antiga rivalidade entre os habitantes de Santana de Parnaíba e os deSão Paulo, originada das mal definidas jurisdições locais. Neste sentido, Juan deMedina, o clérigo castelhano próximo do potentado parnaíbano André Fernandes, reuniaainda mais motivos para sofrer os desafetos dos oficiais de São Paulo. Assim mesmo, aperspectiva da naturalidade soaria estranha, já que, entre os nomes da vila de São Pauloassinados no termo de expulsão dos padres, estavam os castelhanos Francisco deLemos, Francisco Rendon, Bernardo de Quadros, Juan Romero e membros da famíliaBueno. Até mesmo o flamengo Cornélio de Arzão chegou a registrar seu protesto contrao que seria uma afronta à jurisdição real [21/08/1633]. A questão da naturalidade não poderia,portanto, ter um papel tão decisivo, apesar de o ouvidor-geral Miguel Cisne de Faria,que se apresentou na vila para investigar o caso, ter exibido uma provisão na qual sedizia que “não entrasse em oficio da república nem governança dela estrangeiro algumque não seja natural destes reinos e senhorios por ser assim conforme a direito e leis desua majestade” [24/09/1633]. Nesse sentido, nos parece que, no leque de motivos disponíveis, aquestão da naturalidade era apenas mais um deles. A aplicação de uma das cláusulas doAcordo de Tomar, de 1580, na vila de São Paulo recheada de estrangeiros em 1633,parece, assim, confirmar uma tentativa de demarcar posições em territóriosembaralhados, mesmo porque castelhanos não eram considerados estrangeiros emdomínios portugueses. De todo modo, o tema não desapareceria da pauta. Em 1638, oprocurador da Câmara de São Paulo exigia que se guardasse a lei de sua majestade, quemandava que não se nomeasse ninguém que não fosse natural do reino de Portugalcomo oficial de justiça, todavia o alcaide de São Paulo, Antonio de Queiros, eracastelhano [05/06/1638]. O episódio só atesta a presença de castelhanos em posição de comando egovernança na vila, coisa que, até então, ocorrera sem contrariedades. Camargo, Bueno,Bonilha, Quadros, Godoy foram juízes e vereadores sem nenhuma oposição nasprimeiras décadas do século, mas, repentinamente, o tema surgiu nas disputas internas. [Páginas 327 e 328]
[0] 1° fonte: 16/04/2023 01:16:16
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SP na órbita do império dos Felipes
Data: 01/01/2010
Créditos: José Carlos Vilardaga
Página 84
“São Paulo na órbita do Império dos Felipes: Conexões Castelhanas de uma vila da américa portuguesa durante a União Ibérica - 1580-1640”
Data: 01/01/2010
Créditos: José Carlos Vilardaga
Página 119
“São Paulo na órbita do Império dos Felipes: Conexões Castelhanas de uma vila da américa portuguesa durante a União Ibérica (1580-1640)
Data: 01/01/2010
Créditos: José Carlos Vilardaga
Página 154


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