A Cidade Perdida da Bahia: mito e arqueologia no Brasil Império
novembro de 2000. Há 24 anos
Johnni LangerDoutor História/UFPRPágina 4Joam ( 1 5 6 7 ) , durante o rei n ado de D. Ma nu el , n avegadores em incursão pel am en c i on ada ilha de s cobriram , no cume de uma serra , uma imensa estátua deum hom em ve s ti do de bedém (túnica mouri s c a ) , s em barrete , com o bra ç oe s ten d i do e a mão apon t a n do para o poen te . Ab a i xo da estátua foram aindaavi s t adas inscrições misteri o s a s , s em po s s i bi l i d ades de tradu ç ã o. Já o poem aC a ra mu ru, de José de Santa Rita Durão (1781), também men c i onou a céle-bre estátu a : “E na ilha do Corvo, de alto pico (...) Onde acena o país do meta lri co (...) Vo l t ado estava ás partes do occ i den te , d ’ on de o aureo Brazil mostra-va a dedo”3.
Na cidade perdida da Bahia também ex i s ti ria uma estátua central, cujo braço esten d i do apontava o dedo para o norte , com certas inscri-ções indecifráveis no mesmo loc a l . Percebemos com essas duas tradições que o autor do manu s c ri to estava perpetuando um folclore mais anti go, incorporado ao universo dos bandei ra n tes e exploradores.
Mas os elementos da arqueologia setecentista foram mu i to mais determinantes na estrutura do tex-to, como já mencionamos.
A descoberta e escavação de Herculanum iniciou-se em 1710, mas foi com a confirmação de seu nome e ori gem (1738) que estas ruínas romanas tornaram-se mu ito famosas. Pompéia foi escavad a , por sua ve z, a partir de 1748, e sua identificação ocorreu apenas em 1768. Podemos também estabelecer uma relação destas ruínas romanas, principalmente Hercu l a nu m , com acidade do manuscrito, ao perceber que o terrem o to citado pelo bandeirante é uma catástrofe natural semelhante ao vulcão (no caso, o Ve s ú vi o ). A natureza interferindo na obra humana. O utra questão é identificar como essas matrizes foram con h ecidas no Brasil.
A primeira publicação em larga escala dosvestígios romanos apareceu somente em 1756, com o livro L’ a n ti chità romana de Piranese, três anos após a de s coberta da cidade baiana.
É possível, deste modo, que o autor da imagin á ria cidade tenha estado anteriormente na pró-pria Europa em contato com esse panorama cultural.O pesquisador Hermann Kruse e o histori ador Ped ro Calmon estabeleceram como autor do manu s c ri to em questão, o bandei ra n te João da Si lvaGuimarães.
Percorrendo os desconhecidos sertões da Bahia entre 1752-53, eleteria noti c i ado a de s coberta das mu i to proc u radas minas de prata de Rob é ri oDi a s , ju s t a m en te na região dos rios Pa raguaçu e Un a4.
Uma similaridade de data e localização com a prescrita na Relação da cidade abandonada. Ex a m e sefetuados pela Casa da Moeda dois anos depoi s , porém, declararam que as minas não passavam de minérios sem nenhum valor.
Aturdido, Guimarães foi conviver com os índios, desaparecendo após 1764. A obra de Pedro Calmon nos forneceu outra pista valiosa para a elucidação da origem histórica deste mito.
Um dos auxiliadores das buscas de Guimarães foi o governador da província mineira, Martinho de Mendonça de Pena e de Proença.
Examinando sua biografia, descobrimos que ele tinha sido bibliotecário, poliglota e filólogo, membro da Real Academia de Lisboa. Além de ter proferido uma palestra sobre megalitismo português (Discurso sobre a significação dos altares rudes e antiquissimos, 1733), Proença também realizou, em 1730, uma investigação sobre as misteriosas inscrições de São Tomé das Letras, em Minas Gerais.
A partir de 1738, estes caracteres setornaram muito famosos, circulando cópias por toda a província.
Ao analisarmos uma dessas reprodu ç õ e s , percebemos grande semelhança de alguns gl i fos com os da cidade perdida, principalmente cruzes e letras lati nas. Além disso, foram interpretados por um dos autores da reprodução, Mateus Saraiva, como sendo caracteres ro m anos.
No período em que circulavam as cópias,o bandeirante João Guimarães abandonara Vila Rica e partira em missão exploratória para as regiões dos rios São Mateus, Doce e Pardo, todos na pro-víncia mineira.
Atacado por índios, foi então auxiliado pelo governador Martinho Proença. Talvez a origem do mito esteja nesse antigo contato, entre um bandeirante ávido por ouro e um acadêmico interessado em arqueologia.
Proença tinha todas as condições para criar a imagem de uma cidade em ruínas semelhante às rom a n as, repleta de inscrições, enquanto Guimarães desejava a todo custo encontrar riquezas sem fim. O acadêmico morreu em Lisboa (1743), e João Guimarães anunciou oficialmente, em 1752, a descoberta de minas de prata pelo interior baiano, escrevendo em seguida o manuscrito da cidade perdida.
O INÍCIO DAS BUSCAS
Os investigadores do Instituto Histórico não conheciam os autores do manuscrito, mas mesmo assim a narrativa foi enca rada como um fato totalmente verdadeiro.Ao contrário das tribos indígen a s, habitantes de rudimentares choupa nas, essas ruínas aven t avam a possibilidade de uma antiga civilização mu i toadiantada ter ocupado a jovem nação. Im ed i a t a mente, todos os esforços em en-contrar esses maravilhosos ve s t í gios foram efetuados.
Em uma reunião do IHGB, o autor da de s coberta do manuscrito, Manuel Lagos, oferecera-se para litogra-far e doar 500 exemplares das inscrições da cidade perdida.
Ao completar uma ano de fundação em 1839,o Instituto Histórico apresentava sob a forma do rel a t ó rio de seu secretário os resultados obti dos durante esse percurso. Se não eram com p l eto s , ao menos revelavam uma franca esperança no cumprimento das suas metas básicas de recuperar as origens da nação.
Ao citar estupendas de s cobertas arqu eo l ó gicas em países muito próximos do Brasil, como Pal en que no México e fortificações no Peru, Ja nu á ri oBa rboza deixou claro que tais ve s t í gios também podiam ser en con trados no i m p é rio.
A Europa recentemente maravi l h a ra-se com publicações sobre ruínas maias, como Vues des Co rd i ll è res et Mo nu ments deus Peu ples Indigènes del ’ Am é ri q u e ( 1 8 1 0 , de Hu m bo l d t ) , An ti q u i tes of M é xi co ( 1 8 3 1 , de Lord Ki n gs-boro u gh), e Voya ge pitto re sque et arch é ol o gique dans la provi n ce d’Yucatan etaux ruines d’It z a l a n e ( 1 8 3 8 , de Jean Wa l deck).
É claro que os intelectuais brasileiros também esperavam encontrar indícios tão promissores nas desconhecidas florestas do Brasil.
Advindo o novo ano de 1840, su r gi ram novas referências sobre o intrigante tem a . Dois eru d i tos, o cel. Ignacio Accioli Silva e A. Moncorvo, residentes na Bahia, enviaram dados baseados em descrições regionais:
(...) sobre a cidade abandonada nos sertões desta província (...) que não pareceser fabul o s o, pelas coinscidentes noticias de vários antigos moradore s, e exploradores dos sert õ es, pois por tradição se falla em uma gra n de Povoa ção, ou Cidade desprezada e que dizem a habitáram Indios e negros fugidos6.
Na tentativa de con s eguir informações sobre a anti ga cidade, os inve s ti-gadores ac a b a ram por contatar manifestações do fo lclore de mu i tos séculos.
Conhecidas pela den ominação de cidades encantadas por toda a Am é rica La-ti n a , foram met a m orfoses de anti gos mitos co l on i a i s , como o Eldorado e tra-dições bandeirantes,formando um rico e elaborado imaginário popular. Mui-tas destas tradições de cidades en c a n t adas sobrevivem até os dias de hoje porm eio da transmissão ora l , mas algumas também foram incorporadas à litera-tu ra e à poe s i a , como Ma iu n deua e Axuí (Pará e Ma ra n h ã o ) . Sen do um cam-po praticamente inexplorado pelos historiadores,é muito difícil elaborar aná-lises sem maiores conhecimentos de fontes.Resta apenas tentar criar hipótesesen tre essa aludida en trevista dos eru d i tos com os pop u l a re s , ou seja , como astradições co l oniais sobreviveram na forma fo l cl ó rica do século XIX. Essas ci-dades encantadas teriam sofrido influências do relato de Guimarães?
Voltamos nova m en te ao livro de Ped ro Ca l m on . Nel e , o historiador afir-mou que após a morte do bandei ra n te João Guimarães em 1766, rumores sobre ruínas já tinham sido cri ados por pop u l a re s. Q u a n do se iniciou a gra n deex tração de diamantes na Ba h i a , a partir de 1844 na região da Ch a p ada Di a-m a n ti n a, o fo l cl ore estava bem con s o l i d ado. Mas também não podemos de s-c a rtar a interferências de outras tradições anti ga s , como as de redutos indíge-nas e qu i l om bos pela prov í n c i a , como a pr ó pria en trevista dos mem bros doIHGB dei xou cl a ro. Na Bahia ocorrem diversos ve s t í gios de anti gos qu i l om-bo s , como nas regiões de Bom Je sus da Lapa e Rio das Rãs. Rel a tos imagi n á-rios também são mu i to freqü en tes por toda a regi ã o. Em Lagoa Santa (MG)