História da Igreja no Brasil, 1977. Eduardo Hoornaert
1977. Há 47 anos
HISTORIA DA IGRE]A NO BRASILCOMO FOI que os missionanos, que tao numerosos vieram ao Brasil, entenderam a sua missao aqui? Que autocompreensao tinham eles da evangelizacao? Como pensaram a respeito, nao somente os famosos jesuitas como Nobrega, Anchieta, Vieira, Figueira, Malagrida, mas tambem os capuchinhos, como Mar-tinho de Nantes, da linha francesa, ou Apolonio de Todi, da linha italiana, ou os oratorianos, como Joao Duarte do Sacra-mento ou Joao Alvares da Encarnac;ao, ou ainda os franciscanos, como Cristovao de Lisboa no Maranhao ou Antonio do Extremo, nos sertoes do interior brasileiro, ou ainda carmelitas como Jose Alves das Chagas? Como pensaram os frades da Piedade, no extrema norte da Amazonia, ou os mercedarios de Belem do Para? E possivel encontrar urn denominador comum e des-crever esta autocompreensao da evangelizacao pelos que vieram para ca? Achamos que, para sermos fieis aos fatos, temos que dis-tinguir entre 0 discurso ou a ideologia acerca da evangelizacao e a profunda vivencia ou experiencia dela. Desta forma percebe-se que a evangelizacao e entendida pelos missionarios dentro de urn discurso tipico, caracteristico, peculiar, enquanto a viven-cia escapa freqiientemente aos quadros comuns, nao pode ser analisada, por conseguinte, segundo os ditames de urn denorni-nador comum. 1. A EVANGELIZAQAO, UM DISCURSO DUPRONT, A. "De I‘eglise aux temps modernes", in RI-lE, 1971 [4355]. LEITE, S. Monumenta Brasiliae, I [ passim]. CANTEL, R. PmpMtisme et M essian isme dan s l‘oeuure d‘Ant6nio Vieira. Paris, 1960. DE BIE, J. God in de sermoenen van Vieira (Tese de doutoramento), Lovaina, 1970.
É por demais conhecido o fato de que toda a empresa marítima portuguesa foi expressa pelos contemporâneos em linguagem religiosa e, mais ainda, missionaria. Os contemporâneos (página 23) nos dão a impressão de que, para eles, o maior acontecimento depois da criação do mundo, excetuando-se a encarnação e morte de Jesus Cristo, foi a descoberta das índias.
Portugal entrou de maneira decisiva nos pIanos salvificos de Deus, que, depois de diversas tentativas mal sucedidas, lhe confiou a missão de "estabelecer o seu Reino neste mundo" (ideia de Vieira):
O "reino de Deus por Portugal". Escreveu a próprio rei Dom João III ao primeiro governador geral do Brasil, Tome de Sousa:
"A principal causa que me levou a povoar o Brasil foi que a gente do Brasil se convertesse a nossa santa fé católica". E Camões desafia a generosidade crista dos descobridores exclamando:
"E vós outros que as nomes usurpais. De mandados de Deus, como Tomé, dizei, se sois mandados, com o estais, sem irdes a pregar a santa fé?"
O discurso acerca da evangelização era em primeiro lugar universalista. Era urn discurso que desconhecia fronteiras. Na época dos descobrimentos circulava em Portugal, entre os que estavam engajados na empresa marítima, a famosa lenda de São Tomé, justificadora da presença dos portugueses nas praias longinquas.
Segundo esta lenda, que se encontra em quase todos as cronistas do Brasil quinhentista, os missionarios nao fizeram senao seguir as pegadas de Sao Tome, apostolo das fndias. Na rota para as Indias, tanto orientais como oci-dentais, ponto obrigatorio era a famosa Ilha de Sao Tome. E no Brasil, no Paraguai, descobriram-se em rochas ou pedras as pegadas do ap6stolo acompanhado de urn ajudante. Nos vocabulos usados pelos indigenas descobriu-se 0 nome de Tome, ou sua corruptela. Nas crencas Indigenas detectou-se algum vestigia da pregacao apost6lica, evidentemente deteriorada pelo. "falsa" tradicao dos principais. Poucos meses depois de sua chegada ao Brasil, em agosto de 1549, escreve Nobrega em sua I nformaciio das Terras do Brasil: Eles [os indigenas] tern mem6ria do dihlvio ... e dizem que Sao Tome, a quem chamam Zome, passou por aqui . . . 1 Anchieta por sua vez, dando em 1584 sua Iniormaciio do Brasil e de su as Capitanias, repete: Tern alguma noticia do dihlvio, mas muito confusa, por lhes ficar de mao em mao dos maio res e contam a hist6ria de diversas maneiras. Tambem lhes ficou dos antigos noticias de dois homens que andaram entre eles, urn born e outro mau, ao born chamam Sume, que deve ser 0 ap6stolo Tome, e este dizem que lhes fazia boas obras, mas nao se lembram em particular (página 24)
de nada. Em algumas partes se acham pegadas de homens impressas em pedra, maxims em Sao Vicente ... Estas e possivel que rossem deste Santo Ap6stolo e algum seu discipulo. 2
A lenda de São Tomé significava um comentário do famoso verso do Salmo 20: "In omnem terram exivit sonus eorum et usque in fines orbis terrarum verba eorum", assim explicado par Santo Tomas de Aquino, relembrando comentários anteriores de São João Crisostomo e Santo Agostinho:
Na época dos apóstolos chegou a todas as gentes até os confins do mundo alguma fama da pregação apostólica, através dos próprios apóstolos ou de seus discípulos. Pois Mateus pregou na Etiopia, Tome na Índia, Pedro e Paulo no Ocidente.
Esta lenda, assim como outras parecidas, funcionava poderosamente para justificar 0 discurso evangelizador universalista, desconhecedor da fronteira do outro. Nos documentas historicas a indigene nunca foi "fronteira",: nunca se respeitou a sua Irre-dutivel alteridade, pais a catolicismo que se "ampliou" au se "dilatou" (a terminologia, "propagar", "propagacao", e so do seculo XVII) era inconsciente das suas fronteiras e s6 conside-rava 0 outro como marginal, nunca como "outro" no sentido plena desta palavra. Dai a zelo quase fanatica dos missionarios em extirpar qualquer vestigio do que era .Interpretado como idolatrra, barbarie, aberracao da "verdadeira fe". 2. Em segundo lugar, 0 discurso dos missionaries acerca de sua missao era tioutrituirio. Era preciso doutrinar. Santo Tomas tinha ensinado que a pregacao apost6lica atingira todas as nacoes, mas nao tadas as homens em particular, Por isso era necessaria pregar, com rorca, com pressa, e em alta voz. Simao de Vasconcellos, cronista jesuita do seculo XVII, narra com entusiasmo a maneira como 0 padre missionario Navarro doutrinava os indigenas: Cornecava a despejar a torrente de sua eloqilencia, levantando a voz, pregando-lhes os misterlos da fe, andando em roda deles, batendo 0 pe, espalmando as maos, fazendo as mesmas pausas, quebras e espantos cos tumados entre seus pregadores, pera mais os agradar e persuadir.
Persuadir de que? Sem duvida da necessidade de salvação pela audição do evangelho: a soteriologia da salvação universal ligada a audição física e auricular de vocábulos evangélicos parece estar subjacente a todo 0 imenso esforço de doutrinação dos nativos e africanos no Brasil. A palavra pronunciada e importante, a vocábulo, a ensino, a doutrina transmitida maquinalmente. Apenas quinze dias apos sua chegada ao Brasil, no dia 10 de abril de 1549, Nobrega ja escreve:
"O irmão Vicente Rijo ensina a doutrina aos meninos cada dia, e também tem escola de ler e escrever... Desta forma ir-lhes-ei ensinando as orações e doutrinando-os na fé até serem hábiles para o batismo." [História da Igreja no Brasil, 1977. Eduardo Hoornaert. Páginas 25 e 26]