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“A língua geral em São Paulo: instrumentalidade e fins ideológicos”. João Batista de Castro Junior, Universidade Federal da Bahia - Instituto de Letras - Programas de Pós-graduação em Letras e Lingüística
2005


últimos anos do século XVII” à denominação “índios”. Mesmo os jesuítas, como se vê decarta de Nóbrega (2000:158), distinguiam “índios” de “gentios”, diferencial dado pelasubmissão catequética. Algumas vezes, os índios foram referidos também peladenominação “brasileiros”, como se vê de carta de Anchieta (1988:181), além da muitocomum “brasis”.Embora a escravidão fosse largamente praticada entre os colonos, o termo“escravo” era muitas vezes evitado a fim de não parecer uma afronta à legislação protecionista dos indígenas. Muito comum, sobretudo nos inventários e testamentos examinados por John Manuel Monteiro (2005:147), a expressão “administrados”, que, na verdade, nada mais era que um eufemismo terminológico para a prática dissimulada depreocupação paternalista com os índios escravizados, a cuja condição seriam reduzidospara seu próprio bem, “dada a barbárie em que se encontram os gentios”, escreve BeatrizPerrone-Moisés (2002:122-3), o que já havia sido objeto da atenção de Teodoro Sampaio(1978a:166).3.3 A LÍNGUA DA TERRA COMO INSTRUMENTO DEASSIMILAÇÃO E COMO MECANISMO DE COOPTAÇÃOPOLÍTICA: OS PRIMEIROS POVOADORES ECOLONIZADORES NO PLANALTO DE PIRATININGAO percurso da língua geral na aldeia e, depois vila, de São Paulo já vem posto,quanto ao seu isolamento, pelo próprio apêndice aposto aos nomes que a indicavam, taiscomo Campo de Piratininga e São Paulo do Campo, ou apenas “Campo” como se refereGândavo (1995:13 e 62), sem distinguir entre Santo André ou São Paulo. Esta últimadenominação tem sua explicação ministrada por Frei Gaspar da Madre de Deus(1975:119): [Página 47]

Em cima da Serra da Paranapiacaba e debaixo do Trópico Austral, poucomais ou menos, demora uma região deliciosa, a que os portugueses noprincípio davam o nome de Campo, por distinção das terras de Beira-mar,que acharam cobertas de arvoredo mui alto, quando aqui chegaram, e porisso diferentes daquelas mais vizinhas a S. Paulo, as quais sem artifício nãoproduzem árvores altas.Serafim Leite (1953b:79) não menciona a expressão “Campo”, registrando aseguinte seqüência: Piratininga – Casa de São Paulo de Piratininga – Colégio de São Paulo– São Paulo. A diferença com que Nóbrega, em carta escrita a 02 de setembro de 1557(2000:271), registra o “Colégio de Piratininga” e o porto de “Piratinim”, levou essehistoriador, em nota de rodapé, a suspeitar de diversas “notações geográficas”. Nadaautoriza essa ilação. A diferença de pronúncia parece ser devida, na verdade, àdiferencialidade fonética entre distintos grupos indígenas, o que explica, por exemplo, asvariantes abanheen e abanheenga, traduzidas como “língua de gente”. As atas da Câmarade São Paulo registram indiferentemente, numa mesma assentada, as duas grafias do nomedo planalto (1914-I:57).A data de sua fundação comporta uma pequena transcrição digressiva extraídadessa mesma obra do Padre Serafim Leite (1953b:79-80):A fundação da Aldeia de Piratininga [em 29 de agosto de 1553] é acertidão de idade de São Paulo, não ainda a do seu baptismo, porque anova povoação só «daí a alguns meses se baptizaria». A certidão debaptismo é de 25 de janeiro de 1554, em que a Casa-Colégio seinaugurou e dedicou a São Paulo, nome que prevaleceu ao de Piratininga.Sucede com as terras o mesmo que com os homens, que umas vezescelebram o dia do nascimento, outras o do onomástico. As razões da escolha do planalto de Piratininga para lançamento da pedrafundamental da obra catequética parecem radicar no isolamento que dessa localizaçãodecorria. Nóbrega parecia convencido a transformar aquela grande clareira no meio da floresta, distante mais de dez léguas do litoral, numa tebaida evangelizadora longe dosolhos do branco e sua influência.Mas, se essa data difundida pelo historiador Serafim Leite em sua monumentalHistória da Companhia de Jesus no Brasil (2004), e usualmente aceita por historiadoresnacionais e estrangeiros, a exemplo de Frei Gaspar da Madre de Deus em “Memórias para ahistória da capitania de São Vicente” (1975) e Stefan Zweig em seu “Brasil, país do futuro”(1942), simplifica as coisas, não faz justiça histórica, entretanto, aos desbravamentos quaseque à semelhança de auto-exílio, que, a seu modo, pioneiros anteriores levaram a cabovencendo as ínvias serranias até chegar ao planalto.O mais importante e antigo deles é certamente do português João Ramalho, paiheráldico dos paulistas, de cujas motivações, se colonizadoras ou não, quase nada se sabe.Teria sido, provavelmente, numa versão de alto coeficiente de credibilidade, sobrevivente,ao lado de Antônio Rodrigues, de um naufrágio ocorrido por volta de 1510, relatado porGonzalo Hernandez de Oviedo y Valdez, segundo a associação feita por Cortesão (1955:96e 137) a partir do seguinte trecho do cronista espanhol: “y enfrente de aquesta isla, ocho odiez leguas en la mar, están dos isletas, donde se perdieron portugueses en una nao, y enbatel se salvó la gente e pobló en la dicha isla de los Puercos algunos dias y desde alli sepasaron á San Vicente”. Taunay (1953:9) também fala em naufrágio, presumindo-o porvolta de 1515. Washington Luís (1956:110), depois de situar sua chegada em 1512,ressalta, com acerto, que nada de certo se pode concluir a respeito das motivações da vindade Ramalho, que, em contato com autoridades e padres, nunca as mencionou. Esse Autorassinala ainda, na mesma passagem, que Pedro Taques afirma que ele era oriundo de Viseu,enquanto Tomé de Souza dava-o como originário do termo de Coimbra. Almeida Prado(1966:94-5) dá pela exatidão do testamento de João Ramalho “na maior parte dos seustermos”, mas pondera (1966:89): “Ramalho, por exemplo, recém-casado, não emigrariaquando a esposa estava para dar à luz. Incorreu pena de degredo? Se fosse apenas umnáufrago, tentaria voltar a Portugal o mais cedo possível. E não o fez”.

Convivendo em íntima mimetização, o estilo de vida desse pioneiro paulístico confunde-se com o dos próprios índios Tupininquim, de que se tornou chefe tribal. A respeito dessa etnia indígena, convém deixar claro que uma corrente historiográfica, encabeçada por Pedro Taques (1714-1777), seu primo Frei Gaspar da Madre de Deus (1715-1800) e Serafim Leite (1890-1969), baseando-se em Gabriel Soares de Sousa, afirma que Guaianá, Goianá ou Guaianã eram os índios da tribo de Tibiriçá, de Piratininga, e de Caiubi, senhor de Geribatiba.

Alguns autores chegam a dar como os mesmos índios os Tupiniquim e os Guaianã, a exemplo de Bruno (1966:10). Teodoro Sampaio, no estudo “Os Guaianãs da Capital de S. Vicente” (1978d:203), confrontando textos de Hans Staden, Gabriel Soares de Sousa e Simão de Vasconcelos, é bastante esclarecedor a respeito dos índios encontrados pelos portugueses, tanto os exploradores quanto os jesuítas, no planalto de Piratininga:

Ao tempo da invasão dos portugueses, Tupiniquins eram os índios quedominavam no litoral e no sertão de Piratininga onde só em guerrapenetravam Guaianãs [ou Guainás, na grafia de Capistrano deAbreu].Bem examinada esta hipótese, a favor da qual tão poderosasrazões militam, chega-se à conclusão de que, de fato, os primeiroscatecúmenos de Piratininga, os índios que concorreram para a fundaçãode S. Paulo, não eram guaianãs.

Ele afirma ainda (p. 210) que a língua dos Guaianases não era do ramo Tupi,“mas continha elementos dele assimilados que, de algum modo, a tornavam compreensívelaos que sabiam a língua geral”. Na verdade, essa compreensibilidade, já que os Guaináeram do grupo Jê, provavelmente era devida ao freqüente contato interlingüístico noplanalto, do que deve ter havido intercambialidade entre os estoques lexicais, já que, seefetivamente desses índios houve um esgalho com o nome de Maromomis, co-existindocom a matriz tribal Guaianã, como afirma o mesmo estudioso (p.210), convém salientarque, quanto a eles, Pero Roiz (1955:37) informa que foram objeto de especial dedicação porparte do Padre Manoel Viegas, que “levava à casa os filhos deles pequenos, para queaprendendo a língua geral, depois lhe servissem de intérpretes”, o que mostra, por um lado,que essa intercomunicação não era tão fluida e, por outro, a tentativa de unificaçãolingüística em torno da língua geral num primeiro momento, o que certamente não teve osucesso esperado, pois ainda no século XVII há registro da necessidade de intérprete de sualíngua. As atas da Câmara acenam com isso ao registrar o motivo da preocupação com operigo iminente: “haver aqui muito gentio guaianá e assim a maior parte do gentio do sertãofalar mal” (MONTEIRO, 2005, p.54). [A língua geral em São Paulo: instrumentalidade e fins ideológicos", 2005. João Batista de Castro Júnior. Páginas 48, 49 e 50]

monumental tratado investigativo de Serafim Leite (2004), precedido por Frei Gaspar da Madre de Deus (1975), em favor do papel de Manuel da Nóbrega vinte e um anos depois do capitão lusitano, tendo havido mesmo quem conjecturasse uma terceira localização para a povoação fundada por Martim Afonso de Souza, que se situaria no local da taba de Tibiriçá (TAUNAY, 2003:271).

Hoje não resta dúvida de que o fundador do primeiro núcleo de povoação em Piratininga foi Martim Afonso de Souza, que aí chegou em 1532, movido pelo plano geopolítico de instalação de um avançado posto estratégico de expansão territorial e acesso ao Prata e às riquezas que aí se murmurava existir. É o próprio Nóbrega (2000:190-1) que o salienta em carta escrita da capitania de São Vicente em setembro outubro de 1553: “E do mar dez léguas pouco mais ou menos, duas léguas de uma povoação de João Ramalho, que se chama Piratinim, onde Martim Afonso de Sousa primeiro povoou...”.)

A D. João III não era desconhecida a privilegiada localização geográfica dePiratininga, que dava acesso a um amplo espectro da região platino-amazônica, bastando seguir o Tietê para alcançar o Prata e transpor-se uma fácil garganta para estar no Rio Paraíba, “apontando o caminho do Norte”, pontua Capistrano de Abreu (1963:121). A sua importância é facilmente aquilatável quando se tem em mente que os afluentes de um e de outro rio formarão os limites ocidentais do Brasil.

A povoação fundada por Martim Afonso não teve longa duração nos planospolíticos da Coroa, entretanto. Como mostra Cortesão (1955:173-4), a descoberta do ouro do lendário rei branco, Athaualpa – cuja existência os nativos anunciavam a ávidos exploradores e aventureiros europeus –, por Francisco Pizarro, que deu as boas novas ao rei espanhol Carlos V em 14 de janeiro de 1534, narra Cortesão (1955:173), arrefeceu D. João III em seus planos de expansão através de Piratininga, voltando sua atenção, naquele momento, às possessões do Oriente, que periclitavam e requeriam um redobrado contingente de homens, armas e navios, o que para Portugal, com uma população então em torno de um milhão e cento e vinte mil almas, segundo Capistrano (1963:45), número próximo àquele a que chega Cortesão (1955:22), significava o sacrifício do plano expansionista através do planalto da Serra do Mar.

Atirados à desatenção da Coroa, alguns dos colonos assentados por MartimAfonso de Souza trataram de refluir daquelas altitudes, retornando ao litoral, dissuadidos de [Página 68]

muita importância nesta terra entretanto que não há muitos Padres quesaibam bem a língua, e parece grande meio para socorrer a almas queporventura não têm contrição perfeita para serem perdoados e têmatrição, a qual com a virtude do sacramento se faz contrição: e privá-losda graça do sacramento por não saberem a língua e da glória por teremcontrição bastante, e outros respeitos que lá bem saberão, devia-se bemde olhar.Em nova carta endereçada ao mesmo Provincial, escrita de Salvador em fins deagosto de 1552, Nóbrega reitera a importância da questão, consultando o que fazer, ou seja,“se se poderão confessar por intérprete a gente desta terra que não sabe falar nossa língua”.Decidiu-se ele, então, a ir para a Capitania de S. Vicente, de onde os padresirradiavam “línguas pelos campos, aldeias a engenhos dos arredores” (LEITE, 2004-I:89),aonde chegou em 1553, tendo sido precedido, por cerca de três anos, pelo padre LeonardoNunes, o Apóstolo de Piratininga, que, fazendo-se acompanhar do Irmão Pero Correa,como língua, “o único que até então pregava na língua dos índios”, esteve no Campo dePiratininga.

Aí nesse lugar Nóbrega fundou o núcleo catequético que iria dar lugar à Vila eposteriormente Cidade de São Paulo, num triângulo de quatro alqueires formado pelosribeiros de Tamanduateí e Anhagabaú, centralizando o complexo hidrográfico da região,além de ser “escala para muitas nações de índios” (LEITE, 2004-I:93). Era, em suma, uma torre alta de observação e exploração descortinando-se para o Prata e Amazônia, tendo tamoios ao norte, tupiniquins e guaianases ao centro e guaranis ou carijós ao sul, como eram chamados aqueles em São Paulo, esclarece Capistrano de Abreu (1963:126).

As razões topográficas que ensejaram a primeira fundação de São Paulo por Martim Afonso de Sousa, ao dar execução ao plano geopolítico de D. João III, eram as mesmas agora que guiavam os passos de Nóbrega, “com a única diferença de que, no primeiro caso, se tratava de uma expansão territorial e econômica e, no segundo, duma expansão religiosa”, adverte Cortesão (1955:201). É o próprio Nóbrega (2000:190) quem afirma: “E é por aqui a porta e o caminho mais certo e seguro para entrar nas gerações do sertão”, ou, nas palavras de Anchieta, em carta escrita de Piratininga em 1554 (1988:48), “entrada a inúmeras nações, sujeitas ao jugo da razão”. Foi “uma intuição verdadeiramente profética”, como bem diz Sérgio Buarque de Holanda (1978:96), não se podendo deixar de admitir que não lhe tenha escapado “a alta significação histórica de um esforço expansionista que outros iriam retomar para dano da Companhia”.

Ao isolamento e guarnecimento pela muralha da Serra do Mar se somava ainda o distanciamento do contato com portugueses, já que Nóbrega via nisso uma forma de otimização do plano catequético, como deixa claro em carta escrita de São Vicente, em 1553, ao provincial Simão Rodrigues (2000:154): “E, segundo o nosso parecer e experiência que temos da terra, esperamos fazer muito fruto, porque temos por certo que quanto mais apartados dos Brancos, tanto mais crédito nos têm os índios”. Teodoro Sampaio (1978b:158 e 1978e:236) empresta apoio a esse planejamento ao afirmar que “assim era preciso, para que sementeira do Evangelho se não perdesse com o degradante proceder e triste exemplo dos maus cristãos”.

Esse isolamento foi instado, portanto, pela impressão desfavorável que a princípio lhe cunhou João Ramalho, de Santo André da Borda do Campo, embora, posteriormente, segundo o mesmo Serafim Leite (2004-I: 100-1), “tudo se desanuviou”. Deve-se isso ao gênio de Nóbrega sempre pensando mais alto em favor dos objetivos missionários. Sua capacidade de dialogar, transigir e até mesmo recuar na hora certa, para avançar no tempo adequado, permitia que problemas aparentemente insolúveis fossem equacionados. Sérgio Buarque de Holanda (1978:96) penetra no móvel dessa atitude de Nóbrega: “Quando concilia os padres com João Ramalho, pecador e excomungado, não é por simples condescendência de momento, não é por um fácil oportunismo, mas porque vê em tal recurso o meio decisivo de converter o gentio, uma das finalidades precípuas de sua Ordem”. Pesaram, ainda, na decisão do maioral dos jesuítas no Brasil, as turbulências da proximidade do colono português e seus descendentes mamelucos na Vila de São Vicente.

Capistrano (1963:73) sintetiza tudo isso: "Levaram-nos a este passo a maior abundância de alimentos no planalto, a presença de tribos próprias à conversão por sua índole mansa, e, além do afastamento dos portugueses, certas idéias vagas de penetração entre os índios do Paraná e Paraguai. O nome de São Paulo, agora ouvido pela primeira vez, devia ecoar poderosamente no futuro." [Páginas 80 e 81]

consorciaram com Pero Dias e Lopo Dias, informa Taunay (2003:282) –, soberano dosTupiniquim cuja aldeia se situava à margem do ribeiro Piratininga, conforme Frei Gasparda Madre de Deus (1975:120). Segundo este Autor (p.123-4), o principal dos Tupiniquimacedeu ao apelo e fixou sua aldeia onde é hoje o Mosteiro de São Bento. Sua importânciaaxial para os destinos dos inacianos em Piratininga impõe uma breve digressão a seurespeito, em que fica claro, também, como sua simpatia pela catequese branca deve terinfluenciado os demais índios sob sua orientação: Foi batizado com o nome de MartimAfonso – nome de batismo igualmente dado a outro importante índio, Araribóia, principaldos Temiminó, também aliados dos portugueses – tendo exercido relevante papel na defesado ideal daqueles loiolistas, até mesmo quando os Tupi, em 1562, se levantaram contra SãoPaulo. Tibiriçá conclamou seus índios a que “defendessem a igreja, que os padres haviamfeito para os ensinar a eles e a seus filhos, que Deus lhes daria vitória contra seus inimigos,que tão sem razão lhes queriam fazer guerra” (LEITE, 2004:104). Entre os sediciososestaria um outro principal, irmão de Tibiriçá, Piquerobi, o que é discutível (LEITE, 2004-I:103), que tentou, sem êxito, persuadi-lo de apoiar os inacianos, como relata AntônioAlcântara Machado em nota a Cartas... de Anchieta (1998:205), além de seu sobrinho,Jaguanharó, escreve John Manuel Monteiro (2004:34). Deixou longa descendênciasanguínea no tronco paulista. Sua morte foi lamentada e registrada com pesar numa dascartas de Anchieta (1988:196-7), ainda porque “foi um dos sustentáculos do Colégio, aocomeço, quando escasseavam as esmolas e ainda não havia portugueses” (LEITE,2004:104). Por ocasião de sua morte, os jesuítas declararam-no “fundador e conservador dacasa de Piratininga” (ANCHIETA, 1988:197). Foi sucedido, no posto de chefe militar, porJoão Ramalho (LEITE, 2004:103), mas não às vésperas do cerco, como quer John ManuelMonteiro (2004:34).De igual forma procedeu Caiubi, senhor de Geribatiba. Também foi batizadopelos jesuítas, tendo ganhado o nome de “João”. “Auxiliou-os na fundação de São Paulo:Os jesuítas convidaram Caiubi a estabelecer-se nas imediações do sítio escolhido”, dizSerafim Leite (2004-I: 93), no que é consonante com Frei Gaspar da Madre de Deus(1975:123-4). Segundo Antônio Alcântara Machado, em nota a Cartas... de Anchieta(1988:185), Caiubi assentou-se com sua gente ‘no extremo sul, próximo do sítio quedepois se chamou Tabatagoera (hoje Tabatinguera)’, onde tinha ‘sob sua guarda o caminho que do alto do espigão descia para a várzea e tomara para São Vicente por Santo André”.Nóbrega, no Diálogo sobre a Conversão do Gentio (2000:246), considera Caiubi umexemplo de fé cristã: “Que direi da fé do grão velho Caiubi, que deixou sua aldeia e suasroças e se veio morrer de fome em Piratininga por amor de nós, cuja vida e costumes eobediência amostra bem a fé do coração”.Para essa povoação foram acorrendo índios de todas as redondezas, o que iráprovocar sentimento de animosidade em João Ramalho, o decano morador do Campo. [A língua geral em São Paulo: instrumentalidade e fins ideológicos", 2005. João Batista de Castro Júnior. Páginas 83 e 84]

5 JESUÍTAS E PORTUGUESES EM PIRATININGA5.1 ELEVAÇÃO DE SANTO ANDRÉ DA BORDA DO CAMPOAO PREDICAMENTO DE VILA

João Ramalho, o referido patriarca dos paulistas, vivia numa aldeia ou ermida, que mais tarde será chamada Santo André da Borda do Campo, distante de duas a três léguas do núcleo jesuítico, que teria sido a princípio habitada somente por seus descendentes, índios e escravos, “mas depois de facultar D.Ana Pimentel a entrada dos portugueses no Campo, vários concorreram para ela”, informa Frei Gaspar da Madre de Deus (1975:122), resultando mais tarde, em 8 de abril de 1553, sua elevação a Vila pelo Governador-Geral Tomé de Sousa. Este mesmo, apud Cortesão, (1955:180), assim se reporta ao monarca:

Ordenei outra vila no começo do campo desta vila de São Vicente de moradores que estavam espalhados por ele e os fiz cercar e ajuntar, para se poderem aproveitar todas as povoações deste campo. E se chama a vila de Santo André, porque onde a situei estava uma ermida deste apóstolo e fiz capitão dela a João Ramalho.

Jaime Cortesão (1955:180-1) pondera que Tomé de Sousa, estrategicamente, diante da proximidade dos castelhanos, agrupou em torno de João Ramalho minúsculos núcleos populacionais remanescentes da primeira fundação de São Paulo por Martim Afonso de Souza, que tinham se atomizado pelo Campo. Em outra passagem da mesma obra, o historiador português (p.188) sentencia: “Podemos estar certos de que o maior número dos primeiros cidadãos andreenses provinha da Piratininga de Martim Afonso”.

Essa conclusão imbrica com a informação trazida por Nóbrega em que se baseia Serafim Leite para afirmar (2004:100): “A povoação que Martim Afonso de Sousa, depois de fundar a vila de S. Vicente, tinha instituído no seu interior não chegou a ter vida municipal efetiva, ou só a teve efêmera, dispersando-se a breve trecho os seus moradores”. Nóbrega relata (2000:214): “Ali foi a primeira povoação de cristãos que nesta terra houve em tempo de Martim Afonso de Sousa, e se vieram a viver ao mar por razão dos navios, de que agora todos se arrependem, e todavia a alguns deixaram lá ir viver”.

João Ramalho era agora o alcaide-mor da Vila de Santo André, cuja população debrancos girava em torno de trezentos habitantes, nos cálculos de Cortesão (1955:189), dosquais ele conseguir identificar nominalmente 39, e 800 nos de Schmidel (1903:285), que láesteve em junho de 1553. O cálculo de Cortesão parece mais razoável, já que Schmideltornou-se conhecido por seus exageros de toda natureza, inclusive quantitativos. A funçãodaqueles habitantes era “vigiar e impedir o trânsito de espanhóis e portugueses entre Santos e Assunção e vice-versa; e assegurar a soberania portuguesa no campo de Piratininga e sobre os caminhos de penetração que dali partiam” (CORTESÃO, 1958:219).

A completa indianização desses portugueses, espalhados após a fragmentação davila de Martim Afonso, torna intuitivo afirmar que a língua de interfluxo fosse a geral,especialmente pelo numeroso contingente de índios na região, eixo sobre o qual girava aeconomia local, podendo-se falar em obnubilação da língua original dos brancos. Váriaspassagens de escritos de época, em sua maior parte jesuíticos, confirmam essa hipótese aquiafirmada.A primeira delas é extraída de carta escrita por Nóbrega, da Bahia em 1552, edirigida ao Provincial Simão Rodrigues (2000:130). Nela, ele aponta para o fato de que “amulher e a filha de Diogo Alvarez Charamelu [leia-se Caramuru] (...) não sabem nossafala”. Significa isso dizer que a indianização do português lançado ao novo mundo nãoimplicava nenhum sentimento patriótico de preservação de suas instituições sociais, de quesobressai a língua. Situação similar deparou Antônio Rodrigues, que viria a ser um dos trêsbons línguas referidos por Nóbrega e Anchieta, quando ainda era um explorador em buscade riquezas pela região do Rio da Prata. Chegando, com seus companheiros, a uma aldeiade índios Timbó, ele encontrou “alli un spañol que avia mucho tiempo que alli estava,demaneira que ya no sabia hablar español y sabia bien la lengua dellos”, relata SerafimLeite (1935). [Páginas 109 e 110]

que, nele e nela em seus filhos, esperamos ter grande meio para a conversãodestes gentios. (....) Este homem, para mais ajuda, é parente do Pe. Paiva ecá se conheceram.5.3 A FUSÃO DE SANTO ANDRÉ COM SÃO PAULO


Mas a inconciliabilidade entre ambos os lados jamais será equacionável sem asubmissão de um ao outro, que viam os gentios sob angulações absolutamente excludentesentre si. Dois diferentes universos culturais que, de comum, tinham apenas a importânciada língua da terra. O resultado disso, segundo alguns historiadores, foi a conveniênciagovernamental – induzida por Nóbrega, que sentia despovoar-se seu arraial catequético pelainconstância ambulatória dos índios catequizandos – da absorção político-edilícia de SantoAndré por São Paulo, levada a cabo por ocasião da visita de Mem de Sá a São Vicente emmarço de 1560, unificando em uma única municipalidade a simbiose – ou mesmo umhelotismo de São Paulo para com Santo André – que existia entre ambos, a ponto deCortesão (1955:195) afirmar que a povoação de Piratininga não resistiria sem aproximidade da vila ramalhense, no que é concorde com Serafim Leite (1953b:88): “Apesardas perturbações dos mamalucos, contadas por Anchieta, sempre os portugueses de S.André sustentaram os jesuítas de Piratininga e tinham particular afecto ao Padre Manuel daNóbrega. Sem esse apoio, São Paulo não teria ido avante”.

Seja como for, São Paulo abocanha a existência legal ou, pelo menos, nominal etopológica, de Santo André, o que dará nova feição lingüística ao lugar, nitidizando-se umbilingüismo em que aos atos oficiais passaria a corresponder o uso do português registradoem documentos que chegaram quase integralmente aos nossos dias9, mas que projetamluzes sobre a extração sociolingüística do idioma português ali utilizado, o que pode serentendido como uma espécie de revitalização em dimensão coletiva, embora em caráter [Página 115]

Mais: a língua tupi até então falada no arraial piratiningano, controladoexclusivamente pelos inacianos entre 1554 e 1560, irá entrar em contato com a aprendidapelos portugueses vindos de Santo André, relexificada e, muito mais ainda,regramaticalizada pela língua de origem daqueles colonos, sendo que ambas, ao final,cederão passo ao primado da língua do conquistador branco.5.4 O “EXÉRCITO DE INTÉRPRETES”, A CHEGADA DEANCHIETA E OS ALDEAMENTOS

A chegada de Anchieta a Piratininga, que ocorre em 24 de dezembro de 1553, dará novo impulso ao projeto lingüístico de aprendizado da língua geral, muito embora Nóbrega, quatro anos antes, mostrasse algum desânimo com esse plano em razão do reduzido volume lexical que avaliou ter a língua indígena. São dele as seguintes palavras: “Tem mui poucos vocábulos para lhes poder bem declarar a nossa fé”, diz em carta escrita da Bahia em 1549 (2000:66), repetindo o que já dissera noutra meses antes no mesmo ano: “São eles tão brutos que nem vocábulos têm” (2000:21). Mas será ele próprio quem comandará “um exército de intérpretes”, que dava larga dianteira à Capitania de São Vicente, explicável, segundo Cortesão (1955:206), pela existência do Campo, povoado desde 1532. Além disso, o aprendizado da língua nativa era um dos direcionamentos da Companhia de Jesus para os seus missionários pelo mundo, uma espécie de prius lógico do plano catequético. Como lembra Serafim Leite (2004-I: 29): “os que fossem destinados aos mouros ou turcos deveriam aprender a língua arábica ou caldaica; os que fossem para a Índia, a índica, e assim para as outras”.

Um trecho de Anchieta contido em Informação do Brasil...(1988:325) é muitopertinente a esse respeito:No ano de 1554, mudou o padre Manuel da Nóbrega os filhos dos Índiosao campo, a uma povoação nova chamada Piratininga, que os Índiosfaziam por ordem do mesmo Padre para receberem a fé. Também mandou alguns 12 irmãos para que estudassem gramática e juntamenteservissem de intérpretes para os Índios.Cortesão (1955:206) pondera que, “dadas as proporções demográficas dos cristãosno planalto, poder-se-ia dizer que o padre Nóbrega levou consigo, naqueles dias iniciais,um exército de intérpretes. Na verdade, na lista de dois Padres e catorze Irmãos que oacompanharam, nove dos segundos são intérpretes”. Mas o historiador português, aoafirmar, linhas abaixo, que “desses irmãos e intérpretes merecem muito especial mençãoPero Correia, Antônio Rodrigues e Mateus Nogueira”, em relação a este último tropeça emequívoco, posto em evidência pela informação de Anchieta (1988:184):Quis Nosso Senhor levar para si o nosso Irmão Mateus Nogueira ferreiro,que era homem de idade, e muito mais velho por contínuas enfermidadesque padecia, em as quais nunca deixava de trabalhar, sendo contínuo naoração, com mui especial zelo da conversão desses Brasis, pelos quaiscontinuamente rogava a Deus, porque ignorando sua língua não podiapregar.Relacionando os intérpretes em outro passo, exclui expressamente MateusNogueira (1988:48). No mesmo sentido, Nóbrega: Diálogo sobre a conversão do gentio, inCartas do Brasil... (2000:226) em que coloca a seguinte fala na boca de Mateus Nogueira:“Que aproveita conversar se não os entendo?”Mesmo a afirmação de que Nóbrega levara um “exército de intérpretes” tem deser vista com reservas se se refere a línguas propriamente ditos, ou seja, jesuítas que, játendo percorrido todo o caminho do aprendizado da língua e da formação teológica alinecessária, eram aptos a pregar por si mesmos na língua da terra, considerando que, poressa ocasião, “só Pero Correia é o pregador”, afirma o próprio Nóbrega em carta escrita deSão Vicente em junho de 1553 (2000:172; tb: LEITE, 2004:89). Na verdade, atentando-separa distinção entre língua e intérprete, é correto admitir a existência de muitos destesrepresentados, sobretudo, pelos meninos-órfãos, iniciados no aprendizado desde a chegadada Brasil. Nóbrega, na mesma carta, registra (2000:173): [Páginas 119 e 120]

5.7 OS MAIS FAMOSOS LÍNGUAS E SUA VIDA ANTES DA COMPANHIA

Importante notar que alguns dos melhores línguas jesuítas já o eram antes deingressarem na Companhia. Assim, Antônio Rodrigues, que não se confunde com ocompanheiro homônimo de João Ramalho, também referido como língua por Anchieta(1988:48), “embarcou em Sevilha, na armada de D. Pedro de Mendoza, tomou parte naprimeira fundação de Buenos Aires (1536), na de Assunção (1537), acompanhou Iralaatravés do Chaco, foi com Ribeira ao centro do Mato Grosso”, segundo dados biográficoscontidos em Serafim Leite (1953:246), que acrescenta que “ele veio de Paraguai por terra aS. Vicente. Entrou na Companhia recebido por Nóbrega, em 1553”. Seus escritos revelamcerta erudição, como o demonstra, em outra obra, Serafim Leite (1953b:206). Foi oprimeiro mestre-escola de São Paulo, tendo estado sob sua direção “a escola de meninos, deler, escrever e cantar” (p.38), o que já havia sido antecipado por Teodoro Sampaio(1978e:236).

Manuel de Chaves era dos Padres que ingressaram na Companhia já de posse dodomínio da língua geral. Sobre ele e Pedro Correa assim se refere Anchieta em Informaçãodo Brasil... (1988:323): “Aqui se receberam logo à Companhia o irmão Pedro Correa e oirmão Manuel de Chaves, homens antigos na terra e línguas, e com ajuda deles se começoua ensinar a doutrina na língua do Brasil aos Mamalucos e Mamalucas, filhos dosPortugueses e aos escravos da terra”. Antônio Alcântara Machado em notas às Cartas... deAnchieta, anota (1988:69): “grande língua da terra e dos principais moradores de SãoVicente, foi aí recebido por Leonardo Nunes, em 1549, juntamente com Pero Correa”.Conforme citação em Serafim Leite (2004-I:104), viveu “alguns anos estragadamente,depois entrou na Companhia ... Era dos melhores línguas, que tínhamos e, como já aotempo que entrou na Companhia o era”. Nóbrega (2000:275), em carta escrita da Bahia a02 de setembro de 1557, já morto Pero Correia, se refere a ele como “a melhor língua quetemos”. Anchieta, em Informação do Brasil..., também se refere a ele: “Aqui [em SãoVicente] se receberam logo à Companhia o irmão Pedro Correia e o irmão Manuel deChaves, homens antigos na terra e línguas, e com ajuda deles se começou a ensinar adoutrina na língua do Brasil” (1988:323).Pero Correa, o mais fluente deles, de que já se falou acima, era reconhecido porAnchieta (1988:48) como “muita autoridade”, sobretudo “pelo exatíssimo conhecimento dalíngua” e “tem muita autoridade entre os índios por o muito tempo que gastou em esta terraantes de ser da Companhia” (p.84). Nóbrega (2000:151) em carta escrita de São Vicente a12 de fevereiro de 1553 também se refere a Correia: “O irmão Pedro Correia é aqui grandeinstrumento para por ele Nosso Senhor obrar muito, porque é virtuoso e sábio, e a melhorlíngua do Brasil”. Dele se servirá inclusive quando parte de São Vicente para a Bahia em1553, levando consigo “alguns Irmãos destes novos que aqui achei, entre os quais é um,Pero Correia, que nesta terra faz mais que nenhum de nós, em razão da língua e do seu sisoe virtude”. Anchieta (1988:86) esclarece que essa sua habilidade de “grande língua” eradevida à sua antiga condição de traficante de escravos.Pero Correa, em companhia de João de Souza, tombou morto nas mãos dosCarijó, depois de inutilmente tentar dissuadi-los falando-lhes na própria língua. Anchieta,no passo citado, descreve a cena, o que se contém igualmente em Taunay (2003: 212), queafirma (p.225) que o ocorrido se deu em dezembro de 1554. Cortesão (1955:206-7) informaque Pero Correa chegara a São Vicente em 1534, tendo enriquecido no tráfico de escravos [133] índios. “Conhecia como poucos os caminhos do sertão; e como ninguém a língua oulínguas dos indígenas”.Antes deles, os jesuítas se valiam dos línguas sem vínculo com a obra missionária,a exemplo de Caramuru, referido por Nóbrega em carta escrita de Salvador ao provincialSimão Rodrigues, em abril de 1549 (2000:21-2): “Espero de as tirar [‘orações e algumaspráticas de Nosso Senhor’ na língua brasílica] o melhor que puder com um homem quenesta terra se criou de moço, o qual agora anda mui ocupado em o que o Governador lhemanda e não está aqui”. Em outra carta escrita de Porto Seguro a 06 de janeiro de 1550, elese reporta novamente a esse ofício de Diogo Álvares (2000:70). Anchieta, em Informaçãodos primeiros aldeamentos da Bahia (1988:357-8), também relata:Foram também os ditos Padres aprendendo a língua do gentio para quesua conversão tivesse melhor efeito, porque até ali se ajudavam de algunshomens seus devotos e moços da terra, filhos de Portugueses, que já cáhavia, e assim procederam no tempo do dito governador Tomé de Sousae de Dom Duarte da Costa.5.8 ANCHIETA: O CIMENTO DA COMPANHIA DE JESUSPara alguns autores como Frei Vicente de Salvador, apud Taunay (2003:228), eCapistrano de Abreu, segundo artigo por este dado à publicação em “O Jornal”, em 31 deagosto de 1927, apud Anchieta (1988:24), Taunay, em São Paulo no século... (2003:228),Antônio Alcântara Machado (1988:394) em notas a Informação dos primeirosaldeamentos, atribuída a Anchieta, afirmam que a facilidade de aprendizado da língua geralpelo chamado Apóstolo do Brasil, que teria se dado em seis meses, segundo Pero Roiz(1955:32) e Francisco Assis Fernandes (1980:46), adveio de sua genealogia, já que seugenitor era biscainho, aliada ao seu excelente conhecimento da língua latina. Mas, comoadverte Afrânio Peixoto, em introdução a Cartas, fragmentos históricos... de Anchieta(1988:32), “facilitar não é tudo”. Chegou-se a essa mesma ilação, quanto à facilidade noaprendizado, em relação a Azpilcueta Navarro.

Há duas angulações que merecem ser analisadas. A primeira parte da afirmação de Nóbrega, que, em carta escrita em Salvador a 10 de agosto de 1549, falando de Azpilcueta Navarro, relata (2000:53):

Já sabe a língua de maneira que se entende com eles, e a todos nos faz vantagem, porque esta língua parece muito à biscainha”.

Essa afirmação, que veio aceita por muitos historiadores, está a merecer comprovação no terreno da Lingüística Comparada. Mas é digna de nota a rapidez com que esse jesuíta adquiriu a fluência na língua brasílica. O cotejo de trechos de diferentes epístolas de Nóbrega dá idéia disso:

em carta escrita da Bahia em 1549, presumidamente em abril, ele menciona o avantajamento de Navarro, em relação aos demais jesuítas, no aprendizado da língua (2000:21), embora a referência de Navarro pregando “à gente da terra” (2000:19), esclarece Serafim Leite em nota, deva ser entendido como sendo a portugueses e seus filhos.

Em carta de agosto do mesmo ano, Nóbrega afirma, conforme já transcrito, que o padre de origem biscainha “já sabe a língua de maneira que se entende com eles” (2000:53). Em janeiro de 1550, em nova carta, o jesuíta pioneiro registra: “Na língua desta terra somos alguns de nós bem toscos, mas o P. Navarro tem especial graça de Nosso Senhor nesta parte, porque andando por estas Aldeias dos negros, nos poucos dias que está aqui, se entende com eles e prega na mesma língua” (2000:72).

A aquisição dessa língua por ele se torna mais nítida em sua rapidez quando é elacontrastada com o processo aquisitivo de outro jesuíta-língua, Antônio Rodrigues, posto em relevo nessa qualidade pelo mais reputado língua da época, Pero Correia, em carta referida por Serafim Leite em nota a Nóbrega (2000:247), e também por Cortesão (1955:206). Rodrigues fora explorador – notável sertanista nas palavras de Serafim Leite, em nota àsCartas de Nóbrega (2000:165) – por 18 anos, entre 1536 e 1553, nas primeiras tropasmilitares da Espanha na América do Sul, um dos fundadores de Assunção e Buenos Aires,antes de ingressar na Companhia. Sua participação na exploração começa em 1535. Umano depois, depois de enfrentar mil agruras, inclusive ter de se repastar, para não morrer defome, com a carne dos corpos dos companheiros mortos, alcançou a terra dos Carijó, queforam convencidos do caráter pacífico daquela coluna exploratória de famintos soldadosporque “un hombre llevabamos que sabia la lengua empezó a dezir a aquellos gentiles quenosostros eramos hijos de Dios”. Ou seja, um ano depois de suas andanças exploratóriasainda não se julgava apto para se fazer entender pelos índios de língua de base tupi. Mesmoem 1557, em carta escrita da Bahia a 02 de setembro, Nóbrega, depois de afirmar queManoel de Chaves “é a melhor língua que temos”, refere-se também a Rodrigues, que “éoutrossim língua”, mas sem realçar-lhe a mesma proficiência, embora saliente a todo temposua condição de língua (como o faz novamente em carta escrita da Bahia a 5 de julho de1559 – 2000:305), o que é uma tônica nas cartas jesuíticas, dada a importância dessaqualidade para os propósitos da catequese.

Um outro trecho epistolar de Nóbrega confirma essa sua convicção de mais rápidaaprendizagem da língua tupi pelos falantes do idioma basco. Em carta escrita da Bahia a 15de abril de 1549 ele sugere a vinda de “mestre João” ou Mosen (ou Misser) Juan de Aragão,como explica Serafim Leite em nota de rodapé: “Também me parece que mestre Joãoaproveitaria cá muito, porque a sua língua é semelhante a esta”. Por ser aragonês, presumese que esse jesuíta falasse o idioma basco, já que o dialeto aragonês era falado no antigoreino de Aragón e Navarra, como explica Tagliavini (1993:583): “otro dialecto importantees el aragonés, que en parte se funda historicamente en el antiguo reino de Aragón yNavarra, pero que recibió gran influencia del castellano”.A segunda conclusão é que, apesar desses indícios favoráveis, nada de conclusivoaté hoje se escreveu sobre o assunto, o que conduz à suspeita de que a conclusão dosautores citados é ousada, inclusive de Nóbrega, sobretudo porque parte não de uma teoriaformulada por lingüistas (nem mesmo de Anchieta e Navarro, que melhor poderiam deporsobre o assunto), mas sim de uma mera observação de historiadores que identificaram umacoincidência entre o aprendizado célere da língua geral por dois jesuítas de origem basca,muito embora a informação de Nóbrega seja de inegável valor, podendo-se até supor que ativesse registrado por tê-la sabido daqueles mesmos jesuítas. Mas, se se tem em conta acomplexidade do basco ainda nos estudos atuais, cuja classificação tem ultimamente secentrado como língua caucásica (TAGLIAVINI, 1993:250), mais apressada se torna essaconclusão. Antonio Tovar, apud Baldinger (1972:251), depois de demonstrar estardefinitivamente afastada a teoria do substrato ibérico único, formulada por Humboldt esustentada por Emil Hübner e Hugo Schuchardt, dispõe sobre o caráter complexo do basco: [Páginas 134 e 135]
*“A língua geral em São Paulo: instrumentalidade e fins ideológicos”. João Batista de Castro Junior, Universidade Federal da Bahia - Instituto de Letras - Programas de Pós-graduação em Letras e Lingüística
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