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Língua Portuguesa, língua Tupi e língua Geral: jesuítas, colonos e índios em São Paulo de Piratininga: o que entendiam, o que praticavam, o que conversavam, 2011. João Batista de Castro Júnior
201108/04/2024 01:07:03

“autor(es) do Vocabulário na Língua Brasílica”, observa Aryon Rodrigues (1996:7)18. Nissopode residir a propósito uma das explicações para o próprio nome genérico de língua tupi,redução braquifônica de tupiniquim19, ajudada ainda pela influência do mesmo elementocompositivo em tupinambá e tupinaé: “foi provavelmente essa ocorrência do termo tupi emdiversas denominações tribais que influiu, poderosamente, para consolidar definitivamente asua promoção a genérico”, bem observou Frederico Edelweiss (1969:120)20.Mesmo entre os línguas considerados modelares, havia dificuldades intrínsecasque afastavam a ideia de que o aloglota, por melhor que viesse a se tornar falante da línguanativa, pudesse reproduzir e preservar diuturnamente a intimidade morfofonológica doidioma: quem o diz é ainda Anchieta ao tratar do “i áspero”, que se apresentava comoempecilho à fonação europeia, o que o faz recomendar que “se há de deixar ao uso porquealguns muito bons línguas o não podem pronunciar” (1946[1595]:6 v). Como consequência,eram comuns elocuções como “óca, ócupe, por ócipe, ánga, ángeme por ángime...” (p. 2)21.Logo em seguida ressalva, por expressão em latim, o contexto como veículo da compreensãodessas habituais mas imperfeitas elocuções: “mas ex adiunctis se entende o que quer dizer”(ib.)22. Mesmo no limiar da Arte, tendo salientado não existir na língua “muta (=oclusiva)com líquida, ut cra, pra etc” (1946[1595]:1), alude a quem “não sabe a língua, [que] pronunciamuta com líquida, ut imodonpira, dirá imondopígra” (p.6, v). Anchieta traz ainda o elementoadicional que tornava qualquer “preservação” quimérica, mesmo depois da Arte: “a língua doBrasil não está em escrito, senão no contínuo uso do falar” (p.9). O uso passa, assim, a finomestre e grande curinga na formulação anchietana, não só nas “letras, ortografia, [Página 22]

Era emblemático que Antônio de Proença fosse casado com Maria Castanho,portuguesa de linhagem, isolada em sua procedência unicamente europeia das demaismulheres mestiças de São Paulo na primeira década do século XVII, como preciosamenteinformou Jácome Monteiro em sua Relação da província do Brasil, de 1609, dada àpublicação no ano seguinte: “Os moradores são pela maior parte mamalucos e rarosportugueses; e mulheres há só uma, a que chamam Maria Castanha” (HCJB, VIII, 360). Se omarido não falava tupi, não há por que crer que a esposa, de boa cepa lusa, detivesse talaptidão, embora isso não significasse, uma vez que existiam outras mulheres falantes deportuguês, isolamento lusófono, nem que seus filhos fossem monolíngues, uma vez que adescendência de homens e mulheres portugueses desenvolvia aptidão bilinguística em razãodo meio em que estava inserida. Nem a boa filiação linhagística fomentava escrúpulosexclusivamente lusófonos entre colonos, como narra Ambrósio Pires em carta da Bahia, a 12junho de 1555: “Ci è anco un´altro nostro chiamato Pietro de Goez, giovane nobile, e sa benela lingua delli indiani per essere venuto piccolo con suo padre” (MB, II, 238)81.

Como o fidalgo genitor desse Pero de Góis, Antônio de Proença e seus pares monolíngues em português eram dos moradores que avaliavam bem a importância do papel dos línguas para a própria segurança da Vila, acossada por ameaças, reais e forjadas, de índios, especialmente do sertão. Imiscuindo-se nele, podiam os sertanistas-línguas aquilatar o perigo ou pelo menos desenhá-lo para fins de montagem do discurso de uma guerra campal, como aquele registrado na sessão de 7 de julho de 1590, que justificava o ataque, pois, “para mais fundamento de tudo isto, se informaram de Baltasar Gonçalves e Francisco Preto, homens que foram nessa jornada e salto que se fez e que entendem bem o gentio” (ACSP, I, 424).

Mesmo envolvido por um cinturão de índios aldeados, escravizados e em estado de liberdade tribal pelos matos, muitos desses portugueses não aprendiam a língua tupi, pois não “andavam entre os gentios”, expressão que não se confunde com ir todos à guerra82 ou integrar expedições que esvaziavam a Vila. Nela, portanto, vigorava a necessidade política de línguas, quando não se montava uma comunicação sobre uma língua de emergência, pois a própria expressão política do lugar, a Câmara, se comportava com o que poderia ser interpretado como certa esquizoidia lusófona – se não fosse devidamente compreendida pela força do prestígio com que se via a própria institucionalização burocrática – ao editar [Página 51]

O atiramento a costumes nativos não era bem visto nem por colonos nem porjesuítas. Estes exprobravam tanto índios (CCAP, 59; MB, II, 120) quanto portugueses (MB, II,256) e truchements (MB, IV, 139)216 que cantassem e bailassem em ritos gentílicos, e aCâmara impunha pena tanto a quem “se achar em aldeia de negros forros ou cativos bebendoe bailando ao modo do dito gentio” (ACSP, I, 201)217 quanto, reprovando o laxismo, a“qualquer pessoa, branco ou negro macho” que vá à fonte ou lavadouro para ficar “pegandode moça escrava ou índia ou branca” (ACSP, I, 395).

Mas o pragmatismo escravista português fez com que fossem aproveitados indivíduos que se aproximavam dos costumes dos índios, como hábeis apresadores e falantes de suas línguas, a exemplo dos filhos e netos de João Ramalho, que compuseram várias expedições, como Antônio Macedo, Vitório Ramalho, Gregório Ramalho, Belchior Carneiro e Francisco Tamarutaca, além de portugueses como Domingo Luís, o Grou, alcunha que, em condições normais, pelo seu significado de “diabo”218, provocaria repulsa e rejeição do seu destinatário, mas, em São Paulo, carregava consigo desleixada jocosidade de que se orgulhava tanto seu portador quanto os descendentes, aos quais foi legada como herança. Interessava a São Paulo a capacidade de mobilização de seus rebentos mamelucos, aqueles “valentíssimos homens, grandíssimos línguas” a que se referiu Quirício Caxa ao relatar a ida de Anchieta ao sertão de Anhembi para resgatar Grou da indianização (1934[1598]: 18).

Com essa prole, e unidos a ramalhenses, Domingo Luís encabeçava ações que exemplificavam o suporte econômico da Vila: o apresamento de índios. Essa habilidade não passava despercebida da Companhia de Jesus, que recebeu ex-traficante de escravos índios, como Pero Correia, e um ex-soldado como Antônio Rodrigues.

218 Símbolo do terror experimentado pelos índios, alguns deles orgulhosamente “botaram fama que tinham morto a Antônio de Macedo e Domingos Luís Grou” (ACSP, I, 388 e 403). O referendo das ações de Grou está na recepção que lhe foi dada quando de seu retorno do homizio em Anhembi, buscado por José de Anchieta: “causó esto grande alegria y edificacion en todo el pueblo”, diz a Historia de la fundacion del collegio del rio enero (1897[1575]: 127). “E bimbalhavam os sinos da Igreja de São Paulo, para o solene Te Deum pela vitória da cruz”, apraz-se em escrever Viotti (1980[1965]:167).

Outro sinal da aprovação social é fornecido pela sua própria nomeação como Procurador do Conselho (ACSP, I, 64-65 e 192), além da tranquilização de Anchieta, que inescondivelmente lhe votava inexplicável afeição, quando surgiu o primeiro comentário de que tinha perecido, conforme sessão de 7 de julho de 1590 (ACSP, I, 403): o jesuíta profetizou que estava vivo e pediu que “rezassem pelos expedicionários...”, escreve Viotti (1980[1965]:219).

A Historia de la fundacion del collegio del Rio de Henero registra que, 1 ano depois do retorno do homizio, o “homem branco” que acompanhara Grou se desentendeu com o capitão e terminou sendo morto pelo filho deste (op.cit., p. 127).

Viotti, que data de 1568 o resgate feito por Anchieta, diz que esse era Francisco Correia e que acompanhara Grou em seu desterro para o sertão (op.cit., p. 159 e 167). Esse dado da morte de Correia é desmentido pela informação da sessão de 5 de dezembro de 1593, de que perecera em entrada junto com Grou (ACSP, I, 476).

Tanto a Historia de la fundacion del collegio del Rio de Henero (p. 126) quanto Quirício Caxa (1934[1598]:18) dizem ainda que que Grou era mestiço. Viotti atribui aquela Historia a Caxa (1980[1965]:162). Havendo essa unidade de fonte, seria passível de discussão a origem mestiça de Grou, pois Carvalho Franco (1989[1940]:191) e América de Moura(1952:383) asseguram que era português, o que tem importância quanto ao domínio adquirido da língua, que Caxa diz que era pleno, devido então ao seu entranhamento. A alcunha foi agregada muito depois de suas primeiras aparições na Câmara e agradava a seu portador, que a legou aos herdeiros, como símbolo de bravura – contra índios. Antes de 1582 era designado apenas “Domingo Luís”, a exemplo do ano de 1563, em que aparececomo capitão dos índios (ACSP, I, 24), identificação que é sustentada por Américo de Moura (1952:383), a qual Taunay, todavia, afeta a outro Domingo Luís, o Carvoeiro (2003:373), tal como faz em relação ao procurador do Conselho em 1575 (2003:373), novamente em confronto com Moura, que afirma ter sido o Grou o Domingo Luís que consta sem alcunha nessa passagem das atas (ACSP, I, 64-5).

Não dá para saber com segurança qual o Domingos Luís dessas referências, sobretudo daquela primeira sessão da Câmara, à falta de maiores elementosque desfaçam a confusão homonímica, problema recorrente em textos do século XVI, levando Bourdon, entreoutros, a comentar que eram “les cas d´homonymie extraordinairement fréquents au Portugal” (1949:78). Nocaso em questão, entretanto, Américo de Moura parece estar com a razão, pois se mostra mais associado ao perfilde Grou, conhecido apresador de índios, ir ao Rio de Janeiro em guerra (ACSP, I, 65), como lhe dedica umaentrada biográfica Carvalho Franco (1989[1940]: 192), que explica tratar-se da guerra de Salema no Cabo Frio.A Câmara teve que desfazer essa homonímia, designando um Domingo Luís como “o Carvoeiro”, em 1579(ACSP, I, 133), e outro como “o Grou” em 1582 (ACSP, I, 192-193), embora naturalmente a distinção oralmentejá devesse preceder o registro camarário. Segundo Américo de Moura (1952:322), provinha aquela alcunha doprimeiro Domingos Luís de ser originário da freguesia de S. Maria da Carvoeira. Pode-se pensar, com isso, porigualdade de razões, que a motivação alcunhística de “Grou” tenha tido sua origem em alguma das mais de duasdezenas de localidades em Portugal que carregavam essa designação toponímica, a partir do animal, naEstremadura, Alentejo e Algarve, referidas por Leite de Vasconcelos, entre as quais Vale do Grou, Monte doGrou, Nave do Grou, Val-Grou, Valle da Groua e da Grouvinha, Val-do-Grou e Ribeiro do Grou(1995[1936]:158). Resolução Régia de 1660 prestigia João Marques Salgado por ter servido de sargento naProvíncia do Minho desde maio de 1643 a 1644, “e achar-se em algumas entradas que se fizeram em Galiza, emparticular na praça de Salvaterra, nos lugares do Grou, Nogueira e Linhares” (PLMH, II, 423). Todavia, secarvoeiro é um gentílico, grou não o é, mas sim grouense. Por isso, exemplificativamente, se registra “AndréPeres, português de alcunha, morador nesta dita Vila” (ACSP, II, 14). Uma qualidade, fora dessa condição degentílico, é sempre referida, como alcunha, por um substantivo, a exemplo do que ironicamente escreve Duarteda Costa ao monarca quando de sua disputa com o bispo Sardinha, reportando-se a certos aliados destes:“mancebos Irmãos que se chama de alcunha as Freiras” (HCPB, III, 376). Deve-se também descartar provávelhipótese, no caso de Domingos Luís, de que fosse seu emprego motivado por um indicador físico de excessivamagreza, sob o argumento de que “grou”, pelo que ensinam Michaëlis (RL, III, 181) e Antenor Nascentes(DELP, 294), deu lugar a “esgrouvinhado”, “esgrouviado” e “engrouvinhado”, ou seja, “de estatura elevada emagro, como um grou”, ensina Houaiss (2001:1217). Leite de Vasconcelos (1928: 203) e J.P. Machado (DELP,456) registram esse uso já no século XVI, apoiados em abonação de Comédia eufrosina. Mas, se a intençãosemântica fosse essa, teria sido empregado “esgrouvinhado” como alcunha. Mesmo considerando que asalcunhas são contratas, o surgimento depois de anos, após seu retorno do homizio no sertão e progressivodestaque como apresador, faz crer que seja outra a direção histórico-etimológica, pois Domingos Luís não teriaficado magricela só por causa disso, muito menos aumentado sua estatura. Na hora de desfazer a homonímiacom o outro Domingos Luís, que também exercia cargos na Câmara, pesou o comportamento de salienteescravista, inclusive de Tupináes, especialmente pelo grau de selvageria e de terror, que terminou por ditar suaaposição, tal como acontecerá a Anhaguera, mas aqui pela ótica dos índios, e não dos portugueses. É oVocabulário da língua brasílica, que traz boa pista lusófona a respeito da alcunhagem aqui referida, na seguinteentrada: “Diabo – Anhangá. Este é grou. Espécie Curupira, Taguaíba...” (VLB, 102). João Ribeiro escreveu sobreessa designação na pena de Gil Vicente: “Por ironia e contraste talvez com o Espírito Santo que se simbolizacom uma ave, aparecem os santos ridículos da fauna: Na Barca do Purgatório: oh renego de San Grou/ E de SanPata do céu. Grou (ou Jão Grou) no mesmo auto de Gil Vicente é o diabo” (1908:219). Guérios dá também,além de “grou” (1979:56), “João Grou” (p. 57) como designação popular de “diabo”, mas sem situar no tempoessa utilização e sem fornecer qualquer informação histórico-etimológica. Leite de Vasconcelos tem estudoainda insuperável sobre alcunhas, inclusive aquelas originárias de animais, mas se limitou a situar “grou” noséculo XVI e seu uso em “Fr. João Grou”, sem mais nada dizer (1928:225). Ensina Michaelis, no estudo O judeuerrante em Portugal, que “a forma Jão em lugar de João é muito vulgar” (RL, I, 41). Não foi a única vez que GVempregou o vocábulo nesse sentido. No Auto do purgatório, o diabo diz: “Não fizeste o que mandou”. O pastorresponde: “Calai-vos, Senhor Jão Grou” (1983, I, 243). No Auto da barca do inferno, o Fidalgo se desesperaporque a barca do Anjo não lhe ouve os apelos “Que gericocins, salvanor!/ Cuidam cá que sou eu grou!” (1983,I, 204). Embora “grou”, segundo garante Delmira Maçãs (1950: 173 e 1951:371), seja uma ave que possasignificar “estúpido”, no texto, ao contrário do que afirma, é sinônimo mesmo de “diabo”, significação que aautora não dá em seus estudos. A “estupidez”, nesse caso, é na verdade ditada pelo vocábulo “gericocim”, comoexplica Révah: “J. M. Piel, Miscelânea vicentina, p. 34 du tirage à part, croit qu´il s´agit d´un croisement dejerico «asno» et de rocim, «cavalo pequeno e fraco» (1951:166). Maçãs, mais adiante no mesmo estudo (p.373), diz que, tal como “chupar baratas, comer cobra”, a expressão “comer carne de grou” está associada à ideiade transmissão de uma qualidade, que ela, entretanto, não declina no caso. M. Dias Nunes, ao tratar daexpressão “parece que comeu carne de grou”, baseando-se na tradição popular, afirma que “a pessoa quealcançava a suprema ventura de saborear tão esquisito manjar podia, sim, (...) chegar ao estado deplorável damais completa inação e paralisia, à perda mesmo de todos os sentidos corporais. Mas ainda assim, viveriaeternamente” (RL, 1896:114). Ainda segundo ele, a existência em mísero estado somente abandonava o“engrouado” quando almas caridosas e benfazejas, condoídas, deliberavam, depois de muito instadas, “e não sem certo receio e terror, a deitar o pregão de morte”. Pires diz que na medicina popular alentejana havia o dito“quem come carne de grou vive muito” (1906:115). Diogo Fernandes Ferreira, que teria nascido em 1546, no seuclássico Arte da caça de altaneria, vindo a lume em 1616, escreve que “vulgarmente, dizem alguns, que aquellesque comem carne de grou, não morrem aquelle anno; há d´esta carne tão pouca que o devem de dizer de burla”(1899:110). O mesmo Ferreira, linhas antes, noticia que “alguns escriptores dizem que estas aves dormem comuma pedra na mão e a tem levantada, e estão sobre um só pé para que assim estejam mais vigilantes (p.109). Daíderivou a expressão “estar em pé como o grou”, que, segundo Maçãs, significa “muito esperto, desvelado,vigilante e ´de pé no ar como o grou´ (cf. o francês ´faire le pied de grue´)” (1950:238). Essa vigilância pareceassim estar na raiz dos dois dizeres citados e também na da crença segundo a qual “a carne do grou conserva avida humana”, segundo ainda Maçãs (p. 308). Esta Autora, entretanto, não traz uma única vez a significação de“diabo” para o vocábulo, desconhecendo o que era de comum sabença. Não é arriscado associar a ideia de“diabo” ao fato da arguta vigilância do animal, pois na parábola bíblica do joio e do trigo “enquanto os homensdormiam, veio o inimigo dele” (Mt, 13:25). O “inimicus” é uma das designações mais associadas ao Diabo, deque também se diz ser “tal-coisa-que-anda-de-noite” (GUÉRIOS, 1979:56). Cláudio Eliano (Claudius Aelianus– 175-235) diz que três ou quatro grous montam guarda enquanto os outros dormem, segurando uma pedra numadas patas, que ficaria levantada para funcionar como alarme no caso de adormecerem (1989:123), informaçãoque Donado, em nota, diz também estar presente no De sollertia animalium, de Plutarco, o que seria rechaçadopor Aristóteles ao afirmar que somente o chefe do grupo montaria guarda. A isso se associaria o tétrico som porele emitido, pelo que se vê do Canto V da Divina Comédia: “E come i gru van cantando lor lai,/ faccendo in aeredi sé lunga riga,/ così vid´io venir, traendo guai,/ombre portate da la detta briga;/per ch´i´ dissi: «Maestro, chi sonquelle/genti che l´aura nera sì gastiga?». (Ou, na tradução Italo Eugenio Mauro: “E, como grous cantando o seulamento,/ que longa trilha formam no ar passando,/ assim, trazidas pelo negro vento,/ sombras eu vi passar selamentando;/ e ao Mestre perguntei: “Quem são aquelas/ gentes que o vento assim vai castigando?” (2010:51))Numa das trovas satíricas conhecidas como Arrenegos do Barqueiro do Inferno, de Gil Vicente, que se encontranuma folha volante, reproduzida por Teófilo Braga, a mesma ideia se acha presente: “Arrenego da fantasia/ dequem mais que a mim amou/ arrenego eu do grou/ Que voando foi ao céu” (1883:454). Braga esclarece queesses Arrenegos não se encontram no Auto da Barca do Inferno, “e devem-se considerar como pertencenteàquele número de obras miúdas, que Luís Vicente já em 1562 dava como perdidas” (p. 453). Guérios diz que aexpressão exclamativa “t´arrenego!” é “elíptica de t´arrenego, demônio!” (1979:60). Ainda segundo esse autor,“arrenegado” é um disfemismo para “diabo” (p. 55). Se alguém quisesse em São Paulo nomear Domingos Luíspela aparência com o correspondente brasílico do animal, teria à disposição Jaburu, que os autores do VLBderam como equivalente (p. 151). O uso do artigo foi utilizado em apenas uma passagem (ACSP, I, 193),suprimido das demais (ACSP, I, 199, 403 e 476). Era comum, na lição de Leite de Vasconcelos (op.cit., p. 178-179), que a alcunha perdesse o artigo e se transformasse em apelido, ou, como se usa no Brasil, sobrenome. Issoaconteceu também ao homônimo, posteriormente designado apenas “Domingo Luís Carvoeiro” (ACSP, I, 266 e272, e II, 15). Nesse caso, como a de Grou e de Carvoeiro, “as alcunhas transmitem-se de pais a filhos ouparentes”, ainda escreve Leite de Vasconcelos (p. 178). Joaquim Ribeiro dedicou, em sua obra sobre osbandeirantes (1946), o capítulo VIII, intitulado “As alcunhas”, mas não arrolou grou. Por último, deve-se dizerque não há nenhum sentido na tese de Alfredo Ellis Junior de que “Grou deveria ser um aportuguesamento denome britânico – Grow” (1948:32). V. sobre a importância de nomes e alcunhas, Carvalhinhos (2007). [Páginas 91 e 93]

No mínimo, o conceito de língua exigia entender bem, como se dava com BaltasarGonzalves e Francisco Preto, dos quais, na sessão de 7 de julho de 1591, é dito que“entendem bem o gentio” (ACSP, I, 424), o que autorizou Carvalho Franco (1989[1940]: 322)a afirmar corretamente, quanto a Preto, que “sabia bem a língua tupi” e a Américo de Mouraa dizer que “era bom língua” (RIHGSP, XLVII, 435). Gonçalves e Preto atuaram quase quecomo “línguas oficiais” da Câmara em outras oportunidades, mostrando o grau de suahabilidade298.O uso do verbo sem essa modalização indicava um grau mediano decomunicação299, assim como o adjunção de mal tornava-o sofrível. Ao tratar dos Guaianases,Gabriel Soares de Sousa escreveu que “a linguagem deste gentio é diferente da de seusvizinhos, mas entendem-se com os Carijós” (2000[1587]: 78). Páginas antes, escrevendosobre os Papanases, dissera que sua linguagem “entende os Tupiniquins e Guaitacazes, aindaque mal” (p. 60). Por essa informação pode-se concluir que se os Guaianases desenvolveram

(...) Preto e Gonçalves foram importantes na montagem do discurso de justificação de uma guerra campal, na sessão de 7 de julho de 1590, a ser empreendida contra os seguintes “contrários” alocados em “Bairi (=Barueri)”:

“emxoa, mairaira, japoasabi, jetariba, aibaseru, asaguaseru, guiraguorini” (ACSP, I, 424). Escrevendo sobre esse trecho, Carlos Drumond, indaga: “Enxoás, Mairairas, Tapoaçabis, Tetaribas, Iabacerus, Açaguacerús, Cuikaguorimis. Grupos tupis? Não tupis? Não o sabemos” (1973:5). A aptidão de Francisco Preto e Baltasar Gonçalves como línguas torna claro tratar-se de índios da família linguística tupi-guarani. [Página 119]

contrário, se integraram à Vila, onde já existiam espanhóis de relevo como Antônio deSaavedra, que um ano antes era juiz ordinário (ACSP, I, 194)626, que deve ter intervindo emfavor deles627 pela mesma razão que José de Anchieta intercedeu em favor do carpinteirocastelhano Francisco de Escalante, admitido na Companhia nesse ano de 1582 (TH, 99), quesaltou da mesma armada no Rio de Janeiro e em relação a quem, mesmo diante do argumentodo Governador designado para o Estreito de Magalhães, Pedro Sarmiento de Gamboa, de queera “el mejor oficial de todos”, Anchieta resistiu no acolhimento: “dixo el provincial q synofuesse por fuerça no lo daria”, noticia documento reproduzido por Pastells (1920, II, 198).Em São Paulo, para além do fato de se estar sob a união das coroas, oanticastelhanismo foi nesse momento detergido pela afinidade de propósitos e comunhão deinstintos, somando-se ao fato de que tais fugitivos eram hábeis em ofícios carecidos em SãoPaulo628. Em 1575 declarava-se que “nesta Vila não havia carpinteiros” (ACSP, I, 73)629. Osevilhano “Bartolomeu Bueno, carpinteiro”, mesmo sendo analfabeto, era bom e útil profissional desse mister, tanto que, depois de exercer essa profissão, o fizeram “juiz do ofício de carpintaria, por ser homem que melhor o entendia o dito ofício” (ACSP, I, 321).

A Câmara não tolerava na verdade a presença de forasteiros – portugueses ou não – que não gostassem de trabalhar e que apareciam em São Paulo: “aqui andavam alguns homens forasteiros e não faziam muito proveito à terra; com serem oficiais, não queriam trabalhar, que suas mercês lhes mandassem com certa pena que ou trabalhassem ou se fossem fora da Vila”, requereu o Procurador do Conselho em 27 de janeiro de 1590 (ACSP, I, 383). [Página 220]

numérica era muito menor ainda704. Sua população feminina casadoura era mestiça, que, na Bahia, nem sempre acendia o desejo de enlace matrimonial, como escreve Nóbrega ao dizer quer “todos se escusam que não têm mulheres com que casem, (...) porque são tão desejadas as mulheres brancas cá” (2000:114)”. Daí seu pedido para que venham, ainda que erradas705 e meretrizes (2000:30, 79, 82, 102). Mesmo assim, tiveram a maioria dos colonos da Bahia de se contentar com mestiças e índias, pois “por serem pobres, se casaram com mulheres negras”, informa ainda Nóbrega (p. 79). Segundo ainda o jesuíta, “bastantes outros voltaram para o nosso Reino” (ib.) [6 Com isso Nóbrega se punha na linha de atuação do Ouvidor Pero Borges que recomendava, em carta de 7 de fevereiro de 1550, “que os mandem [os homens] ir para suas mulheres, não sendo eles degredados” (HCPB, III, 268). Equivocou-se, portanto, Boxer ao dizer que essa nunca foi uma preocupação da Coroa portuguesa, ao contrário da castelhana (1977b[1975]: 34, 47, 81-82).]706.

Em seu isolamento orográfico, Piratininga não podia abrigar essa veleidade, e seus moradores dizem o que têm a oferecer a novos colonos na carta endereçada à rainha D. Catarina, em 20 de maio de 1561: “(...) mande que os degradados, que não sejam ladrões, sejam trazidos a esta vila para a povoar, porque há aqui muitas mulheres da terra mestiças, com quem casarão e povoarão a terra” (PLMH, I, 355).

Um rápido bosquejo revela que algumas das personalidades mais proeminentes de São Paulo quinhentista se casaram com índias e mestiças de diferentes graus – muitas destas descendentes de João Ramalho. Foi o caso de seu colega de naufrágio, Antônio Rodrigues, que se casou “com uma filha dePiquerobi, cacique da aldeia de Ururaí”, segundo Frei Gaspar, apud Américo de Moura (1952:446), fazendo nascer desse tipo de união interétnica o curso de “língua geral” que tomará o tupi.

Além desses pioneiros, pode-se lembrar Domingo Luís, o Carvoeiro, que era originário de Marinhota, freguesia de S. Maria da Carvoeira, Viana do Castelo, que se casou em primeiras núpcias com uma bisneta mameluca de João Ramalho, registrou Américo de Moura (1952:322-3) [Tb.: Taunay (2003[1921]:373 e 393) e Viotti (1964:17)].

Lopo Dias, um dos primevos de Santo André, teria se casado com704V. Capistrano de Abreu (1963:123). Mesmo muitos anos depois, entre 1730 e 1809, Maria Luiza Marcilio, emanálise dos registros de casamento, constatou que “raras eram as paulistas provenientes de Portugal” (2004:255).Caio Prado Jr. (1996:350), em passagem com que é bastante coincidente uma de Maria Beatriz Nizza da Silva(1998:13 e 149), observa que os colonos vinham em busca de aventura, deixando atrás de si a família. Faoro tem uma análise particular sobre as uniões conjugais: “A falta de mulheres portuguesas conjuga-se com a elevação de fortuna do conquistador e dos nativos” (1989:111).705 [Era uma expressão da época. Cristóvão Rodrigues Oliveira, no seu famoso Sumário... quinhentista, refere-se, em 1554, ao Mosteiro das Penitentes da Paixão de Cristo destinado a “mulheres erradas” e diz que “em principio ouve muytas” (1938:68-69). Francisco Rodrigues escreve que “no ano de 1543 o P. Simão Rodrigues agenciou em Coimbra a fundação de um Recolhimento, onde se recebessem e regenerassem as mulheres perdidas” (1931, I, 699). Para uma conclusão deformada da intenção de Nóbrega, baseada em preconceito racial, v. Nazzari (2001:71)].

706 Com isso Nóbrega se punha na linha de atuação do Ouvidor Pero Borges que recomendava, em carta de 7 defevereiro de 1550, “que os mandem [os homens] ir para suas mulheres, não sendo eles degredados” (HCPB, III,268). Equivocou-se, portanto, Boxer ao dizer que essa nunca foi uma preocupação da Coroa portuguesa, aocontrário da castelhana (1977b[1975]: 34, 47, 81-82).

uma filha de João Ramalho, segundo Carvalho Franco (1989[1940]:107), que lhe dá o nome de Beatriz Ramalho708. Uma das mulheres dessa mesma união casou-se com Belchior da Costa (IT, II, 111), habilidoso escrivão da Câmara, com experiência cartorial na Bahia, escreve ainda Moura (op.cit., p.330). Outra, Suzana Dias (IT, II, 124), se casou com Manuel Fernandes, o Moço, que em 1564 foi escrivão da Câmara, além de ter se tornado também juiz, vereador e almotacel (MOURA, op.cit., p. 360). Salvador Pires, natural do Porto709, casou-se com Mécia Fernandes, ou Meciuçu, escreveu Taunay (1968:247), que informa ter sido quarteirona (2003[1921]:390).Pode-se acrescentar também Antônio Cubas, igualmente originário do Porto710, presença ativa em Santo André e São Paulo, que Américo de Moura (1952:344) supõe ter se casado com alguma Ramalho. Ao lado desses, Taunay arrola Terebé ou Maria da Grã, filha de Tibiriçá e mulher do competente Pero Dias711. Com a filha de Pero dias e Maria da Grã casouse o português Gonçalo Madeira, escreve Moura (op.cit., p. 397). Pedro Afonso Gago secasou com uma “tapuia” (2003:390)712. Gaspar Afonso, que, apesar de analfabeto, exerceu oscargos de alcaide, meirinho do campo, almotacel e procurador do conselho, se casou com amameluca Madalena Afonso, filha da precedente, conforme igualmente Moura (op.cit.,p.297). Segundo ainda este autor, com a outra filha da “tapuia”, a órfã Madalena referida nasAtas da Câmara de S. Paulo, teria se casado em primeiras núpcias Afonso Dias (p.346).Nesse rol ainda se inclui Brás Gonçalves, que se casou com a índia tupiniquimMargarida Fernandes, filha do cacique de Ibirapuera, segundo Silva Leme, apud Taunay(2003[1921]:390), ou com uma mameluca filha de João Ramalho, segundo hipótese deAmérico de Moura (1952: 377)713. Domingos Luís, o Grou, se casou “com a índia MargaridaFernandes, filha do principal de Carapicuíba”, diz Américo de Moura (1952:383)714. Comobem avaliou Taunay, “passadas uma ou duas gerações, não haveria, em São Paulo, quem não708 Cf. Américo de Moura (1952: 346), Taunay (1968:239) e Zenha (1970:25).709 Cortesão (1955:233).710 Frei Gaspar da Madre de Deus (1975[1798]:80), Carvalho Santos (1940:36) e Cortesão (1955:233).711 O mesmo Dias que aparece tanto como escrivão em São Paulo (ACSP, I, 49), além de almotacel e alcaide,quanto contador da Vila, contador de custas e inquiridor (ACSP, I, 120-1). Jerônimo Leitão, na provisão que onomeou em 1587, refere-se a ele como tendo “discrição e ciência” (ACSP, I, 319). Sua aptidão letrada supôs-sederivar do fato de ser ex-irmão leigo jesuíta que fora desligado da ordem para casar-se com a tal filha deTibiriçá, segundo uma versão muito difundida, como se vê de Américo de Moura, (1952:347), com crédito aindade Taunay (2003[1921]:362-3 e 1968:227). Entretanto, Serafim Leite, reportando-se a Ricardo GunblentonDaunt e Almeida Prado, reputa essa informação mera ficção novelesca (HCJB, II, 366), verberando inclusiveJaime Cortesão (MB, II, 104, nota 18).712 Do mesmo Taunay: (1968:220-224). Tb.: Américo de Moura (1952:296).713 V. Carvalho Franco (1989:190) e ainda o mesmo Taunay (1968:225).714 Taunay (1968:226), repetindo Moura, dá-lhe o nome indefinido de “Fulana Guassu”. Carvalho Franco(1989[1940]:191-2), entretanto, diz ter se chamado Margarida Fernandes, mesmo nome da esposa de BrásGonçalves.

houvesse recebido a impressão do sinete brasílico” (2003[1921]: 390).

O decurso dos anos não mudará esse quadro. Jácome Monteiro, em sua Relação da província do Brasil, de 1609, dada à publicação no ano seguinte, diz de São Paulo de Piratininga:

Os moradores são pela maior parte mamalucos e raros portugueses; e mulheres há só uma, a que chamam Maria Castanha” (HCJB, VIII, 360) [ Essa era esposa de Antônio de Proença, sendo natural de Montemor, o Novo, filha do fidalgo português, Antônio Rodrigues de Almeida. Casaram-se em Santos. Quando da informação do jesuíta, já era viúva, pois Proença morrera a 9 de junho de 1605 (v. Moura, RIHGSP, XLVII, 438, e Carvalho Franco, 1989[1940]:325). Monteiro escreve num instante em que já tinham morrido outras europeias, a exemplo de Branca Cabral, na informação de Taunay (2003[1921]:373), e aquela “mulher de não baixa condição” referida numa carta do jesuíta Luís Fonseca, de 1576, cuja identificação Taunay não conseguiu fazer (op.cit., p. 392). O mesmo autor dá ainda notícia da portuense Madalena Fernandes Feijó de Madureira, casada com Estevão Baião Parente, que foi amotacel na Vila de São Paulo de 1587 a 1591 (p. 373). Américo de Moura diz que era também de Beja (1952:445).].

Tais uniões, por sua expressão numérica, terminarão por engendrar curioso discurso, pois a branquitude se transmuda então na cor do produto da mestiçagem, ajudada pelo fato de que existiam índios com tez mais clara, alvura que sempre surpreendia cronistas.

Assim, Gândavo716, no Tratado da terra do Brasil, alude aos Aimorés: “são muito alvos, nãotêm parecer dos outros índios” (1995:9). Um documento de jesuíta português refere-se a elescomo sendo “tão alvos que pareciam alemães”717 (HCJB, II, 267), não sendo o único a esserespeito, pois a mesma apreciação foi feita por Jácome Monteiro na Relação da província doBrasil: “Tão bem engraçados como alemães; em especial algumas fêmeas não dão vantagem aqualquer nação na alvura” (HCJB, VIII, 365).Mas não eram apenas aos inconvivíveis Aimorés que essa apreciação era dirigida.Pero Lopes de Sousa, ao chegar à Bahia em 1531, assim viu os Tupinambás: “A gente destaterra é toda alva, os homens muito bem dispostos, e as mulheres mui formosas, que não hãonenhuma inveja às da rua Nova de Lisboa” (1927:154)718. Dessa branquidade não escapariamos Carijós, tão admirados por jesuítas por seus costumes e cobiçados pelos piratininganos, naobservação de Pero Rodrigues, em carta de 1597, publicada por Amador Rebelo: “Algunsdeles são tão brancos como os portugueses” (1598:219). Quase que na mesma época, Knivetdescrevia as mulheres Carijós com quem esteve no sul do Brasil como “atraentes, com tezclara na maioria” (1941[1625]:150)719.715 Essa era esposa de Antônio de Proença, sendo natural de Montemor, o Novo, filha do fidalgo português,Antônio Rodrigues de Almeida. Casaram-se em Santos. Quando da informação do jesuíta, já era viúva, poisProença morrera a 9 de junho de 1605 (v. Moura, RIHGSP, XLVII, 438, e Carvalho Franco, 1989[1940]:325).Monteiro escreve num instante em que já tinham morrido outras europeias, a exemplo de Branca Cabral, nainformação de Taunay (2003[1921]:373), e aquela “mulher de não baixa condição” referida numa carta dojesuíta Luís Fonseca, de 1576, cuja identificação Taunay não conseguiu fazer (op.cit., p. 392). O mesmo autor dáainda notícia da portuense Madalena Fernandes Feijó de Madureira, casada com Estevão Baião Parente, que foiamotacel na Vila de São Paulo de 1587 a 1591 (p. 373). Américo de Moura diz que era também de Beja(1952:445).716 V. rediscussão da pronúncia paroxítona ou proparoxítona do vocábulo em Bechara (1998: 53-56).717 Assim não pensavam os alemães. Pelo menos em relação aos que viu no século XIX, o príncipe Maximiliano,de Wied-Neuwied, prefere dizer que “Aimorés ou Botocudos são quase tão brancos quanto os portugueses”(1989:163).718 Knivet, na descrição dos da Bahia de Todos os Santos, disse que “as mulheres são de tez menos escura do queas petiguaras” (1947[1625]:128).

719 Uma descrição particular de índios chamados Morupaques (Molopaques, no original), situados além do Vale do Paraíba, foi dada por Knivet: “muito parecidos em tamanho com os holandeses e bem claros de pele” (1947[1625]:138). Mais adiante escreveu: “As mulheres são bem feitas, de bela tez, como nossas mulheres [Língua Portuguesa, língua Tupi e língua Geral: jesuítas, colonos e índios em São Paulo de Piratininga: o que entendiam, o que praticavam, o que conversavam, 2011. João Batista de Castro Júnior. Páginas 248, 249 e 250]

em transe anímico, absolutamente incontroláveis e imprevisíveis. Negligentes do podermagnetizante dessa cerimônia e dos poderes nele envolvidos, aí se meteram dois dos melhoresgrandes línguas acostumados a movimentar-se com seus engodos e artifícios retóricos:decidiram “sus sanctos mandarlos matar y luego [os índios] os mataran”, narra Pero Correaem carta de 20 de junho de 1551 (MB, I, 225).

A força da língua nativa resistia assim irmanada à religiosidade entrecortada de transes místicos que o Cristianismo não tinha força para contraminar, com o qual quando nada chegava mesmo a cooperar inoculando conceitos e símbolos que eram então reutilizados.

Exemplo disso é dado pelo assento da sessão de 7 de julho de 1590, em que o Procurador pede que se impetre ao Capitão-mor Jerônimo Leitão declaração de guerra “contra o gentio do sertão, porquanto eles vieram contra nós em guerra e se ajuntaram de todas as aldeias do sertão desta Capitania” (ACSP, I, 403). Primeiro atacaram a entrada de Antônio Macedo e Domingo Luís, o Grou, depois “destruíram muitas fazendas assim de brancos como de índios e queimaram igrejas e quebraram a imagem de Nossa Senhora do Rosário dos Pinheiros” (ib.).



Serafim Leite escreveu que foram os Tupiniquins que irromperam contra S. Paulo, “pondo em risco a vidados habitantes, devastando as aldeias vizinhas, queimando igrejas, como a de Pinheiros, profanando imagenssagradas. À de Nossa Senhora, daquela aldeia, feita de argila, quebraram os selvagens a cabeça” (HCJB, I, 103).Monteiro preferiu ver aí “uma força aliada Guaianá e Tupiniquim” (2005[1994]:54), com quem foi concordeKok (2009:11), apesar de linhas à frente chamar o episódio de “obscuro” (ib.), mas sem razão, à luz docaraibismo tupi. V. Vainfas (2005[1995]:68), que cita essa “santidade paulista”, embora somente a partir do quesumariamente escreveu Alcântara Machado (1980[1929]:202-203). É provável que os Guaianases compusessemessa insurreição, até pelo maior contato linguístico que historicamente tinham com o tupi. Mas a expressão“guaianá” de Monteiro já não pode ser inclusiva dos Maromomins”. Pela mesma razão, Vainfas julgaimprovável que, na famosa santidade de Jaguaripe, na Bahia, estivem “tapuias”, como os Aimorés, pois “nãofalavam a língua geral” (2005[1995]:77). Numaépoca em que muitos colonos em São Paulo precisavam delínguas, não é improvável que esses distúrbios fossem agravados pela falta de comunicação linguística fluida,tanto que os índios tempos depois pedirão um capitão branco que lhes falassse o idioma.

De outro documento, lido por Pedro Taques Leme, elaborado pelos Camaristas naforma de Representação ao Rei D. João IV logo após a expulsão dos jesuítas de S. Paulo em1640, alude-se ao “levantamento” feito na Vila de S. Paulo, por ordem de um índio, “a quemobedeciam e tinham por santo, que depois de matarem toda a gente que puderam, se foram àigreja da aldeia dos Pinheiros, onde o dito índio se criou, e quebrando a cabeça da imagem deNossa Senhora, se pôs a si o nome de Mãe de Deus” (1849:20)782. Ato contínuo, definem ospaulistas a responsabilidade por esses atos de rebelião: “este é o fruto que os vassalos de V.M.tiram dos índios e gentio estarem em suas colônias e aldeias doutrinados pelos ditosreverendos padres” (ib.).O manejo cada vez mais refinado da língua se reafirmava a cada instante comocondição impostergável para o sucesso da catequese jesuítica diante ainda da acefalia política [Página 270]

CONCLUSÃONesta pesquisa procurei demonstrar que o colonizador lusitano, imbuído doespírito das descobertas no século XVI, atirou-se à conquista americana adaptando-se à línguado povo aborígene da costa brasileira, estimulado simbolicamente pela cultura de um reinoacostumado à fala aloglóssica de outros europeus que aí se detinham atraídos pelos lucros daempresa de navegação.A hegemônica língua costeira não demorou a ser dominada por esse colonizador,que se alojava basicamente no litoral, onde se desenvolviam combates contra invasores comofranceses, habilmente aliançados aos Tamoios, contribuindo essa distribuição geográfica eesse embate para o unitarismo político e prático de uma língua nativa na colonização doBrasil, apesar da existência de muitos outros povos de diferentes línguas pelos sertões, quevão ganhando relativa visibilidade quando passa a minguar a expressão numérica dos Tupis,que não poderiam garantir a reserva estratégica de servos de Deus nem de súditos da Coroa.A língua tupi ia sendo dominada pelo entranhamento cultural do europeu na fasede escambo, quase que no mesmo compasso em que dava lugar a larga descendência demamelucos, que, pela mesma motivação, desenvolveram um saber bilíngue, em velocidademuito superior à das mulheres, reclusas na clausura doméstica. Em São Paulo, sobretudo nafase da escravidão iniciada entre 1580 e 1590, tantos esses mamelucos quanto índiosigualmente bilíngues desempenharam a importante função de dirigir discursos aos apresados,prometendo-lhes uma vida de liberdade, também disseminada nos sertões para atraí-los pelo“caminho da paz”, aproveitando-se do valor em que eram tidos os grandes discursadores. Amanipulação discursivo-retórica não era causal ou acidental, mas inerente à própria estratégiade apresamento, que do contrário viveria sempre a braços com rebeliões intra muros.Essa função esperaram os moradores fosse ser exercida pelo braço religioso dacolonização, no caso a Companhia de Jesus, que tinha grande penetração entre os índios noâmbito de sua movimentação catequética. A Vila mesma de São Paulo originou-se de umarraial jesuítico, mas que passou a ser organizada com estrutura político-burocrática,inconciliável com o nicho de João Ramalho, que, resistindo a essa nova fisionomia, dela se foiembora, pela mesma razão que se desagregara o consórcio entre truchements e Villegagnondo lado francês da colonização do Brasil. Mas, filhos, netos e bisnetos de Ramalho aí ficaram [Página 349]
*Língua Portuguesa, língua Tupi e língua Geral: jesuítas, colonos e índios em São Paulo de Piratininga: o que entendiam, o que praticavam, o que conversavam, 2011. João Batista de Castro Júnior

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