Relatório apresentado ao Instituto Histórico de Goianna pela respectiva Comissão de Trabalhos Históricos e Arqueológicos, na sessão de 29 de setembro de 1871
I
Senhores - A vossa comissão de trabalhos históricos e arqueológicos vem hoje dar-vos conta de uma excursão, que acaba de fazer; e que foi coroada do mais feliz resultado. E dissemos feliz resultado, porque conseguimos: 1° achar e descrever um dos marcos reais, que em 1503 foram mandados plantar no litoral do Brasil, como símbolo de posse; 2° por que examinamos algumas peças históricas, do tempo do domínio espanhol, uma das quais com a data de 1600; 3° porque pesquisamos o local e ruínas da antiga capela de São Miguel da da aldeia do Siry, onde talvez foi batizado o Poty-guassú, ou D. Antonio Felippe Camarão;
(..) Afóra o padre Ayres do Casal, não vimos outro algum escritor individualizados estes cinco marcos, salvo o de Cananéa, que diz-se, fora visto por Gabriel Soares, sessenta anos depois; e diz-se mais que este tal marco tinha a data de 1503.
Prescindindo de averiguar n´esta ocasião quem foram os chefes das armadas exploradoras de 1501 e 1503, o que tem sido debatido por escritores modernos, e até por Humboldt, que dá como chefe desta última armada a Américo Vespúcio, e limitando-nos a dizer, que parece mais provável, que fora Gonçalo Coelho chefe da primeira expedição, e o da segunda Christovão Jacques, vindo em ambas, como piloto cosmógrafo, o célebre Américo Vespúcio, devemos ter como provado e incontestável, que os padrões reais, simbolizando a posse do Brasil ela corôa de Portugal, foram postos em 1503, não tanto pela data, que Gabriel Soares viu no de Cananéa, que aliás nos parece póstuma e apócrifa; mas pelo testemunho dos escritores coevos, que deixamos de citar, por não avolumar este relatório.
Até aqui parece líquido, que este marco achado e descrito pela vossa comissão é um dos ditos marcos reais levantados em 1503, e que portanto essa preciosidade arqueológica subsiste ai ha 368 (trezentos e sessenta e oito) anos. Mas, pode suscitar-se uma dúvida, que é prudente examinar com a lealdade, que se deve guardar na História, e muito especialmente na hermenêutica dos fatos.
O marco, como dissemos, está bem fronteiro ao engenho Amparo e no litoral do continente, que se estende entre Itapissuma e a foz do Igrassá.
Supõe-se, que de 1503 a 1526 fora fundada uma feitoria na ilha de Itamaracá, no lugar onde ainda hoje se notam as raras relíquias da vila da Conceição. Esta feitoria foi tomada pelos flibusteiros franceses; e a seu turno retomada por Christovão Jacques, e transferida para a margem esquerda, e sobre a foz do Iguarassú. Deixando de averiguar o que ha de contraditório em diversos escritores a respeito desta feitoria, é incontestável, que em 1531 essa feitoria existia, pois a ela aportou a esquadra de Martim Afonso de Sousa, como consta do Diário de seu irmão Pero Lopes de Sousa, futuro donatário da capitania de Itamaracá.
Na doação de oitenta léguas da costa do Brasil, que D. João III fez a Pero Lopes de Souza, a 1 de setembro de 1534, lê-se o seguinte, logo no preambulo da respectiva carta:
"E as trinta léguas, que falecem, começarão no rio, que cerca em redondo a ilha de Itamaracá, no qual eu ora pus nome - Rio da Santa Cruz - e acabarão na Bahia da Traição que está em altura de seis graus; e isto como tal declaração, que a cinquenta passos da casa da feitoria, que de princípio fez Christovão Jaques pelo rio dentro ao longo da praia, se porá um padrão de minhas armas; e do dito padrão se lançará uma linha, que soreará a leste pela terra firme a dentro; e a dita terra da dita linha para o norte será do dito Pero Lopes, etc."
Na carta de doação de sessenta léguas da mesma costa, feita a Duarte Coelho, a 10 de março de 1534, ainda se lê o seguinte, em referência ao exposto:
"As quais sessenta léguas de terra na dita costa do Brasil se começarão no rio de São Francisco, que é do cabo de Santo Agostinho para o sul, e acabarão no rio, que cerca em redondo toda a ilha de Itamaracá, ao qual rio ora novamente ponho nome de Rio de Santa Cruz, e mando que assim se nomeie e se chame d´aqui em diante; e isto com tal declaração, que ficará com o dito Duarte Coelho a terra da banda do sul, e do dito rio, onde Christovão Jacques fez a primeira casa de feitoria; e a cinquenta passos da dita casa da feitoria pelo rio a dentro ao longo da praia se porá um padrão de minhas armas; e do dito padrão se lançará uma linha cortando a ´losete´ pela terra firme a dentro, e a terra da dita linha para o sul será do dito Duarte Coelho, etc."
Em vista destas terminantes e fidedignas disposições, podia supor-se, e mesmo julgar-se com todos os visos de probabilidade, que o marco, achado e descrito pela vossa comissão, era o da divisão das duas capitanias, de Pernambuco, dada a Duarte Coelho, e de Itamaracá, dada a Pero Lopes.
A vossa comissão pensou e avaliou quanto lhe foi possível, esta natural objeção; tanto mais que era talvez essa a opinião do vosso relator, antes do detido exame, e devidas confrontações, a que procedeu a comissão; mas, em último e consciencioso exame, somos de parecer, que o padrão, achado e descrito, é um dos da posse real, levantado em 1503, e não o levantado em 1534 ou 1535 para dividir as duas capitanias.
(...) Mas dir-nos-hão ainda os que possam ter opinião contrária á que voz apresentamos: - o padrão, visto em Cananéa por Gabriel Soares em 1563, pouco mais ou menos, tinha a data de 1503, e este, que agora foi achado e descrito, não tem data alguma.
Tudo nos faz presumir que essa data do padrão de Cananéa, a ser verídico, não foi lavrada, ou aberta em Portugal na quantidade dos que vieram em 1503.
A armada d´esse ano saiu do Tejo ou porto de Lisboa a 10 de junho de 1503; e embora regressasse ao mesmo porto em 18 de junho de 1504, por se lhe haver perdido quatro das seis caravelas, é de crer, que tivesse vindo no desígnio de se demorar tempo suficiente para continuar e completar as explorações, começadas em 1501.
Antes de prosseguir, cumpre fazer uma rápida observação a respeito d´este marco de Cananéa com a data de 1503.
Na ´açoda´ polêmica, que teve o falecido Abre e Lima com o cônego Januário e o Sr. Varnhagem, é que vemos mencionada a circunstância de ter sido visto por Gabriel Soares o marco de Cananéa, Respostas, pág. 97.
Folheámos Gabriel Soares, e não vimos tal asseveração. O que lemos no lugar respectivo foi o seguinte:
"A estas partes foi depois mandado por sua alteza Gonçalo Coelho com três caravelas de armada, para que descobrisse esta costa, com as quais andou por elas muitos meses, buscando-lhe os portos e rios, em muitos dos quais entrou, e assentou marcos dos que para esse descobrimento levava."
Ainda no mesmo lugar; Roteiro do Brazil, página 16, diz o seguinte:
"Logo ordenou outra armada de caravelas, que mandou a estas conquistas, a qual entregou a Christovão Jacques, fidalgo de sua casa, que n´ela foi por capitão-mór, o qual foi continuando no descobrimento d´esta costa, e trabalhou um bom pedaço sobre ´aclarar´a navegação d´ela, e plantou em muitas partes padrões que para isso levava."
Do testemunho d´este benemérito e fidedigno escrito, quase coevo dos acontecimentos, por que o seu Roteiro do Brazil é anterior ao ano de 1587, não vemos nada de positivo a respeito do tal marco de Cananéa, com a data de 1503; e parece-nos haver confusão com este marco, e com o realmente achado em 1763, como testifica Fr. Gaspar da Madre de Deus, nas suas Memórias da Capitania de S. Vicente, livr. 1o. pags. 34 e 35.
Referindo-se á viagem de Martim Afonso de Sousa em 1531 e 1532, diz esse escritor o seguinte:
"Deixando em terra a gente que trazia para povoar, fez embarcar a ´soldadeses´ e marinhagem da esquadra. N´esta derrota não só descobriu muitos portos, ilhas, enseadas, cabos, e rios incógnitos; mas também levantou vários padrões nos lugares convenientes, para testemunharem a posse que tomara pela coroa de Portugal. Erigiu o primeiro defronte da ilha da Cananéa, em outra, a que chamam do Cardoso. Depois de estar oculto mais de dois séculos este padrão, achou-o coronel Afonso Botelho de Sampaio e Sousa aos 16 de janeiro de 1767, examinando aquele território com o intento de levantar uma fortaleza."
E a vista d´estas rápidas considerações, não nos parece líquida a data de 1503 no suposto marco de Cananéa.
Além de incrível, seria absurdo datar os marcos em Lisboa, onde não se podia prever o ano em que seriam levantados; e se com efeito existia tal marco, e sem tal data, deve antes crer-se que na ocasião de se plantar lhe puseram a data, por haver tempo para isso, ou que fosse posto posteriormente talvez pelo bacharel, que ali ficou degredado em 1501, e que ainda vivia trinta anos depois.