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Correio da Manhã
17 de junho de 1938, sexta-feira. Há 86 anos
Em 1511 a nau Bretoa vem a Cabo Frio e ai carrega mil toras de brasil, papagaios, gatos do mato - e trinta e cinco escravizados. Para o sul, antes da chegada da esquadra colonizadora de Martim Afonso, portugueses e castelhanos, morando em meio da indiada das futuras donatarias de São Vicente e Santo Amaro, faziam ocasionalmente o tráfico de nativos escravizados. Nas águas do pequeno Porto de São Vicente, em 1527, Diogo Garcia, piloto natural de Moguer e companheiro de Solis, negocia e contrata na sua língua travada: "uma carta de fletamiento para que truxesse en España con la nau grande ochocientos (?) esclavos". Fez o negócio o enigmático Bacharel associado com seus genros.

Chegado o donatário, e dadas a "todo los homens terra para fazerem fazendas" deu-se começo o povoamento e colonização da capitania, fundando-se nos arredores da nova povoação os primeiros engenhos de açúcar. A escravidão foi logo tolerada e aceita pelas autoridades da colonia: em 3 de março de 1533, Martim Afonso, já ausente, concede por seu "loco-tenente, licença a Pedro de Góes para mandar para Portugal dezessete peças de escravizados nativos".

Em 1548 uma carta de Luiz de Góes ao rei de Portugal assinala para a nova capitania mais de 3.000 escravizados, numa população branca de 600 almas. Em 1570 começa o problema da escravidão indígena a preocupar a metrópole: João Francisco Lisboa cita 51 providências legislativas sobre os nativos, promulgadas durante quase três séculos, desde d. Sebastião até nossos dias, sob a denominação de leis, cartas régias, provisões, alvarás, editos, decretos, regimentos e diretórios.

Ao mesmo tempo que para o amanho das terras, misteres da criação e mineração incipiente, a mão de obra do nativo era indispensável, a guerra, por seu turno, tornou necessária a arregimentação dos prisioneiros escravizados. Nos primeiros anos da capitania Vicentina, as chamadas "guerras de Iguape" perturbaram profundamente esse rude começo da vida civilizada. O espanhol Ruy de Moschera e seus sócios atacam e saqueiam a vila de São Vicente, em 1534 ao Norte as correrias dos Tamoyos, a que não eram estranhos os franceses do Rio de Janeiro, traziam em contínuos sobressaltos as bandas da Bertioga, mal protegidas pela fortaleza que o donatário construíra nessa barra. Serra acima, nos campos á beira das matas virgens, onde tinham suas roças os mamalucos de João Ramalho e os nativos mansos de Tibiriçá, a luta contra o gentio inimigo ainda foi mais viva e contínua.

Desse conjunto de circunstancias surgiu a bandeira como uma necessidade irrefutável, fornecendo braços para a cultura das sesmarias e sítios, e arcos e frechar para defesa e sustento do colono. Colocado á porta do sertão ignoto, que se alongava pelo curso dos rios misteriosos, a primeira preocupação do europeu deve ter sido proteger as suas lavouras, pastagens e povoados contra o gentio insidioso que o rodeava. Santo André da borda do campo, onde se afazendaram os descendentes de João Ramalho, era um simples amontoado de "cabanas cobertas de palha de palma, feitas de taipa de mão" - como as descreve Teodoro Sampaio - mas defendiam essas palhoças, muros, baluartes e guaritas. O bem do povo, rezam as atas da Câmara de Santo André, o exigia porque - consideravam no seu bronco falar quinhentista - "tynhamos novas que novos híndios vynhão escõtra nós".

Por sua vez, no alto da escarpa abrupta, a "paupérrima e estreitíssima casinha" que foi o futuro colégio de São Paulo de Piratininga, certamente lembrava uma tosca cidadela dominando as várzeas e campos da redondeza, ainda inçados de bugres suspeitos ou hostis. Dai, como de um burgo de guerra, se dominava o largo horizonte donde era sempre possível uma surpresa ou um ataque. A carta de Anchieta de 16 de abril de 1563, escrita de São Vicente a Laynez, narra uma dessas expedições contra os nativos inimigos que moravam nos arredores de Piratininga. Fora ela organizada na quaresma de 1561 com o auxílio poderoso de Martim Afonso Tebiriçá, "o qual juntou logo toda a sua gente, que está repartida por três aldeias pequenas, desmanchando suas casas, e deixando todas as suas lavouras para serem destruídas pelos inimigos".

Na sexta-feira da Paixão, 4 de abril, deu-se o ataque "com grande corpo de inimigos pintados e emplumados, e com grandes alaridos"; a pequena vila esteve cercada por dois dias, e só depois de encarniçado o combate foram os atacantes vencidos. Esta guerra, escreve Anchieta - foi causa de muito bem para os nossos antigos discípulos.. Parece-nos agora - acrescenta - "que estão as portas abertas nesta Capitania para a conversão dos gentios, se Deus N. S. quiser dar maneira com que sejam postos debaixo de jugo, porque para este gênero de gente não ha melhor pregação do que a espada e vara de ferro, na qual mais do que em nenhuma outra é necessário que se cumpra o - compelle eos intrare". - (Revista do Instituto Histórico, II, 560.)

Em maio de 1562 João Ramalho é eleito pela Câmara e povo de São Paulo para capitão da gente que tem de ir á guerra contra outros nativos inimigos das bandas do Parahyba; em junho desse mesmo ano a vila tem de repelir os ataques de guayanazes e outras tribos dos arredores. As atas da Câmara dessa época revelam os contínuos sobressaltos em que vivia o pequeno núcleo de população branca do planalto.

Em 1565, os camaristas dirigem longa representação a Estácio de Sá, capitão-mór da armada real destinada ao povoamento do Rio, reclamando em termos enérgicos, providências contra os assaltos de tamoyos e tupinaquins, que matam e roubam impunemente em todo o território da capitania, "não lhe fazendo a gente desta Capitania mal nenhum". Essa representação ameaça, caso não venham auxílios imediatos, abandonarem os moradores a vila de Piratininga, "para irmos todos caminho das vilas do mar".

Mais tarde, em 1585, a situação exige a organização de uma verdadeira campanha, sob o mando do capitão-mór Jeronymo Leitão, contra as tribos de carijós, tupinaes e outras que infestavam diversas regiões da capitania. Depois das expedições escravizadoras do litoral, foi talvez a primeira guerra de caça ao gentio, requerida e aconselhada pelos camaristas da vila de São Paulo.

"Requeremos - diz uma ata de abril de 1585 - que sua mercê com a gente desta capitania faça guerra campal aos nativos nomeados Carijós os quais a tem ha muitos anos merecida por terem mortos de 40 anos a esta parte mais de cento e cinquenta homens brancos, assim portugueses como espanhóis, até mesmo padres da Companhia de Jesus...".

Alegavam mais os paulistas que "é grande a necessidade em que esta terra está, e em muito risco de despovoar-se mais do que nunca esteve e se despovoa cada dia por causa dos moradores e povoadores dela não terem escravaria do gentio desta terra como tiveram e com que sempre se serviram... que agora não hay morador que tão somente possa fazer roças para se sustentar quanto mais canaviais, os quais deixam todos perder a míngua de escravaria..."

Requeriam também que os nativos prisioneiros não ficassem aldeados, "sobre si", porque "estando o dito gentio sobre si nenhum proveito alcançam os moradores desta terra porque para irem aventurar suas vidas e fazendas e pol-os em liberdade, será melhor não ir lá e trazendo-os e repartindo-os pelos moradores como dito é será muito serviço de Deus e Sua Majestade...".

Não se fez rogado o capitão-mór. Durante seis anos o seu pequeno exército assolou as aldeias do Anhemby, que eram conforme os jesuítas espanhóis, citados por Basílio de Magalhães, em número de 300, com mais de 30.000 habitantes...

Estava iniciada e organizada, em larga escala, a escravização do nativo. Com esse ardimento e afã, que sempre foram característicos da raça, os bandos paulistas se atiraram ás expedições de "resgate". Como mais tarde os dominou a vertigem do ouro, assanhava-os então o cheiro do sangue e a febre da caçada humana. Despovoou-se a pequena vila piratiningana com as contínuas entradas pelo sertão. "Esta vila está despejada pelos moradores serem ido ao sertão" - queixavam-se os camaristas em 1 de julho de 1623.

As peças aprisionadas, depois de repartidas pelos sertanistas, deviam ser registradas na câmara de São Paulo. Esta proibia a remessa de escravizados fora da vila para as povoações da marinha e para a capitania do Rio de Janeiro, visto - reza a ata da Câmara de 8 de abril de 1624 - ser "em prejuízo do serviço de Deus e de Sua Majestade e desfalque das minas".

(...) A metrópole repetidas vezes recorreu a esses bandos aguerridos para se defender contra agressões do gentio revoltado, para a conquista de novas terras, e para o que poderemos chamar o policiamento do vastíssimo território da colonia. Obedecendo aos encorajamentos oficiais, são conhecidas as expedições organizadas em São Paulo, de 1671 a 1674, a instância dos governadores gerais para a pacificação dos nativos do recôncavo da Bahia e que partiram sob o mando de Estevam Bayão Parente, de Braz Rodrigues de Arzão;

(...) A eles aconselha Antonio Paes de Sande, em 1693, que se apele para o descobrimentos das minas de Sabarábuçú, Paranaguá e outras das capitanias do Sul. O único meio para se conseguir esse descobrimento - escrevia o governador ao Conselho Ultramarino - é "servir-se S. M. de encarregar aos moradores de São Paulo este negócio, pois a confiança que faz daqueles vassalos os empenha ao efeito das obrigações dela". E num trecho que bem frisa a independência e suscetibilidade dos habitantes de São Paulo nessa época longínqua, "a pessoa que S. M. nomear para ir a São Paulo será um sujeito cuja autoridade e prudência se possa fiar negócio de tanto peso e não levará consigo mais que seus criados e as ordens e poderes reais...".

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