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“Quando um manuscrito torna-se fonte histórica: As marcas de verdade no relato de Gabriel Soares de Sousa (1587)”. Ensaio sobre uma operação historiográfica, Temístocles Cezar
202209/04/2024 15:21:36

Peri existiu. O personagem principal de O Guarani é, segundo seu autor, um índio que representa verdadeiramente sua raça. Um texto do século XVI, que freqüentemente é identificado ao gênero dos relatos de viagem, auxilia José de Alencar na descrição do nativo:

«preferi guiar-me por Gabriel Soares que escreveu em 1580, e que nesse tempo devia conhecer a raça indígena em todo o seu vigor, e não degenerada como se tornou depois»2.

O referente da ficção é construído a partir de um elemento exterior ao relato: um texto cuja credibilidade repousa na certeza de que aquilo que foi visto pelo narrador é confiável. O romance de Alencar baseia-se em um tipo de documento que passou a ser definido, em um dado momento, como uma fonte histórica; neste caso, em um relato que reenvia o leitor a um tempo onde era possível ver a raça indígena tal como ela deveria ter sido na sua plenitude. Através dos olhos de Gabriel S. de Sousa, José de Alencar vê o índio em seu estado puro e não o índio corrompido pelo tempo, espécie de simulacro que impede uma ficção real3. A visão do outro no século XVI é, portanto, percebida como uma imagem verdadeira no século XIX.

Francisco Adolfo de Varnhagen, da mesma forma que José de Alencar, utiliza-se do relato de Gabriel S. de Sousa como uma possibilidade de acesso à realidade do Brasil do século XVI. Em 1851, em carta remetida ao Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, Varnhagen apresenta o livro de Gabriel Soares como a obra “talvez a mais admirável de quantas em português produziu o século quinhentista, prestou valiosos auxílios aos escritos do padre Cazal e dos contemporâneos Southey, Martius e Denis, que dela fazem menção com elogios não equívocos”.

O padre Cazal, o poeta e historiador Robert Southey, o viajante naturalista Karl vonMartius e o viajante e literato francês Ferdinand Denis, alargam de uma maneira significativa as redes de recepção de um texto que, curiosamente, circulou quase dois séculos não somente sob um pseudônimo, mas com títulos e datas de publicações divergentes. Acrescente-se às circunstâncias de criação, produção e circulação do relato, o fato de o original ter sido perdido. [Quando um manuscrito torna-se fonte histórica: As marcas de verdade no relato de Gabriel Soares de Sousa (1587). Ensaio sobre uma operação historiográfica, Temístocles Cezar. Página 1]

Foi o próprio Varnhagen quem, após ter consultado e confrontado várias edições, restaurou o relato e atribuiu sua redação definitiva a Gabriel S. de Sousa. Para Varnhagen este texto seria "tão correcto quanto se poderia esperar sem o original, enquanto o trabalho de outros e a discussão não o aperfeiçoarem ainda mais, como terá de suceder".Após sua recomposição Varnhagen institui o texto como fonte legítima para o saberhistórico. Os procedimentos de reconstituição que tornaram válida esta fonte inscrevem-se em um conjunto de regras aceitas por esta protocomunidade acadêmica, os quais se revelam bem menos ortodoxos do que se poderia esperar das ciências positivas do século XIX. Varnhagen, por exemplo, esclarece os limites da fonte: na ausência do original é o texto possível, aberto ao debate.

O trabalho do historiador que valida a representação textual de uma experiência vividapor um indivíduo europeu nas terras do Novo Mundo, tem por pressuposto a possibilidade de a fonte exprimir enunciados verdadeiros. Recurso fundamental à conversão de um texto em fonte fidedigna do passado, as "marcas de verdade" dos relatos quinhentistas são efeitos, em proporção não negligenciável, do olhar, ou sobretudo da autópsia, ou seja "o olho como marca de enunciação, de um eu vi como intervenção do narrador no seu relato, para provar".

Princípio teórico-metodológico que rege a produção do relato e que estabelece seus limites, aautópsia é também, em grande medida, a condição que justifica o texto nos séculos que seseguem: é somente porque o autor realmente viu o que se passou que seu texto torna-se umafonte histórica (ou literária).O objetivo deste artigo é o de analisar como foram produzidas algumas destas marcasde verdade na obra de Gabriel Soares de Sousa. Para tanto, será necessário remontar certospassos da operação historiográfica7, que a transformou em documento histórico no decorrer doséculo XIX.***Gabriel S. de Sousa é, hoje, o nome mais citado pela historiografia brasileira entre osautores que se enquadram, de uma forma ou de outra, na chamada literatura de viagens doséculo XVI. Seu relato foi apresentado em 1587, havendo dele várias cópias manuscritas, nasua maior parte anônimas8. Esta ausência de identificação autoral permite, no entanto, que seacompanhe um pouco mais de perto a evolução do manuscrito do século XVI até a obraidentificada como de Gabriel S. de Sousa no século XIX. Os exemplos de Robert Southey,Manoel Ayres de Cazal, Karl von Martius, Ferdinand Denis e de F. A. de Varnhagen sãosignificativos para se seguir o rastro do relato.Robert Southey, na sua obra History of Brazil, publicada na Inglaterra entre 1810 e1819, utiliza um exemplar anônimo do manuscrito, ao qual faz referência constante ao longo dosegundo capítulo do primeiro volume, onde descreve os índios do século XVI. É em uma notaexplicativa que o historiador inglês define a importância do relato que ele está seguindo:

When Jan de Laet wrote, the Tupiniquins were ad summum paucitatemredacti. He says, the had been of all the Savages the most irreligious, the mostobstinate, and the most vindictive. This is indirect contradiction to the character giventhem by the Author of the Noticias, who is better, as well as elder authority, becausehe wrote from what he had seen and learnt in the country.

Quando Jan de Laet escreveu, os tupiniquins eram ad summum paucitatemredigir. Ele diz que tinha sido de todos os selvagens o mais irreligioso, o maisobstinado e o mais vingativo. Esta é uma contradição indireta ao caráter dadoeles pelo Autor das Noticias, que é melhor, bem como autoridade mais velha, porqueescreveu a partir do que viu e aprendeu no país.
[Página 2]

Para Southey, o princípio que rege, diferencia e valida um relato cujo autor édesconhecido é, paradoxalmente, a autópsia. O fato de considerar o texto como sendo umescrito anônimo esta amplamente compensado pelo nível das informações e pela objetividadedo sujeito que narra. O anonimato não impede o autor de ter realmente existido.O padre Cazal, ao contrário, tem dúvidas sobre o autor do manuscrito. Em umcomentário crítico sobre o relato, que mais tarde foi atribuido a G. Soares de Sousa, Cazal,também em uma nota de pé de página, afirma que:Francisco da Cunha, ou qualquer que he o Author do MS. intitulado :Descripção Geografica d’America Portugueza, escrita em quinhentos oitenta e sete,diz que Gonçalo Coelho fôra o primeiro explorador da Costa Brazilica (depois deCabral, e Lemos); mas não nos declara em que anno10.E na nota seguinte conclui:A razão, porque cuido ser o mencionado MS. de Francisco da Cunha, he pordizer o Author da Justificação referida, que aquelle fizera um Roteiro da CostaBrazilica por ordem de Dom Christovam de Moura : e uma das duas copias, que vi, eque não passa da primeira parte, (e não me lembro se toda) traz uma Dedicatoriaàquele Fidalgo, datada em Corte de Madrid, no principio de Março de quinhentosoitenta e sete. Esta Dedicatoria falta na copia do que existe na Real Biblioteca, e quehe muito maior11.Os comentários de Cazal não somente atribuem a qualidade de autor do manuscrito aFrancisco da Cunha, a partir, é verdade, de uma conjunção de fatores um pouco exagerados,mas também demonstram que ele exerceu uma certa influência sobre outros autores, mesmose para o padre o exemplo tenha sido negativo. O texto, hoje de Gabriel S. de Sousa, ficouquase três séculos entre o anonimato ou a ignorância de seu verdadeiro autor, entretanto, eleproduziu efeitos: tinha, portanto, conteúdo.Nesta mesma perspectiva, o testemunho de Martius é significativo. O viajantenaturalista cita o manuscrito na introdução de sua obra Herbarium Florae Brasiliensis, impressoem Munique em 1837, e o coloca entre aqueles que se ocuparam da flora brasileira. Na suaopinião, o autor poderia ser Francisco da Cunha. Em um outro trabalho, Martius refere-se aorelato dizendo que: «Num dos mais antigos documentos portugueses do século XVI, nãoexistem enumerados mais do que três povos, entre os quais, os tupis são divididos em novetribos». E ainda em uma nota explicativa sobre a própria natureza da fonte deste dado eleacrescenta: «Noticia do Brasil, descrição verdadeira da costa daquele Estado, que pertence àCoroa do reino de Portugal, feita por seu autor desconhecido, mas que depois foi verificado serGaspar Soares de Lisboa»12. Enfim, as divergências acerca da identificação do autor sãoinsuficientes para desqualificar as informações que o manuscrito contém. Martius teve aoportunidade, no entanto, de fazer uma última e definitiva correção:Neste agrupamento de nomes das plantas, em língua tupi, era necessárioreportar-se às primitivas fontes históricas. Entre as acessíveis para mim, está emprimeiro lugar a Notícia do Brasil, escrita nos últimos decênios do século XVI, porGabriel S. de Sousa, conforme demonstrou Adolfo Varnhagen. Bem que os escritosde Léry e Thevet sejam mais antigos do que aquele documento, não se podemcomparar, na abundância e clareza das informações, com a Notícias do Brasil .13Neste livro, que data da primeira metade do século XIX, não somente não há maisdúvida sobre o autor do manuscrito, como ele já apresenta um estatuto no campohistoriográfico: ele é uma fonte histórica importante. E quem fala possui a autoridade de umcientista, de um viajante naturalista que, entre outras coisas, havia redigido a monografia [Página 3]
*“Quando um manuscrito torna-se fonte histórica: As marcas de verdade no relato de Gabriel Soares de Sousa (1587)”. Ensaio sobre uma operação historiográfica, Temístocles Cezar

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