A Bahia de Todos os Santos foi minuciosamente descrita por Gabriel Soares de Souza“estará bem empregado todo o cuidado que Sua Majestade mandar Ter d’este novo reino; pois está para edificar nele um grande império, o qual com pouca despesa destes reinos se fará tão soberano que seja um dos Estados do mundo..” – Gabriel Soares de Sousa – Tratado Descritivo do Brasil em 1587
Foi uma carta enviada pelo seu irmão João Coelho de Souza, mensagem de um moribundo vinda lá dos fundões da Bahia, que fez com que Gabriel Soares de Souza se assanhasse por também em meter-se no sertão. A missiva chegara por um pessoa de confiança. Mencionava vestígios de ouro e até de diamantes que o desbravador encontrara em suas andanças de três anos pelos rios e selvas do Brasil. Gabriel incendiou-se. Largou sua fazenda à beira do rio Jequiriçá no Recôncavo – onde desde 1567 se estabelecera “com escravos, carro de boi e éguas, …além de índios forros”-, e foi-se a brigar com a burocracia do rei lá em Madri (era a época do Domínio Filipino) atrás de concessões. Apresentou-se como herdeiro do falecido.
Pediu “índios flecheiros, mercês e foros de fidalguia” para ele e para quatro dos seus cunhados que o acompanhariam na expedição, e até uma requisição para tirar da cadeia gente que tivesse alguma serventia para a bandeira. Quase enlouqueceram o pobre homem com as protelações e dilações, mas por fim arrancou deles o que precisava. Até um titulo pomposo de “capitão-mor e governador da conquista e descobrimento do Rio São Francisco” arranjou. Hei-lo de volta ao Brasil em 1591. Deu azar. A urca em que vinha naufragou na embocadura do Vaza-barris. Num nada viu-se “governando” um pedaço de areia da praia do Sergipe.
Gabriel Soares devia ser bom de conversa. Ao alcançar Salvador, convenceu o governador a arrumar-lhe os necessários para a grande aventura. Queria descer o Rio São Francisco até as suas cabeceiras, seguindo o roteiro deixado pelo irmão porque sabia que lá encontraria coisa grossa Mas ele não era só de conversa. Gabriel talvez fosse um dos reinóis mais qualificados para alcançar tal sucesso. Uns anos antes, em 1587, ainda em Madri, na espera, registrara cuidadosamente num enorme calhamaço – que Varnhagem depois numa edição exemplar, dividiu em 20 títulos e 196 sub-capítulos -, tudo o que vira, sabia ou ouvira dizer num Tratado Descritivo do Brasil (que apesar de circular em Lisboa desde 1599, com o título de “Notícia do Brasil”, só o publicaram em 1825). Inspirou-o, superando-o de longe, a “História” de Pêro Magalhães de Gândavo, quem por primeiro registrara algo mais alentado sobre as terras descobertas.
No enciclopédico “Tratado”, Gabriel Soares nos conduz a um detalhado e maravilhoso passeio por aquele Brasil dos primórdios. Tendo como ponto de partida os acidentes mais setentrionais da costa brasileira, estendeu-se do Rio Amazonas até o Rio da Prata. Em meio a isso tudo nos conta as histórias dos tupinambas, dos tapuias, dos potiguares e de tantas outras tribos mais. O que comiam, como pescavam e de que como caçavam ou combatiam, das canoas e jangadas que faziam. Fala-nos da mandioca, do milho, dos legumes, da pimenta e dos cajus, dos mamões e dos jaracatéas, dos insetos, dos anfíbios, das jibóias e dos bugios. Homem do seu tempo, Gabriel Soares também deixou-se embalar pelas história fantásticas, de índios assombrados, entre outras por aquela que relatava as maldades do Upupiara, o homem marinho, o terror do Recôncavo, meio bicho, meio peixe, que saltava das profundezas dos rios e abocanhava quem estivesse em suas margens. Diz Gabriel que cinco escravos índios seus sumiram assim. Num outro ataque, o único que se salvou ficou tão “assombrado que esteve para morrer”. Foi enfático também o autor, na luta dos portugueses em dominar aquele mundo bravio, imenso e doido. Todos os historiadores do Brasil que se seguiram, como Frei Vicente de Salvador ou Robert Southley, beberam em suas páginas.O Upupiara, o monstro do RecôncavoGabriel Soares queria mesmo era chamar a atenção de El-Rei da Espanha para “os grandes merecimentos” que o novo mundo deveria ter da Coroa, alertando-o para o fato de que “se os estrangeiros se apoderarem desta terra, custará muito lançá-los fora dela”. Impressionou-se em Lisboa, e em Madri, como os funcionários da Corte não tinham idéia da dimensão e da vastidão do Brasil. É uma “costa de mil léguas” enfatizou, de “terra quase toda muito fértil, mui sadia, fresca e lavada de bons ares, e regada de frescas e frias águas”, e que além de ” ferro, aço, cobre, ouro ,esmeralda, cristal e muito salitre”, tem “mais quantidade de madeira que nenhuma parte do mundo”. Era impossível que não percebessem a magnitude do que ele vira nos seus 17 anos de Brasil.Dito isso, apetrechou-se de carnes e farinhas e rumou com a bandeira para o sertão. Saiu do Recôncavo pelas margens do Rio Paraguaçú. Das cabeceiras deste, quase uns 600 quilômetros ao sul da Bahia, até chegar ao Rio São Francisco mais adentro, ainda teria que percorrer a pé uns 250 quilômetros de serras e matas virgens. Desafiando as febres, as pragas, as cobras, e os morcegos que devastaram a animália, fundou arraiais pelo caminho. Supõe-se que Gabriel Soares sucumbiu, ele e Aracy, o seu índio guia, bem próximo à paragem onde o irmão morrera sete anos antes.A abundância e variedade da pesca nativa, sempre impressionou Gabriel Soares de SouzaMatou-o a exaustão. Ele que manifestara em testamento o desejo de ser sepultado com o “hábito de São Bento”, no mosteiro da ordem em Salvador, dando-se ao exagero de recomendar “150 missas rezadas e 15 cantada” para o sossego da sua alma pecadora, foi, supõe-se, inumado às pressas numa cova anônima cercada pelos matos baianos. Gabriel Soares estava no sentido certo. Um século depois da sua malfadada aventura, outros, vindos de outros caminhos, deram com as pepitas douradas e com os belos diamantes das Minas Gerais, como também ele acertara em prever que o Brasil se tornaria ” um grande império”.