De que estamos falando? Antigos conceitos e modernos anacronismos – escravidão e mestiçagens, 2015. Eduardo França Paiva, Manuel F. Fernández Chaves e Rafael M. Pérez García (orgs.) - 01/01/2015 de ( registros)
De que estamos falando? Antigos conceitos e modernos anacronismos – escravidão e mestiçagens, 2015. Eduardo França Paiva, Manuel F. Fernández Chaves e Rafael M. Pérez García (orgs.)
2015. Há 9 anos
brancos, que geralmente não eram inventariados, como abordaremos adiante.Num mundo moldado por relações familiares, a posse de índios era tambémuma questão de domínio familiar, muito diferente da noção de propriedadeprivada de nossos dias. Doar e/ou partilhar, em inventários e testamentos, índiosforros às gerações seguintes pressupõe a certeza na continuidade do domíniofamiliar sobre tais índios.
Tamoios, pés largos, tapanhunos e outras qualidades de peças escravas
Certos índios, mormente os frutos da guerra, eram escravos, e a justificativa para sua escravização frequentemente era a guerra, e assim era importante marcar a diferença entre quem era ou não escravo. A moça Maria “mulata, filha de uma negra tupioaem e de tapanhum, por isso não se avaliou por ser forra”, como consta no inventário de João de Santana, de 1612.433
No mesmo inventário se disse “que estava uma negra em Pirapetinguy por nome Paula de nação carijó, escrava do tempo da guerra de Jerônimo Leitão, que por os avaliadores já a conhecerem a avaliaram” em 12 mil réis (grifos nossos).
Índio forro e índio escravo nomeados eram distinguidos naquela sociedade porqueos paulistas conheciam suas gentes. Sabiam, por uso e costume, e conhecimento,quem era ou não escravo ou forro e quem devia ou não entrar e de que modonos inventários.A que índios escravos eles se referiam? Em primeiro lugar, lembramos quelidamos com os índios presentes ou mencionados em inventários, dentro daordem vigente ou em contato com os paulistas no momento posterior à mortedos senhores. Não é o caso aqui de, apenas, aludirmos às percepções que ospaulistas tinham sobre os diferentes índios, mas nossa maior intenção é a derealçar que os índios ora analisados serem apenas os do contato.Nesses termos, embora poucos, os índios mencionados com valor nãoeram quaisquer índios, e ao observar determinadas qualidades deles notamosaspectos importantes sobre o conjunto dos índios, por comparação, inclusivecom filhos de brancos e com bastardos. Dessa maneira, no inventário de bensde Martim Rodrigues, de 1612, vê-se uma “negra por nome Guaya digo da nação Guoaya que diz ser escrava da entrada de Domingos Rodrigues de Paraupavacom 3 filhos”, todos os quatro, listados no item peças, foram avaliados em 22mil réis.434 Ainda nesse inventário, que contava com 34 índios, estão, imediatamente depois da negra, as peças tememinós, dentre as quais uma “negra pornome Genebra de nação tamoia com uma criança”, de 27 mil réis, e um “rapazpor nome Casao tamoio”, de 20 mil réis. Os outros tememinós eram sem valor,diferente dos tememinós tamoios. Salvo os tamoios e a negra do Guoaya, osdemais 27 índios, inclusos entre os tememinós e as peças que se acharam vivas,não receberam avaliação monetária, incluindo um “moço por nome Pedro quedisseram ser filho do defunto Martim Rodrigues”, o inventariado. O escrivãoSimão Borges sabia muito bem quem podia ou não ser descrito com valor, comoescravo. O filho do senhor não era escravo, como o próprio Martim Rodriguesafirmara em seu testamento de 1603, feito em pleno sertão às margens do rioParacatu. Ainda que em meio aos perigos do sertão, não estava doente à beira da morte, mas “são e de saúde e em todo o [seu] siso e juízo perfeito”. Noentanto, para “desencargo de [sua] consciência”, declarava possuir dois filhosbastardos que os houve no sertão”, um de nome Diogo e o outro, infelizmente,ilegível na fonte, mas muito provavelmente o tal Pedro descrito no inventário.Sobre o filho Diogo, Martim afirma que ele e sua mulher, Suzana Rodrigues(de pai desconhecido, provavelmente descendente de índio), o forraram “emcomunidade”, de comum acordo.A par do estado da documentação, sabe-se que para Diogo o documentotraz referências a “notas do tabelião Antônio Rodrigues”. Teria sido a alforriaregistrada em cartório? Não sabemos, mas Martim Rodrigues tinha muitapreocupação com os “dois meninos (...) filhos bastardos”, e pediu a sua mulherque ficasse curadora das crianças. Se Suzana não quisesse, ficaria a cargo deseu genro, que também os ensinaria a “ler e escrever”, e “alguns outros ofíciosque lhe parecer bem”. Sua terça, depois de cumpridos os legados, deveria serrepartida por “ambos irmãmente de permeio”. De fato, os filhos do senhor nãoeram escravos. Eram parentes, ainda que um deles tenha sido arrolado no inventário do pai, mas não como escravo. Filhos bastardos não necessariamente [*De que estamos falando? Antigos conceitos e modernos anacronismos – escravidão e mestiçagens, 2015. Eduardo França Paiva, Manuel F. Fernández Chaves e Rafael M. Pérez García (orgs.). Páginas 193 e 194]