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O encontro entre os guarani e os jesuítas na Província do Paraguai e o glorioso martírio do venerável padre Roque González nas tierras de Ñezú, 2010. Paulo Rogério Melo de Oliveira
2010. Há 14 anos
No início do século XVII os religiosos da ordem fundada por Inácio de Loyolachegaram à recém criada Província Jesuítica do Paraguai para dar prosseguimento aoprojeto de catequização dos indígenas da bacia do Prata, iniciado no final do século XVI. Aárvore inaciana alcançava o último rincón del globo.359 As manifestações, ora de apoio orade repúdio, que os missionários receberam das chefias indígenas guardam uma íntimarelação com o modo como os extensos territórios da região platina foram percorridos,mapeados e posteriormente ocupados e subjugados pelos conquistadores espanhóis nasdécadas anteriores.Os territórios que passaram a compor a Província Jesuítica do Paraguaiencontravam-se no fim do século XVI e início do XVII afastados dos centros coloniais eainda eram bastante desconhecidos dos espanhóis. A conquista limitara-se nestas áreas aalgumas investidas e a fundação de vilas esparsas, parcamente povoadas, que funcionavamcomo pontas de lança da conquista e ocupação dos espaços. Ao contrário de outras regiõesde exploração colonial como o Peru e a Bolívia, cuja conquista foi consolidada no séculoXVI, estes vastos territórios foram sendo ocupados tardia e lentamente. Sem atrativoseconômicos imediatos e povoados por inúmeras nações indígenas, muitas vezes hostis aosconquistadores, a ocupação foi realizada sem planejamento estratégico e em alguns casosde maneira acidental.

Limitou-se a alguns poucos núcleos de povoamento estáveis derivados de fortificações fundadas por conquistadores que, desde a malograda expedição de Juan Diaz de Solís, exploravam a costa leste do atlântico sul e internavam-se no continente pelo rio da Prata em busca da “Sierra de la Plata”.

Sobreviventes da expedição de Solís, naufragados na ilha de Santa Catarina em 1516, foram encontrados dez anos depois pela expedição capitaneada por Giovani Caboto. Um membro da expedição conhecido como Luis Ramírez, numa carta escrita ao seu pai em 1528, descreveu este encontro e os relatos insistentes que ouviram dos náufragos sobre uma “sierra” onde havia “mucho oro y plata”. Enrique Montes, um dos sobreviventes, foi ao encontro da nau do capitão para contar como havia ficado ali na ilha e: También la gran riqueza que en aquel rio donde mataron a su capitan (...) Y era que si le queríamos seguir, que nos cargaría las naos de oro y plata, porque estaba cierto que entrando por el Rio de Solís (Rio da Prata) iríamos a dar en un rio que llaman Paraná, el qual es muy caudalosísimo y entre dentro en este de Solís (...) Y que entrando por este dicho río arriba no tênia en mucho cargar las naos de oro y plata. 360

Melchor Ramírez, outro sobrevivente, que disse ter estado no “Rio de Solís” como“lengua”, informou que “junto a la dicha sierra había un rey blanco que traía vestidos como nosostros”. Disse também que não havia chegado às ditas “minas”, mas que mantevecontatos com “índios comarcanos a la sierra, y que traían en las cabezas unas coronas deplata y unas planchas de oro colgadas de los pescuezos y orejas (...).”361 Começava ali uma busca persistente pelas ditas serras que mobilizou pelo menos três grandes expedições,milhares de homens e uma exploração de mais de vinte anos pelos rios Paraná, Paraguai e oChaco. No rastro destas explorações, pontilhadas por batalhas duríssimas contra os gruposindígenas e contra a fome, foram erguidas fortificações de madeira do estuário do Prata aoParaguai, das quais originaram-se cidades como Assunção e Buenos Aires. Depois de três meses e meio, impressionados pelos relatos surpreendentes, a armada de Caboto deixou a ilha de Santa Catarina e seguiu em direção ao “Río de Solís”, abandonando o objetivo principal da viagem que lhe fora encomendada pela coroa de Espanha.

Na confluência dos rios Carcaraná e Paraná conheceram os índios “quirandíes”, “gente muy ligera, que deram muy buena relación de la sierra y del Rey blanco.”362 Subindo o Paraná, que conforme os relatos os levariam as “sierras” riquíssimas, alcançarama terra dos guarani.

A carta de Luís Ramírez é o primeiro relato do Novo Mundo sobre este grupo. Na ilha de Santa Catarina Ramírez já ouvira dos náufragos um relato sobre estes índios, que teriam matado seus companheiros quando retornavam carregados de metal de uma jornada a pé das “sierras”. A expedição de Caboto manteve boas relações com os guarani. Atento aos indícios de “oro y plata”, o cronista deixou uma breve relação desta nação guerreira:

Aqui con nosotros está outra generación que son nuestros amigos, los cuales se llaman guarenís y por outro nonbre chandris. Estos andan derramados por esta tierra y por otras muchas, como corsários, a causa de ser enemigos de todas estas otras naciones y de otras muchas que adelante diré. Son gente muy traidora, todo lo que hacen es contraición. Estos señorean gran parte de esta Índia y confinan con losque habitan em la sierra. Estos traen mucho metal de oro y plata enmuchas planchas y orejeras y en achas, con que cortan la montañapara senbrar. Estos comen carne humana. 363

Segundo Ramírez, Caboto ouviu dos quirandíes histórias sobre uma geração de homens disformes “conquien ell os contratan, que de la rodill a abajo que tienen los pies de avestruz. Y también dijeron de otrasgeneraciones extrañas a nuestra natura, lo cual yo por parezer cosa de fabula, no lo escribo. Estos nos dijeronque de la otra parte de la sierra confinaba la mar, y según decían, crecía y menguaba mucho y muy súbito. Ysegún la relación que dan, el señor capitán general piensa que es la Mar del Sur; y a ser así no menos tieneeste descubrimiento que el de la Sierra de la Plata, por el gran servicio que Su Majestad en ello recibirá”.Idem. p. 50.

Caboto retornou à Espanha sem encontrar a “Sierra de la Plata”. A certa altura dorio Paraguay foi forçado por um ataque dos “chandules” contra alguns de seus homens aretornar ao Rio da Prata. Julgou estar próximo da “sierra” cerca de “vinte léguas”, segundoRamírez. Enviou o tenente Hernando Calderón à Espanha para dar conta ao rei da viagem eda “gran riqueza de la tierra”. Hernando levou “muy buenas mostras de oro y plata destatierra”, e só não levou mais porque “el señor capitán general no quiso rescatar por no dar aentender a los índios que teníamos codicia de su metal”.364 A viagem de Caboto fracassoupor não alcançar a Especiaria do Pacífico, mas confirmou os murmúrios sobre a “sierra dela plata” enviando à Espanha sinais inequívocos de sua existência. Navegando peloParaguai acima, a expedição confirmou também o Paraguai como terra de passagem para sechegar aos esplêndidos domínios do “Rey blanco”. Outras expedições cruzariam estasterras perseguindo o sonho de Caboto.

Em 1535 uma poderosa armada chefiada por Pedro Mendoza, e financiada em parte por banqueiros alemães, partiu da Espanha com 14 navios no rastro da armada de Caboto. Investido do título de “adelantado”, e acompanhado por um grande número de soldados e nobres, Mendoza chegou ao Rio da Prata em 1536. O soldado e cronista Ulrico Schmidl,que vinha na armada, narrou em prosa despretensiosa e franca as desventuras e os sucessos do empreendimento. [O encontro entre os guarani e os jesuítas na Província do Paraguai e o glorioso martírio do venerável padre Roque González nas tierras de Ñezú, 2010. Paulo Rogério Melo de Oliveira. Páginas 161, 162 e 163]

inimigos. Na margem ocidental, espalhados pelo Chaco, habitavam os temidos grupos deguerreiros-caçadores guaycuru que atravessavam estes espaços sem se prender a umdeterminado lugar. Nesta região viviam também os hábeis canoeiros payaguá ou agaces.457Parte desta vasta área, coberta por florestas de araucárias e com grandes espaços de camposabertos, era habitada por grupos de caçadores-coletores conhecidos por kaingang e xokleng.Na parte mais ao sul viviam os charrua e os minuano.458

Os guarani eram caçadores e coletores, mas eram também semeadores em constante movimentação no espaço em busca de melhores terras. Praticavam uma horticultura itinerante e exploravam habilmente as terras de florestas, derrubando e queimando árvores para plantar o milho, a mandioca, legumes e outras culturas. Esta particularidade, que os diferenciava das outras etnias que viviam basicamente da caça e da pesca, foi destacada pelos primeiros cronistas:

Ulrico Schmidl (1510-1579) exaltou a “gracia divina” por terem encontrado entre os “Carios o Guaraníes (...) trigo turco o maíz y mandiotín, batatas, mandioca-poropí, mandioca-pepirá, maní, bocaja y otros alimentos más, también pescado y carne, venados, puercos del monte, avestruces, ovejas índias, conejos, gallinas y gansos y otras salvajinas (...) También hay en divina abundancia la miedl de la cual se hace el vino; tiene también muchísimo algodón em el país.”459

Esses dados permitem um bom contraponto com as teses de Cardiel e Pablo Hernández. O guarani incapaz de semear e colher pensando no futuro salvou da fome com suas lavouras e reservas de alimento os numerosos exércitos espanhóis, e os abasteceu por quase trinta anos.460

Uma das hipóteses sobre um possível centro de origem dos povos tupi aponta para aAmazônia central. A hipótese está ancorada no “modelo cardíaco” de Donald Lathrap, de [O encontro entre os guarani e os jesuítas na Província do Paraguai e o glorioso martírio do venerável padre Roque González nas tierras de Ñezú, 2010. Paulo Rogério Melo de Oliveira. Página 202]

A Terra Sem Mal e o Messianismo Guarani

Os trabalhos etnográficos e lingüísticos desenvolvidos a partir do início do século XX - desde as pesquisas pioneiras de Curt Nimuendajú (1883-1943) entre os apapocúva, aos estudos mais sistemáticos de Alfred Métraux (1902-1963), Egon Francisco Willibald Schaden (1913-1991) e Léon Cadogan (1899-1973) que cruzam pesquisas etnográficas com leituras mais apuradas das fontes coloniais - tem possibilitado uma maior aproximação do “modo de ser” guarani.

A relativa conservação entre os guarani atuais de alguns traços fundamentais do seu “modo de ser” como o “profundo senso de identidade” e o “discurso profético”472 tem facilitado os estudos comparativos e o preenchimento de lacunas existentes na documentação referentes aos século XVI e XVII.

No entanto, alguns problemas metodológicos resultantes da projeção de informações colhidas entre os guarani modernos para explicar os guarani do passado vem sendo observados por etnólogos, etno-historiadores e arqueólogos. Primeiro: a não observância das grandes alterações provocadas pela conquista/colonização e pela evangelização no modo de vida dos povos indígenas. Segundo: os dados etnográficos colhidos no século XX determinam a leitura das fontes coloniais. O caso mais notável talvez seja o da busca pela terra sem mal.

Dos guarani ou carios descritos por Luís Ramírez aos guarani apapocúva etnografados por Nimuendaju vai uma grande distância. O ethos guerreiro e a antropofagia daqueles horticultores das cabeceiras do Paraguai estão muito distantes daquele povo místico que caminhava na direção do mar em busca da terra sem mal, guiado pelo velhopajé Guyrapaijú, que Curt Unkel encontrou em 1907 no oeste de São Paulo. Além disso, a brutal queda da densidade demográfica e a redução dramática da área de mobilidade, adesarticulação do complexo político e militar e as marcas profundas deixadas pelasexperiências missionárias e reducionais, são algumas das mudanças de grande impacto quese colocam entre os guarani de Ramírez e Ulrico Schmidl e os de Curt Unkel. As projeçõesretrospectivas, como demonstrou Anna Roosevelt para o caso da Amazônia, que projetam opresente etnográfico para os tempos da conquista, parecem supor que “o padrão básico domodo de vida indígena” não sofreu alterações significativas.473 No entanto, como jásalientou John Monteiro, dois aspectos centrais ao “modo de ser” guarani como a guerra e ocanibalismo, tão destacados nos cronistas do século XVI, desapareceram sob o efeito docristianismo e da colonização.474

Ao longo de quatro conturbados séculos, repletos de experiências trágicas, evidentemente, muita coisa se perdeu, muita coisa se adquiriu, outras tantas se mesclaram. Se a antropofagia ritual foi abandonada, as migrações realizadas de tempos em tempos se mantiveram como traço distintivo do guarani.

Ulrico Schimdl percebeu que “los sobredichos Carios migran más lejos que ninguna nación que está en esta tierra en Rio de la Plata (...)”.475 Nimuendaju encontrou os m’bya em 1921, num pântano às margens do Tietê, a treze quilômetros de São Paulo, em meio a uma dramática migração. Miseráveis e extenuados tentavam chegar ao mar para seguir viagem em direção ao leste. Não conseguindo demovê-los da jornada, o etnólogo juntou-se ao grupo.

A chegada ao mar foi uma dura decepção. Os m’bya nunca haviam visto o mar. Diante da imensidão, o grupo se deparou com uma terrível realidade: o acesso à “terra onde não mais se morre” era bem mais difícil do que imaginavam.476 O guarani do século XVI migrava, o do começo do [O encontro entre os guarani e os jesuítas na Província do Paraguai e o glorioso martírio do venerável padre Roque González nas tierras de Ñezú, 2010. Paulo Rogério Melo de Oliveira. Páginas 207 e 208]

Indígenas e espanhóis nos primeiros tempos da conquista do Paraguai. 499Uma grande variedade de povos indígenas, receptivos ou hostis à presença dosespanhóis, habitava os vastos territórios interligados pelos rios Paraná e Paraguai no séculoXVI.

As crônicas de Luís Ramírez, Ulrico Schimdl, Cabeza de Vaca e os Anais de Ruiz Guzmán, que cobrem os 30 anos iniciais da conquista espanhola, são abundantes em informações sobre os grupos que viviam desde as margens ocidentais da foz do Prata, na altura de Buenos Aires, até as planícies alagadiças do Chaco. Embora os nomes não nos soem familiares em alguns casos, e alguns grupos mencionados tenham desaparecido, o mapa étnico deixado pelos cronistas é valioso para o conhecimento do sistema Paraná-Paraguai pré-colonial. Nos arredores do forte de Buenos Aires, na embocadura do Paraná, viviam os velozes “querandíes”, que se alimentavam de “pescado y carne”; seguindo o curso do rio Paraná achavam-se os timbúes, que comiam apenas pescado y carne e usavam uma pequena estrela no nariz feita com pedra branca e azul; às margens do Paraná viviam ainda os corondás, os quiloazas, os mocoretás e os chanáes, que são bajos y no tienen outra cosa para comer que carne y miel; os guerreiros guarani, ou “carios”, comedores de gente einimigos de todos os outros povos, viviam na confluência dos rios Paraná e Paraguai; no rioParaguai encontravam-se os “agaces” ou payaguá, excelentes guerreiros sobre canoas;próximos dos agaces viviam os numerosos mapenis; os temidos guaycuru viviam nas ribeiras do Paraguai, nas proximidades de assunção. São estes os povos com os quais osconquistadores mantiveram maiores contatos.

Na parte anterior, intitulada margem cristã, esbocei um quadro da ocupação européia do Rio da Prata, como olhar mais atento para a região de Assunção. Retorno ao tema para explorar as relações entre indígenas e espanhóis, com a atenção voltada para as culturas indígenas distribuídas na região.

Considero o mapeamento das relações entre espanhóis e indígenas nos primeiros tempos da conquista do Rio da Prata indispensável para entender o projeto colonial de pacificação e evangelização do final do século XVI e início do XVII, e mais indispensável ainda para entender as relações que os indígenas – por meio dos caciques e pajés -estabeleceram com os jesuítas.

Afinal, os missionários que adentraram as terras indígenas partiram de Assunção e muitos deles eram espanhóis, outros eram filhos dos conquistadores nascidos na cidade. Roque González, filho de um conquistador e nascido em Assunção, foi recebido com muita desconfiança em várias regiões e em outras chegou a ser chamado de espião dos espanhóis. Antes dos franciscanos e dos jesuítas iniciarem seus trabalhos apostólicos, os espanhóis já percorriam e ocupavam estas terras há pelo menos oitenta anos. As guerras, as alianças militares, a exploração da mão-de-obra, as mestiçagens e as duras quedas demográficas alteraram significativamente a distribuição dos grupos indígenas no espaço e as suas formas de organização política. Os guarani do tempo de Roque González já não eram os mesmos do tempo de Luis Ramírez. Eles já haviam passado por diversas experiências com os espanhóis que, certamente, condicionaram as respostas que deram a chegada dos jesuítas. Daí a importância de conhecer este cenário histórico antes da entrada em cena dos missionários. [O encontro entre os guarani e os jesuítas na Província do Paraguai e o glorioso martírio do venerável padre Roque González nas tierras de Ñezú, 2010. Paulo Rogério Melo de Oliveira. Página 219]

Egon Schaden, que realizou pesquisas entre diversos grupos de idioma guarani,como os kayová, os ñandeva e os m´biá de diversas partes do Brasil entre meados dadécada de 1940 e de 1950, não deixou dúvidas ao afirmar que “em nenhuma parte, asociedade guarani contemporânea chegou a constituir organização de tipo estatal (...).”Apesar das diferenças e da distância que separam os guarani do século XX dos guarani dosséculos XVI e XVII, esta observação é válida também para os tempos coloniais. Em nenhum momento, salvo em tempos de guerra em que diversos grupos poderiam submeterse temporariamente a chefia de um cacique principal, os guarani reconheceram algum tipo de poder central. Cada parcialidade, independente das parcialidades vizinhas, tinha a sua frente um chefe ou cacique reconhecido no grupo e fora dele. Vivian gobernados por sus caciques en pueblecitos de paja, registrou Cardiel.555 Essa parece ter sido a organização social elementar entre esses povos. Mas em alguns relatos, o prestígio e a influência de alguns caciques ultrapassam os limites dos pueblecitos .

Numa carta de 1633 Diogo Ferrer informou ao padre provincial que:

Todos estos Itatines reconocen a un cacique que se llama Ñanduabuçu como a principal de todos, el qual dize que todos los indios guaranis que ay desde la ciudad de la Assunpcion para aca son todos sus básalos y aun los indios que estan adelante de la dicha ciudad que corre cerca de ciento y cinquenta leguas.556

Todos esses Itatines reconhecem um cacique chamado Ñanduabuçu como o principal de todos, que diz que todos os índios Guarani que oh da cidade de Assunção até aqui estão todos os seus basalos e até os índios que estão à frente da dita cidade que corre cerca de cem e cinquenta léguas

Embora não existam evidências nos relatos dos missionários do exercício de umpoder absoluto, como pretendeu Furlong, existem diversas passagens, como a do padreFerrer, que indicam que alguns caciques haviam estendido o seu poder sobre outroscaciques. Diego de Torres, na mesma carta em que reduziu a autoridade dos chefes aos tempos de guerra, relatou sobre um poderoso cacique do Paraná cuja autoridade eraexercida sobre amplos domínios:

han venido a visitarnos cinco Caciquez y entre ellos al afamado Cabaçamby aquien obedecen todos los caciquez del Rio como a su cacique mayor, como ellos mismos confiesan y ansi nos lo dixo el, que era Señor del Rio, y que su habla yria luego hasta el rio grande, y por todo el Uruguay hasta la mar para que todos estibiessen en su coraçon y despues com una arrogancia grande dixo no teman los padres que pues éllos me asseguran mi vida, y hacienda no se tiñiran las yerbas con su sangre, basta mi voz y el saber que yo les há venido a visitar y que soy de su parte para que ninguno se atreba a hacer les daño (...).557

O famoso Tayaoba, principal dos principais do Guairá, também reunia vários povossob o seu domínio. Montoya, ao relatar a primeira entrada que fez na província de Tayaoba,disse que este nombre fué de un principal cacique gobernador de muchos pueblos, del cualtomó toda aquella província el nombre.558 O prestígio do cacique era tão grande que suafama corria toda a região. Corrió la voz por todos nuestros pueblos de la venida deTayaoba, conta-mos Montoya, y á porfía iban de 30 y 40 leguas á verlo, maravillándose dever un hombre tan famoso.559

Por volta de 1618, no Paraná, Roque González recebeu uma junta de 400 índios, a frente dos quais estavam os seus caciques: Entre ellos venía el cacique más principal de este rio con grande acompañamiento de canoas que, puestas en ala en esta tabla del rio (...).560 As expressões o mais principal ou o principal dos principais são muito frequêntes nas cartas dos missionários.

O que nos leva a supor uma hierarquia entre os caciques. Embora cada aldeia estivesse sob o governo de um chefe, estes chefesestavam ligados a uma rede de poder e a caciques mais poderosos. De acordo com o padreRoque, o cacique principal que vinha a frente dos índios exercia sua autoridade sobre ospovos do Paraná, na região onde foi fundada a redução de Itapua.Em síntese, a documentação jesuítica, por um lado, limitou o poder dos caciques às aldeias em que viviam e aos povos que governavam, mas por outro lado, deu relevo a vários caciques como Arapizandú, Cabaçamby, Tayaoba, Ñezú, cujo poder extrapolava os marcos da aldeia e se derramava para outros povos. Eram chefes famosos e de grande reputação que se destacavam do grande número de caciques anônimos e de menor [O encontro entre os guarani e os jesuítas na Província do Paraguai e o glorioso martírio do venerável padre Roque González nas tierras de Ñezú, 2010. Paulo Rogério Melo de Oliveira. Páginas 247 e 248]

Ruiz de Montoya na cova dos leões. El que no ha gustado del manjar de trabajos por la conversion degentiles, no puede percebir el gusto de estas yerbas.Ruiz de Montoya.A extraordinária narrativa da entrada de Montoya na provincia de Tayaoba ilustraclaramente o que procurei demonstrar acima. Escolhi esta narrativa, entre tantas outras,pela riqueza de informações e por reunir vários dos temas que venho trabalhando: asestratégias de aproximação do missionário, as diferentes reações à sua presença, o poder e aira dos feiticeiros contra os missionários, o confronto entre caciques e feiticeiros e aretaguarda espanhola sempre pronta para auxiliar a conquista espiritual. Enfim, essanarrativa traz todas as facetas do encontro que venho tentando interpretar. Montoya narra em detalhes sua entrada na Província que levava o nome de umcacique principal, e que tinha infinita gente e era bien cerrada à entrada do evangelho.710Eram todos muito inclinados à guerra e exercitados en comer carne humana. Havia muitosfeiticeiros que se fingian dioses e enganavam a plebe: porque como la elocuencia de estoses extraordinária, la ordinária gente los venera (...). Na primeira entrada que fez naprovíncia, acompanhado de alguns índios, Montoya foi perseguido por um grandehechicero, que vinha acompanhado de oito caciques. O feiticeiro, depois de ouvir apregação, acusou Montoya de mentiroso e saiu em busca das armas para matá-lo. Naespetacular perseguição que se seguiu, sete índios que estavam com o padre foram mortos eMontoya só conseguiu escapar porque um dos índios vestiu as suas roupas e saiu emdisparada pelo mato, confundindo os perseguidores. Montoya foi resgatado por índios amigos, mas perdeu seus ornamentos, que foram entregues de presente a un gran mago, áquien reconocian vasallaje. Mas Montoya não se deu por vencido, e preparou-se para hacer outroacometimiento á aquel alcázar tan pertrechado de ardiles de demônios, y fortificado contantos ministros suyos. Pareceu-lhe que, nessa segunda entrada, que o melhor caminho seriaia ao encontro do gran cacique Tayaoba. Ganhando a confiança do cacique, tendría a losdemás de mi bando. Enquanto se preparava para ver Tayaoba, recebeu a visita de outrogrande cacique, que vinha acompanhado de mulher e dos filhos, o que segundo Montoyaera señal cierta de amistad. O cacique, provavelmente enviado por Tayaoba, não tirava osolhos de Montoya, e logo em seguida se explicou:Padre, no te espantes que con todo cuidado te mire, porque á eso metraz mi deseo, para ver por mis ojos si es verdad lo que los magos nospredican de vosotros, dicen, que sois diversos de los hombres, que soismonstruos, y que teneis cuernos en la cabeza, y que es vuestra fierezatanta, que vuestro comum sustento es carne humana, y que vuestromodo de proceder es intratable; este engano me há traído y este es elque há retardado al Tayaoba venir á verte, pero yo ire en breve y tetraeré sin falta.711 Se a fala atribuída ao cacique tem procedência, ela é reveladora da enormecuriosidade, e porque não temor, que os missionários exerciam sobre a imaginação dosíndios. Mas é reveladora também de uma disputa de poder que se anunciava com a simpleschegada dos padres. Se do lado jesuítico, os pajés eram demonizados e descritos de maneiranada lisongeira, do lado dos pajés os padres também eram pintados como criaturas terríveise monstruosas, como seres diversos e ameaçadores. Isso nos leva a crer que as notíciassobre a evangelização corriam o mundo indígena, e muito antes da entrada dos padres nasprovincias, os pajés, se antecipando a sua chegada, e os reconhecendo como inimigos,tratavam de difundir uma imagem assustadora para afastar os índios de sua influência. Mas voltemos às terras de Tayaoba. Poucos dias depois da visita do cacique, o velhoTayaoba apareceu com a mulher e mais quatro filhos. Corrió la voz por todos nuestrospueblos de la venida del Tayaoba, y á porfia iban de 30 y 40 leguas é verlo,maravillándose de ver un hombre tan famoso. Pouco depois Montoya já havia encontradoum lugar adequado para uma fundação erguido uma cruz nas terras do grande cacique e construído uma casa à sombra de uma árvore, com uma imagem da Conceição da Virgem.Mas o contentamento e a proteção de Tayaoba não foram suficientes para manter osfeiticeiros à distância. Antes que o cacique juntasse índios para a defesa do padre, umexército numeroso avançou sobre o pueblo. Segundo o conselho do próprio cacique,Montoya aproveitou a escuridão da noite, já que a guerra se daria pela manhã, para fugirpelos bosques espessos. Não sem antes batizar Tayaoba e sua gente. Os índio inimigosatacaram a casa do padre, e não o encontrando destruíram a imagem da Virgem que ficarapara trás. Ao amanhecer travou-se uma batalha e os índios que defendiam o padre saíram-sevencedores. Segundo Montoya, um dos caciques inimigos teria dito à suas mancebas quepor despojos de la guerra les llevaria muy buen pedazo do seu corpo para el convite de lavictoria. A notícia de que Montoya havia sido rechazado por duas vezes chegou en unpueblo español llamado Villa Rica. Julgando por poderosas sus armas para vengar taldesacato, y de camino salir cargados de índias y de muchachos para su servicio, que es elcomum interes de estas entradas, se apercebieron para la jornada. Montoya desceu à VilaRica e tentou de todas as formas impedir e entrada dos espanhóis na província de Tayaoba,temendo que ninguém saísse com vida. Mas foi infeliz no seu intento. Setenta espanhóis,com quinhentos indios amigos, marcharam para aquelas terras, onde foram supreendidospor ataques ferozes, chegando quase a bater em retirada. No meio dos combates umlamentável engano: sem o saber, Montoya comeu da carne de um índio amigo. Nuestrosindios amigos, assim narrou Montoya, hallaron unas grandes ollas de carne cocida conmaíz, de que me trajeron un platô, rogándome que comiese. Comí de ello juzgando seraquella carne de caza, pero á poço rato sacaron la cabeza, y los pies y manos cocidas deaquel niño que me cogieron. Depois de cinco dias de combates os inimigos, devido a umaestratégia do próprio Montoya, ficaram sem armas e abandonaram o campo de batalha. Osespanhóis voltaram à sua vila e Montoya ficou aguardando os índios para retomar ostrabalhos. Sin Duda quedaron ufanos los demônios en aquel alcázar señores absolutos deinmensidad de almas, victoriosos con Haber desterrado dos veces el sacro Evagelio. Nodesesperé, prossegue o incansável missionário, (...) invoqué el auxilio de los sieteArcángeles, príncipes de las milicia celeste. Com uma imagem dos arcanjos, colocada numa moldura, foi em procissão, acompanhado de trinta índios, para aqueles campos deonde foi expulso a alguns dias. A cruz que havia erguido foi queimada pelos índios, masuma outra foi colocada no lugar. Ergueram uma igrejinha, onde rezavam missa todos osdias, e ali ficaram á esperar la fúria de aquellos tigres. É nessa terceira tentativa deevangelizar a província de Tayaoba que entra em cena o famoso pajé Guiravera, el que másardia en furor y de comerme, escreveu Montoya. Primeiro o feiticeiro tentou impedir queos índios fossem ouvir o padre, depois decidiu ir pessoalmente visitá-lo. Essa é, em síntese, a narrativa de Montoya. Essas informações, que também foramutilizadas por Métraux e os Clastres, permitem algumas conclusões. Antes, vejamos o queHélène Clastres deduziu. “A história de Guiravera talvez nos esclareça ainda melhor oestado de conflito que opunha chefes e profetas nas sociedades guaranis”. Depois deapresentar a entrada de Montoya nas terras de Tayaoba, concluiu que o cacique “nãomanifestou a mínima veleidade de resistência à penetração jesuítica como, desde o começo,viu nos padres possíveis aliados contras os caraís.” O cacique aceitou o missionário emsuas terras “sem dúvidas, porque o poder do chefe de província já andava algoenfraquecido, enquanto o dos caraís tendia, pelo contrário, a firmar-se.” O episódio mostra,na visão de Hélène, uma profunda crise nas “sociedades guaranis”. O poder político tendiaà centralização, na medida em que os pajés, em detrimento dos caciques, reuniam asfunções religiosas e políticas.712 Na narrativa de Montoya, a única sobre esses acontecimentos, não é possível lernada disso. Destaca-se, ao contrário, o enorme poder e prestígio de Tayaoba. Em primeirolugar, é a presença do padre que instaura o conflito. A Província se divide diante datentativa de fundar ali uma redução. De um lado, alguns caciques, entre eles o principal,dispostos a colaborar com o padre; de outro, os feiticeiros, apoiados por outra parcela doscaciques, erguendo forte oposição às pretensões do padre. Nada sugere a existência de umconflito anterior, como quer Hélène Clastres, a opor caciques e pajés. Em segundo lugar, oapoio dos caciques ao estabelecimento das reduções em suas terras não era unânime. Comoocorreu com diversos missionários, nem todos os caciques queriam a sua presença. Por fim,vários caciques apoiaram as intenções de Guiravera, e dois deles acabaram enforcadospelos espanhóis. [Páginas 306, 307, 308 e 309]

Ao batizar os índios, o padre logo lhes atribuía um nome cristão. O caciqueGuarecupi, por exemplo, virou Santiago. Pajés e caciques audaciosos, que desafiaram ospadres, foram dobrados, alguns humilhados, convertidos e batizados com nomes cristãosbíblicos, como Zaguacary que virou João, Ayerobia que foi chamado de Bartolomeu, Tambavê, cúmplice na mortte do padre Roque, que virou Paulo e o famoso Tayaoba que foi batizado como Nicolau. Para os missionários o batismo e o nome cristão significavam o resgate da gentilidade e a inscrição no universo cristão. O não reconhecimento do “batismo” indígena era derivado da idéia de que “nada de definitivo estava inscrito” neles, de que eram página em branco e de que na América tudo estava por fazer. Daí o batismo ter se tornado o centro das disputas de poder. Para ambos os lados, eraa alma ou o ser do índio que estava em jogo.

De acordo com o que as fontes nos permiter ver, a rebelião liderada por Ñezúapresenta singularidades que não autorizam o seu enquadramento em alguns modelosexplicativos. Primeiro: não existem apelos a terra sem mal, não há promessas de paraísosnem um chamado a migrar. O feiticeiro reclama um retorno aos antigos costumes, aoantigo modo de vida, e ameaça os seus ouvintes com pavorosos cataclismos que viriamcomo castigo aos que não obedecessem.771 Ronaldo Vainfas cita Ñezú como um exemplo de líder messiânico que se ergueucontra o colonialismo. O líder guarani seria mais um, dentre os inúmeros “carái”, queevocaram a terra sem mal, que se tornara a “antítese do colonialismo”, contra a opressãoespanhola.772 Sem ter recorrido as fontes jesuíticas, Vainfas endossou as teses de Métraux eHélène Clastres sobre o messianismo e a terra sem mal tupi-guarani.773 Não se verifica, noentanto, na documentação disponível, nenhum um discurso de mobilização da comunidadeem torno de uma promessa de salvação. A trama mobilizou índios e caciques, partidários doprincipal do Ijuí, que viam nos padres uma ameaça ao seu modo de vida. Mais do que isso épretender ver além do que as fontes permitem. A rebelião de Ñezú, da forma como nos édada a ler, diz respeito a um conflito mais localizado, entre caciques/pajés e missionários,em torno do controle espiritual dos índios do Ijuí. Não se trata, para os índios e seus pajés,de um conflito entre duas religiões, ou dois sistemas de crenças opostos. Tampouco asrebeliões promovidas pelos pajés, em especial a de Ñezú, buscavam restaurar, no dizer de [Páginas 331 e 332]

suas imagens nas casas e nas igrejas. A Virgem era, como já o demonstramos, fiel escudeirados conquistadores, desde os tempo de fundação de Nuestra Señora de la Asunción. Estafaceta colonialista de Nossa Senhora é o que talvez tenha provocado a ira de algunscaciques e pajés. As imagens provocavam, por vezes, temor entre os índios. Padre Boroa,declarando os mistérios da fé com o auxílio de algumas estampas, se deparou com o receiodos infieles de se aproximarem e as imagens lhes tirarem a vida.872 Padre Roque, visto emdiversas circunstâncias como invasor e uma ameaça ao antigo modo de vida, trazia sempreconsigo a imagem da Imaculada Conceição. É provável que Ñezú e seus emissários, aodestruir a imagem da Virgem, estivessem destruindo o que imaginavam ser um dossímbolos do poder dos padres. Talvez estivessem dizendo, ao seu modo, como entendiam aconquista espiritual do seu povo, e os significados da imagem da Virgem para a conquista.O gesto iconoclasta de Ñezú traduziria então uma recusa do cristianismo e da imagem queo representava. Mais, explicitava, embora sem o pretender, a ambigüidade teológica daVirgem. A destruição da imagem da Conquistadora de Roque González não foi umaexceção. Na segunda entrada na província de Tayaoba, Montoya fez sua “casa” à sombra deuma árvore e carregava junto uma imagem da Conceição da Virgem. Ao ser atacado pelosfeiticeiros locais, saiu às pressas e deixou para trás a imagem que foi despedaçada.873 Omesmo ocorreu quando da morte do padre Lizardi, entre os chiriguanos. Uma imagem daVirgem, que acompanhava o padre Julián desde as missões do Paraguai, foi totalmentedestruída, e uma estátua titular da Virgem foi derrubada do altar e teve a cabeça e as mãosarrancadas.874Colonialista ou defensora dos indígenas, Nossa Senhora foi uma ponte entre as duasmargens. Transitando simultaneamente entre os dois mundos, espanhol e indígena, NossaSenhora assumia uma ambígua função de mediadora cultural, colocando-se na“encruzilhada de dois mundos”.875 Num dos lados era reverenciada e empunhada como [Página 374]

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