' “Boa Ventura! A Corrida Do Ouro No Brasil” (1697-1810). Lucas Figueiredo - 01/01/2011 de ( registros) Wildcard SSL Certificates
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“Boa Ventura! A Corrida Do Ouro No Brasil” (1697-1810). Lucas Figueiredo
2011. Há 13 anos
O mito propagado por Guillem saiu da Bahia, correu pela colônia e ganhou o mundo: em algum lugar do interior do Brasil, havia uma montanha dourada. Os índios a chamavam Itaberaba ou Itaberabaoçu ou Taberaboçu ou Taberabuçu ou Serababassi ou Sabraboçu ou, finalmente, o nome que ficou, adotado inclusive em documentos oficiais da época: Sabarabuçu.

Uns diziam que, além de ouro, o Eldorado português tinha prata e, por que não?, esmeraldas. Sua localização exata era incerta; seria em algum lugar do sertão, entre a Bahia e o Rio de Janeiro — ou seja, numa latitude próxima à de Potosí. A montanha andava, havia quem asseverasse.

Era avistada de noite no horizonte, mas com o raiar do dia desaparecia. Uns juravam ter contemplado seu ouro, outros diziam saber de fonte segura que os índios o usavam como isca de pesca.52 Junto da serra de ouro, defendiam alguns, havia uma lagoa também dourada, a Vapabuçu.

Para além do exercício inventivo, a lenda da montanha dourada servia a três propósitos bastante concretos. Quando invocada pelos índios, fazia o branco invasor ir embora de suas terras — não importava onde o forasteiro estava, o Sabarabuçu ficava sempre mais além.

Já para os forasteiros, como Guillem, o mito encobria atividades menos nobres, como estelionato ou caça ao índio. E, por fim, para a Coroa, impulsionava o desbravamento da colônia. Tomé de Sousa parecia vacilar entre a ingenuidade e a conveniência. Tendo uma ou outra — ou as duas — como guia, em 1553 o governador-geral começou a armar uma nova expedição à procura da montanha resplandecente.

Não veria, contudo, o resultado da campanha. Naquele mesmo ano, d. João III mandou chamá-lo a Lisboa: [Páginas 101 e 102 do pdf]

O mínimo que se pode dizer de Filipe II da Espanha — em Portugal, chamado de Filipe I — éque ele não dispensou um bom tratamento aos homens que, no Brasil, arriscavam a vida e a bolsa à procura de ouro. Que o diga o baiano Martim de Carvalho, da primeira leva de sertanistas luso-brasileiros, que havia feito uma entrada ao sertão em 1567 a partir de Porto Seguro. Com a chegada da Inquisição no Brasil, patrocinada pelo fanático Filipe, Martim Carvalho foi perseguido, preso e por fim banido para Lisboa. O olhar fixo e perfurante de Filipe, emoldurado por pálpebras caídas, não mentia: ele era um tirano.1Outro que sofreu nas mãos do monarca espanhol foi Gabriel Soares de Sousa, nobre português do Ribatejo estabelecido na Bahia. Rico fazendeiro e senhor de engenho, Gabriel possuía terras, escravos, gado e casas em Salvador, mas sonhava com o ouro e as esmeraldas do Sabarabuçu. Em 1584, o português foi à Espanha pedir apoio e compensações financeiras a Filipe II para empreender uma jornada ao sertão. O sertanista tinha certeza de que encontraria as cobiçadas minas, pois possuía um mapa que indicava a suposta localização do tesouro.

A história da carta geográfica eraespetacular. Uma entrada realizada sob achefia do baiano Sebastião FernandesTourinho, em 1573, resultou no fracasso eno equívoco habituais: ele não encontrououro, mas achou pedras verdes, turmalinasde pouco valor, que confundiu comesmeraldas. [Páginas 143 e 144 do pdf]

Influenciado pelo feito deTourinho, outro baiano, Antônio Dias Adorno,se embrenhou pelo sertão em 1574. Antôniotambém não encontrou nada, mas ashistórias de sua viagem acabaram porinspirar outro aventureiro, João Coelho deSousa. Coelho então tentou descobrir oSabarabuçu, mas só encontrou a morte nomalfazejo interior da colônia. Pouco antes deperecer, porém, acreditando estar próximodas minas, João fez um roteiro detalhado docaminho e o enviou a seu irmão, GabrielSoares de Sousa. Era justamente esse mapaque Gabriel levara a Madri (recém-convertidaem capital de Castela) para convencer FilipeII a avalizar uma nova expedição aos confinsdo Brasil.O monarca, contudo, parecia nãocompartilhar do mesmo entusiasmo dofidalgo. Gabriel esperou um, dois, três anose a resposta não veio. Para animar o rei adespachar seu caso, ele resolveu escreverum estudo sobre a colônia para osespanhóis. Era o monumental Tratadodescritivo do Brasil.3 No trabalho, concluídoem 1587, Gabriel forneceu preciosasinformações geográficas da costa da AméricaPortuguesa, reconstituiu a história dacolonização da Bahia, destrinchou ofuncionamento do negócio do açúcar ecompôs um ensaio rico — ainda quepreconceituoso — sobre os índiostupinambás. No último capítulo, Gabrielanotou ter escrito pouca coisa sobre “osmetais que o mundo faz mais conta, que sãoo ouro e a prata”, porque pretendia retomaro tema no futuro, depois, provavelmente, delevar sua expedição ao local indicado pelofalecido irmão. Ele adiantou, contudo, que ariqueza do interior do Brasil era maior que ada América Espanhola. A “terra da Bahia temdele [do ouro] tanto quanto se podeimaginar”, escreveu Gabriel. [Páginas 145 e 146 do pdf]

Como isca paraconseguir a atenção do rei, o fidalgomencionou a serra resplandecente: “(...)Afirmam alguns portugueses que a viramque ela se parece de longe com as serras deEspanha quando estão cobertas de neve(...).”Ainda que a obra viesse a serconsiderada, quase três séculos depois, orelato mais admirável sobre o Brasilproduzido no período quinhentista, na épocaela não foi capaz de excitar Filipe II. Só issoexplica os três anos de silêncio adicionaisque Gabriel mereceu.Em 1590, depois de seis anos de espera,o fidalgo finalmente obteve a resposta queesperava, e desta vez o rei lhe foi generoso.Gabriel foi nomeado para um cargo de nomepomposo — “capitão-mor e governador daconquista e descobrimento do rio de SãoFrancisco” — e recebeu honras, mercês eajuda material. [Página 147 do pdf]

Em abril de 1591, Gabriel já estava acaminho do Brasil, embarcado na urcaflamenga Grifo dourado — ironia do destino:grifo (animal com cabeça de águia e garrasde leão) era justamente um dos seres quehabitavam o lendário e opulento reino doPreste João, que Portugal tanto buscara noséculo XV. A chegada de Gabriel ao Brasil foiconfusa. A urca naufragou na enseada deVaza-barris, em Sergipe, provocando a mortede muitos que nela viajavam. Gabriel, porsorte, conseguiu se salvar. Refeito do susto,o fidalgo decidiu fazer a pé o restante dajornada até Salvador, um percurso de maisde 300 quilômetros. Com muito sacrifício,completou a prova.Ainda naquele ano, Gabriel entrou nosertão, liderando cinco companhias, doiscapelães e um mineiro prático, MarcosFerreira. Sua comitiva não foi longe.Abandonado pelos índios que lhe serviam deguias, Gabriel vagou sem rumo até cairprostrado, em febres, próximo ao local ondeuma década antes seu irmão tinha perdido avida: as cabeceiras do rio Paraguaçu, naBahia. Mais tarde, os despojos de Gabrielseriam encontrados e sepultados no mosteirode São Bento, com um epitáfio escolhidopelo sertanista: “Aqui jaz um pecador.” [Páginas 148 e 149 do pdf]

Um mapa do Brasil de 1586resumia bem o dilema português da cobiçado ouro versus a barreira sertão/índio.9 Alegenda do mapa afirmava que, sim, haviaouro no território da colônia, mas diziatambém que os portugueses ainda nãotinham sido capazes de assentar núcleosalém de 130 quilômetros da costa. O sertãolongínquo, ensinava o mapa, era povoadoexclusivamente pelo “gentio da terra”. [Página 152 do pdf]

Com sua geografia rude e seus recursosparcimoniosos, o sertão continuava sendouma terra possível apenas para os homensnus que o habitavam. Por enquanto, aindaque tivessem uma ou outra pepita de ouro esonhos imensos, os cerca de 25 mil brancosque viviam no Brasil estavam condenados,como dizia frei Vicente do Salvador, a viver“ao longo do mar, como caranguejos”.11Assim que soube da morte do “pecador”Gabriel Soares de Sousa no sertão doParaguaçu, o governador-geral do Brasil, d.Francisco de Sousa, mandou socorro aossobreviventes da expedição. Além de evitarque a tragédia se alastrasse, o prontoatendimento confortou a comunidade baiana,já tão desgastada com a sucessão deeventos daquela natureza. Considerado omelhor dos governadores-gerais até entãonomeados pela Coroa, d. Francisco semostrou, mais uma vez, um administradorcompetente e um homem de valor.12

A transferência de d. Francisco para o Brasil, em 1591, se devia a um imprevisto funesto: o funcionário escalado para assumir o Governo-Geral, Francisco Giraldes, caiu nomar quando aportava na costa baiana e morreu sem pôr os pés na colônia. O currículo do novo governador-geral era lustrado: ele comandara um dos galeões dadesastrosa campanha de d. Sebastião noMarrocos e possuía o viçoso título de senhorde Beringel. Carecia de fortuna, entretanto,já que, como terceiro filho, não tivera odireito a pôr as mãos na herança do pai. OBrasil era assim uma oportunidade para d.Francisco.Se o fidalgo precisava de uma boa notícia,o rei da Espanha e de Portugal precisavaainda mais. As coisas começavam a ficarcomplicadas para Filipe II, e um dos motivosera que el-rei gostava de guerras. Osinimigos da Espanha — Inglaterra e Holanda— eram poderosos, o que demandou deMadri grandes orçamentos militares. Oproblema era que o dinheiro já não eraabundante como antes. Ainda que aprodução de prata de Potosí crescesse ano aano, os carregamentos de ouro da Américajá não vinham tão fartos. Derretidas as joiasd e Montezuma e Atahualpa, o que restarados antigos impérios Inca e Asteca eramminas de difícil extração. A produção deouro, que havia alcançado o pico de 4,2toneladas por ano no decênio 1551-1560,caíra para 943 quilos no período 1571-1580.13 Recuperara um pouco no decênioseguinte — 1,2 tonelada por ano — masestava claro que os tempos de vacas gordashaviam acabado. [Páginas 158, 159 e 160 do pdf]

Filipe II não poderia ter encontrado súdito mais leal para os assuntos do ouro que d. Francisco. O novo governador-geral do Brasil faria, se não tudo, quase tudo para encontrar as minas escondidas no sertão. Somando o desejo que tinha de enricar coma pretensão de ser o primeiro marquês das Minas (cargo que pediu e que o rei da Espanha lhe prometeu), d. Francisco viveria os vinte anos seguintes obcecado pela ideia de encontrar o Sabarabuçu.

O primeiro sinal de que o cavaleiro se transmutava num desvairado pelo ouro foi revelado justamente na operação de socorro a Gabriel Soares de Sousa. Ao receber, dos homens que fizeram o resgate, o mapa doSabarabuçu que Gabriel herdara do irmão João Coelho, o governador-geral evitou entregá-lo aos herdeiros. Apoderou-se dos papéis para tentar ele próprio desvendar o mistério da serra resplandecente. Cego pela cobiça, ele foi à luta. [Página 161 do pdf]

Em 1596, d. Francisco já tinha entendido que, para alcançar as nascentes do rio São Francisco, onde ficaria o Sabarabuçu, era preciso mudar a estratégia adotada nas últimas seis décadas e meia. Como todas as jornadas saídas de Porto Seguro e Salvador haviam falhado, o fidalgo concluiu que era preciso abandonar a Bahia como ponto departida das campanhas e apostar nas capitanias localizadas mais ao sul.

Ainda naquele ano, d. Francisco pôs em prática seu novo plano, mandando não uma, mas três expedições ao sertão, todas partindo de capitanias localizadas abaixo da Bahia. Do Espírito Santo, quem entrou pelo sertão adentro foi um dos sobreviventes da expedição de Gabriel Soares de Sousa: o português Diogo Cão, um exterminador de índios alcunhado de Matante Negro.

Do Rio de Janeiro, o enviado foi Martim Correia de Sá, de 21 anos, outro caçador de selvagens e derrubador de pau-brasil. E, por fim, da vila de São Paulo, o escolhido foi João Pereira de Sousa, português que viera para o Brasil fugindo de perseguições no reino. Além de representar o fim das entradas baianas, a tripla campanha iniciou uma nova fase na busca do ouro: dali em diante, as expedições ficariam cada vez mais estruturadas e planejadas, assumindo um perfil quase militar. De início, contudo, o resultado não foi bom.

A campanha piratiningana teve um desfecho inusitado:acusado de falsificar documentos, João Pereira de Sousa foi preso quando ainda marchava rumo às minas. As outras duas deram no de sempre: índios escravizados e necas de Sabarabuçu.

Dois anos depois, ainda com o fracasso apesar-lhe os ombros, a tentação veio bater novamente à porta de d. Francisco. Dessa vez, na forma de um pedaço de metal azulado com pintas douradas. O torrão foi oferecido ao governador-geral por “um brasileiro” que dizia que a origem do regalo eram os “montes Sabaroason”.

Aquele minério valia quase nada, mas foi o suficiente para alucinar d. Francisco. Convencido de que o Sabarabuçu ficava mesmo abaixo da Bahia, o governador-geral decidiu se mudar de Salvador, então capital da colônia, para a boca do sertão: a vila de São Paulo de Piratininga.

Trocar Salvador por São Paulo, em 1599, só mesmo por um bom motivo; no caso de d. Francisco, a ganância.Na virada do século XVI para o XVII, Salvador era, junto com Olinda, a vila mais desenvolvida da América Portuguesa. Alavancada pelo dinheiro dos senhores de engenho, a sede do Governo-Geral já experimentava alguns luxos e uma certa movimentação.

Nessa época, a capitania do Recôncavo contava com impressionantes 3.000 habitantes brancos e mestiços. Já São Paulo, com suas reles cem casas, a maioria de pau a pique e teto de palha, era uma vila feia, “bem insignificante, quase miserável”.17 Em lugar do clima quente da Bahia, sopravam “grandes frios e geadas”. 18Paupérrimos, seus cerca de 200 moradores livres se vestiam tão miseravelmente que os trajes faustosos usados por d. Francisco quando entrou na vila, em maio de 1599, provocaram comentários. [Paginas 162 a 165 do pdf]

BOTOCUDOS, PURIS, PATAXÓS EMAXACALIS (POR DEBRET)

Ao governador-geral não interessavam os luxos e confortos que deixara para trás. Sua comitiva, formada por mineiros, ensaiadores de ouro e fundidores, mostrava que ele viera focado no trabalho — coisa rara em se tratando de um funcionário da Coroa. D. Francisco de fato foi um administrador incomum.

Mal instalou-se em São Paulo, deu início a uma série de providências para limpar e abrir caminhos e erigir vilas e fortes. Ainda naquele ano, o governador vistoriou pessoalmente as malservidas minas de ouro descobertas por Brás Cubas e Luiz Martins quase quatro décadas antes: Jaraguá, Birutuna, Monserrate e Biraçoiaba (região que se estende por cerca de 90 quilômetros entre os atuais municípios de São Paulo e Sorocaba).

O tesouro que d. Francisco buscava, no entanto, não estava ali tão próximo daquela vila molambenta. Escondia se em algum lugar certamente pior, disso ele sabia. O Sabarabuçu devia estar em algum ponto entre São Paulo e a Bahia — o que vale dizer, uma longitude de mais de 1.400 quilômetros em linha reta.

Tudo indicava que a serra resplandecente sonhada por d. Francisco ficava naquela região representada nos mapas da época com um imenso vazio, habitada apenas por índios e, segundo a imaginação de alguns cartógrafos, leões. O ouro estava no vão, no oco, no deserto do Brasil. [Páginas 165, 166 e 167 168 do pdf]

EM 1592, THEODOR DE BRY APAVOROU A EUROPA COM A GRAVURA DE UM RITUAL DE ANTROPOFAGIA TUPINAMBÁ

Não havia caminho que ligasse São Paulo ao sertão; apenas trilhas de índios, estreitas e traiçoeiras, por onde era possível passar somente uma pessoa de cada vez. Os homens brancos que se dispunham a embrenhar-se por essas veredas, além de serem desassombrados, precisavam ser fortes e resistentes, já que o itinerário raramente seguia na linha horizontal.

Era um subir e descer constante por serras rochosas que podiam se elevar a quase 3.000 metros acima do nível do mar. Poucos lugares na colônia eram tão altos. 21 O que parecia um problema na verdade eram dois: tendo de subir os morros de quatro, usando as mãos para agarrar raízes e pedras, ficava-se à mercê das flechas dos índios. [Fernão Cardim (1540-1625)]

Sim, para entrar no vazio era preciso antes furar o cinturão dos selvagens — uma população de 90 mil a 160 mil índios, que habitava a região havia 11 mil anos.23 A figura dos aborígines por si só já era assustadora —uma coisa era encontrar nativos na praia aberta de Porto Seguro; outra era vê-los de relance, se esgueirando pelas matas fechadas do sertão. Os botocudos, por exemplo, um dos povos que ocupavam a região, quase perdiam a feição humana pelo costume de usar um disco de madeira, da circunferência de uma laranja grande, em fendas abertas no lábio inferior e nas orelhas. No caso dos botocudos idosos então, a transformação era ainda mais radical: com o tempo, o peso dos botoques fazia o lábio cair até encostar-se no peito; as orelhas roçavam nos ombros. [24] Um estrangeiro que viu a cena no início do século XIX fez o seguinte comentário: “Não há ser humano mais feio que uma velhabotocuda nua, a saliva escorrendo sem pararpelo lábio inferior.” 25 Fosse só a feiura, nãohaveria tanto problema. A questão era queos botocudos eram bravos, antropófagos emestres na arte de emboscar. A dificuldade,como se vê, não era apenas penetrar nosertão, mas permanecer. [Páginas 169, 170 e 171 do pdf]

No início de 1601, André de Leão entrounovamente nas terras sombrosas que seabriam além dos campos de Piratininga.Estava sob a proteção de “Deus e da VirgemNossa Senhora de Monserrate”, sob a escoltade setenta ou oitenta homens e tendo porassistente um mineiro prático, o holandêsWilhelm Jost ten Glimmer.26 Todos iam apé. Andaram uma eternidade por caminhosásperos, desceram rios com canoas a desviarde cachoeiras, até que toparam com umaserra. Era grandiosa, com picos de até 2.770metros, mas não dourada. Para transpô-la,Leão levou sua comitiva por uma fenda quese abria na cadeia de montanhas, a gargantado Embaú.27 Quando desceu do outro lado,estava de frente ao que num futuro próximoficaria conhecido como Minas Gerais. Seguiuadiante, margeando rios que escondiamalgum ouro debaixo do cascalho. O cenário,apesar de belo, era assustadoramente desértico, como deixaria registrado o mineiroprático: “Em toda a viagem (...), nada vimosque denotasse cultura, não encontramoshomem algum, apenas aqui e ali aldeias emruínas (...); todavia, observamos às vezesfumaça que se erguia no ar, pois, poraquelas solidões, vagueavam com suasmulheres e filhos alguns selvagens (...).” 28Quando a expedição conseguiu achar asprimeiras provas do metal e se preparavapara aprofundar a pesquisa, foi obrigada arecuar.29 Motivo: uma “tribo de selvagens”tinha enviado um guerreiro para espreitar osexpedicionários. “(...) Demo-nos pressa emarrepiar carreira, de medo desses bárbaros(...)”, escreveu Glimmer.30 Nove mesesdepois da partida, a comitiva estava de voltaa São Paulo — de mãos vazias.D. Francisco não se abalou. Ao contrário:estudou as falhas da expedição e no anoseguinte enviou uma nova campanha ao sertão. Paracompô-la, foipreciso aliciargente de outrascapitanias, já queo número deintegrantes —300 brancos emamelucos —extrapolou a totalidade da população livre de São Paulo.31 A expedição partiu em setembro de 1602.32 Treze meses depois, ainda não havia regressado, mas para d. Francisco isso já não importava mais. Depois de doze anos no cargo, com uma administração competente mas de pouca ventura metálica, ele fora obrigado a passar o bastão ao violento e arrogante d. Diogo Botelho. Parecia ter chegado o fim das buscas de d. Francisco, mas não foi isso o que aconteceu. Ele simplesmente não desistiu.

Em 1605, d. Francisco viajou a Madri e deflagrou uma campanha na corte para que o novo rei, d. Filipe III de Espanha (Filipe II de Portugal), dividisse em dois o Governo Geral do Brasil. A porção norte, com capital em Salvador, ficaria sob a administração do novo governador-geral, d. Diogo Botelho.

Já a Repartição Sul, que abrangeria as capitanias do Espírito Santo, Rio de Janeiro e de São Vicente, seria colocada sob a guarda dele, d. Francisco. A fim de amaciar o real julgamento, o ex-governador usou a palavra mágica como argumento para a mudança: ouro.

Uma vez descentralizada a administração da colônia, alegava d. Francisco, a Coroa poderia se dedicar com mais afinco às pesquisas mineralógicas, colhendo por certo o ouro do Sabarabuçu. Tanto o ex-governador fez, falou e prometeu que o rei acabou consentindo. [Páginas 173, 174, 175 e 176]

Ainda que fosse um rei sem aptidão paraa política, d. Filipe III não era alheio àspromessas de fortuna. Cada vez menosabundante nas colônias da AméricaEspanhola, o ouro lhe falava ao coração.33Tanto assim que em 1603, sem que nada deextraordinário tivesse acontecido no campodas descobertas auríferas, el-rei baixou oprimeiro Regimento das Minas do Brasil, umcatatau de 62 artigos inspirado no De remetallica, um manual de mineração emetalurgia de 1556.34Em meados de 1609, acompanhado deuma grande comitiva, d. Francisco regressoua São Paulo de Piratininga. A certeza de queencontraria o Sabarabuçu era tão grande, eseu desvario, tão imenso, que ele pediu aorei (e este consentiu) que lhamas, animaisacostumados a carregar a prata de Potosí,fossem importadas pela administração dacolônia e introduzidas em São Paulo. [Página 177 do pdf]

Osopositores de d. Francisco não lheperdoaram a desenvoltura. No dia 22 abril de1609, exatos 109 anos após a chegada deCabral a Porto Seguro, o novo governadorgeral da Repartição do Norte, Diogo deMeneses (não confundir com Diogo Botelho,o anterior), escreveu uma carta ao reirecheada de rancor e maldade, mas tambémde razão. Nas entrelinhas da missiva, eleaconselhou o soberano a desinflar osinvestimentos na Repartição Sul e aconcentrar o foco na porção norte. Seuargumento era irreparável: eram asconcretudes da Bahia e não os sonhos deSão Paulo que geravam lucros para a Coroa.“Creia-me Vossa Majestade que asverdadeiras minas do Brasil são açúcar epau-brasil, de que Vossa Majestade temtanto proveito sem lhe custar de sua fazendaum só vintém”, afirmou ele.36 Os númerosconfirmavam a afirmação de d. Diogo deMeneses. [Página 178 do pdf]

Desde princípios do século XVII, depois de mais de cem anos com a contabilidade no vermelho, o Brasil enfim dava lucro — e graças quase que exclusivamente ao açúcar do Nordeste. O produto estava em alta no mercado, e a colônia, por sua vez, acabara de conquistar o posto de maior produtora mundial da mercadoria.

D. Francisco, contudo, conhecia o atalho para a alma do rei. Em 1610, o governador da Repartição Sul enviou a Madri um de seus filhos, Antônio de Sousa, com dois regalos para d. Filipe II: uma espada e uma cruz forjadas com o pouco ouro das minas de São Paulo. Para azar de d. Francisco, a cobiça não habitava somente nele e no rei. A nau foi assaltada em alto-mar por corsários, que levaram os presentes.37 D. Francisco não teve tempo de mandar cunhar novos mimos dourados para el-rei, nem chegou a importar suas lhamas.

Abandonado pelos integrantes de sua comitiva e empobrecido pelos anos mal gastos no Brasil, ele morreu em junho de 1611. Não deixou muita saudade. São Paulo, Lisboa e Madri o esqueceram tão rapidamente que até mesmo a localização de seu túmulo acabou se perdendo na poeira da história. [Página 179 e 180]

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