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“A cidade da conversão: a catequese jesuítica e a fundação de São Paulo de Piratininga”, Amilcar Torrão Filho, doutorando na Unicamp
2004. Há 20 anos
Antes de Vieira, outros jesuítas já haviam chamado a atenção para a dificuldade de evangelização dos índios, não apenas por sua resistência à doutrina, mas pela ação desagregadora dos colonos brancos. Estes interferiam no trabalho dos jesuítas de várias maneiras: pelos maus exemplos e pelos pecados, não raro de muito maior escândalo do que dos índios pagãos, por incentivar as guerras e a antropofagia, pelo adultério e mancebia, blasfêmias e, sobretudo, pelo seu desejo de escravizar a maior parte desses nativos em proveito próprio, de suas fazendas, em detrimento do Império de Cristo na Terra, do qual eram mandatários os portugueses.

Anchieta, em carta a Inácio de Loiola de 1°. de setembro de 1554, queixa-se da má influência dos brancos sobre os catecúmenos. Relata que um dos principais da terra, vivendo distante mais de trezentas milhas de Piratininga, chegara com o irmão Pero Correia para receber os preceitos da lei divina e a doutrina da fé cristã. Tendo ido um dia a Santo André, a mítica povoação de João Ramalho, foi convidado por um cristão a beber, mas negou-se, dizendo estar determinado a abandonar os antigos costumes, e que beber lhe estava proibido pelos inacianos. Apesar da recusa, o índio não teve forças para vencer as insistências do cristão, que teria afirmado:

“Não tenhas medo, que eles não virão a saber”. Vencido, deu-se à bebida e, por causa dela, “caiu em gravíssima doença, a que se seguiu a morte. Faleceu, porém, confessado e contrito, depois de recebido o baptismo” [Serafim Leite, Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil, São Paulo, Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1957, v. II (1553-1558), p. 107.]. Esses cristãos mostravam-se, disse o mesmo Anchieta, ainda piores que os pagãos. Eram os irmãos da Companhia, por causa deles, “humas mortes vivas, ou humas vidas mortas”.

Nóbrega era um homem que o não parece, pele e ossos, pés descalços esfolados do sol: “Seu comer sam suspiros, seubeber lagrimas pella conversam dos infieis,& pella má vida dos christãos, mais infieisnas obras que elles” (7).

Por conta dessa difícil relação com os colonos brancos, e por dificuldades com a catequese dos índios na Bahia, os inacianos decidem embrenhar-se nos matos de São Vicente, mesmo contrariando as determinações da Coroa de não se devassar o sertão deixando as costas desprotegidas. Determinações, aliás, que tinham a funçãomuito mais de disciplinar esse devassamento do que necessariamente proibi-lo.

Manuel da Nóbrega escreve ao rei D. João III, em outubro de 1553, relatando ao monarca que a maioria dos padres e irmãos da Companhia residia já na capitania de São Vicente “por ser ella terra mais aparelhada pera a comversão do gentio que nenhuma das outras, porque nunca tiverão guerra com os christãos, e hé por aqui a porta e o caminho mais certo e seguro pera entrar nas gerações do sertão, de que temos boas informações” (8).

Não eram poucas as dificuldades dos jesuítas na conversão do gentio, as resistências partiam de todos os lados, dos índios ferozes, renitentes em abandonar suas práticas bárbaras, sobretudo aantropofagia, “tam brutos que nem vocabulos tem” (9) para exprimir os conceitosreligiosos, dos colonos cúpidos e blasfemos, da malícia de alguns cristãos nascidos de pai português e mãe brasílica, quenão deixam de esforçar-se com a ajuda deseu pai, obviamente João Ramalho, “porlançar a terra a obra que procuramos edificarcom a ajuda de Deus”, diz Anchieta aLoiola, exortando repetida e criminosamente os catecúmenos “a apartarem-se de nóse crerem neles, que usam arco e frechascomo os índios, e a não se fiarem de nósque fomos mandados para aqui por causade nossa maldade” (10).Estacionados em São Vicente osinacianos sobem a serra para estabelecerse nos campos de Piratininga, a nove milhas da povoação de Santo André. Como ospais dos meninos catequizados pelos jesuítas eram em sua maioria de serra acima,tinham muita dificuldade em visitar seusfilhos e trazerem-lhes mantimentos. DizAnchieta que, por isso, pareceu melhor aNóbrega mudar-se para o campo, na povoação de índios chamada Piratininga. Mas essenão foi o único, nem sequer o principalmotivo para a mudança, pois, além do problema dos mantimentos, havia a questão da [Páginas 4 e 5 do pdf]

A CIDADE DA CONVERSÃO

Pela historiografia e pelas cartas jesuíticas vemos que eram freqüentes as queixas dos inacianos contra os colonos europeus, os mamelucos e mesmo os religiosos enviados à América. Uma das tópicas mais importantes dessas cartas é justamente “a sã natureza da terra e a corrupção em que se acham os cristãos”, principalmente os clérigos de outras ordens, “em que tudo, sem exceção, parece contrário à religião e à eficácia da pregação” (19).

Mas como entender esse desejo de afastamento e a fixação em Piratininga, tão próximos de João Ramalho, segundo os padres da Companhia, seu inimigo declarado? As facilidades de conversão nos campos de Piratininga não eram tão grandes quanto se pensava ou se dizia e cedo os jesuítas percebem que a catequese não se poderia efetivar apenas pelo amor, mas sobretudo pelo temor. Anchieta afirma a Loiola, em setembro de 1554, que esses índios não estavam sujeitos a nenhum rei ou chefe e só tinham em alguma estima “aqueles que fizeram algum feito digno de homem forte”.

Quando pareciam ganhos, voltavam a seus velhos hábitos “porque não há quem os obrigue pela força a obedecer”, já que cada um “é um rei em sua casa e vive como quer”. Por isso nenhum fruto se pode colher deles “se não se juntar a força do braço secular, que os dome e sujeite ao jugo da obediência” (20).

Anchieta afirma que a abundância de ouro, prata, ferro e outros metais, antes desconhecidos, seria ótimo e facílimo meio pelo qual se chegaria ao caminho “pelo qual esses gentios se haviam de levar à fé”. Isso se daria pois, “vindo para aqui muitos cristãos sujeitarão os gentios ao jugo de Cristo, e assim estes serão obrigados a fazer, por força, aquilo que não é possível levá-lospor amor” (21). Nem todos os jesuítas se opunham ao cativeiro dos índios, como era o caso de Nóbrega e de Anchieta. Apesarda defesa de Nóbrega da liberdade da maioria dos índios, “a escravidão indígena devia ser permitida e mesmo desejada emdeterminados casos, não apenas para efeitos de defesa ou de castigo, mas também porque a oferta de legítimos cativos atrairia novos colonos para o Novo Mundo” (22).

Com mais colonos e mais riquezas, se poderia cumprir a obra da conversão, e a escravização do indígena, se necessária, viria em auxílio a este propósito. O conflitoentre inacianos e colonos em São Paulodeveu-se, como demonstrou Monteiro, pelainsistência destes últimos numa escravização considerada ilegal pelos jesuítas epelo controle que estes exerciam sobrealdeamentos próximos à cidade (23).

Alguns meses depois da primeira missa em Piratininga, Anchieta já não deseja isolar-se dos cristãos, ao contrário, vê neles o caminho da salvação dos índios. A descoberta de metais preciosos pode também disciplinar os “malvados de Santo André”, levando “o Sereníssimo Rei de Portugal a mandar para aqui uma força armada e numerosos exércitos, que dêem cabo de todos os malvados que resistem à pregação doEvangelho e os sujeitem ao jugo da escravidão” [Carta a Inácio de Loiola, março de 1555 (Serafim Leite,Cartas, op. cit., p. 196).].

Luís da Grã, escrevendo da Bahia a Loiola em dezembro de 1554, afirma que se faria muito mais pela conversão se houvesse mais gente, quer dizer, cristãos, para que sintam eles, os índios, sujeição; para isso, a descoberta de metais seria fundamental para aumentar o povoamento, um instrumento e meio de Deus “deste su servicio que tanto se dessea, que es la subieción de tanta infinidad de pueblos a susancta fee” (25).

Nóbrega acrescenta que se deve povoar de cristãos a costa do Brasilpara o exemplo dos gentios, mas “de mejorgente de la que hasta ahora a venido a ella,la cual haga bivir los índios em razón y justicia” (26). Não era o isolamento quedesejavam os jesuítas, mas a presença debons católicos que pudessem dar exemplode vida cristã aos índios e, ao mesmo tempo, por meio do temor das leis dos homens,forçá-los a viver em razão e justiça. Paraisso era necessário também vencer o nomadismo dos nativos, que, embrenhadospelo sertão depois da conversão, tornavama seus hábitos bárbaros, fixando-os empovoações. Gera-se aqui a política dealdeamento, levada a cabo pelos inacianose pela Coroa, além da necessidade de havervilas e cidades de cristãos suficientementepróximas para garantir as leis dos homense de Deus. Trata-se da “conversão pelapolítica”, como diz Pécora (27). Os jesuítas adotam no Concílio de Trento, comoestratégia de reação à Reforma Protestante, o modelo evangelizador do início docristianismo, por isso a escolha de Cristocomo patrono da Ordem. Mesmo após aexpulsão dos jesuítas, a cidade manterá seucaráter de conversão, na inserção e no “policiamento” de índios e “vadios”.A importância de São Paulo para o projeto de conversão pela política dos inacianos, além da proximidade com outras tribos, ou mesmo com as reduções do Paraguai, de uma suposta facilidade de trato comos carijós dos campos de Piratininga, residia na necessidade de um núcleo estável eurbano que garantisse a manutenção dosvalores cristãos e a vigilância contra práticas bárbaras: “luta contra a antropofagia,luta contra a superstição, luta contra amancebia e todos os abusos” (28). Mesmoantes da fundação de São Paulo, o padreLeonardo Nunes, andando pela serra acima em 1550, já se preocupava com a dispersão dos cristãos entregues à natureza,desagregadora dos valores da religião:“Trabajé mucho con los cristianos que alléderramados en aquel lugar entre los Indios,que se tornassen a las villas entre loscristianos, em lo qual los hallé muy duros,mas en fin acabé con ellos que se ayuntassentodos em un lugar y hiziessen uma hermitay buscassen algún Padre que les dixessemissa y confessasse” (29).

Os inacianos tinham uma preferênciaespecial pelo apóstolo Paulo, difusor docristianismo entre o gentio pagão, por issosua escolha para nomear a aldeia de serraacima. Essa identificação se dava tambémna medida em que Paulo “entendia quetodos os homens eram pecadores, condição que dá igualdade ao gênero humano.[…] Jesus concretizava o meio pelo qualDeus interveio na realidade terrena parasalvar suas criaturas da mácula do pecadooriginal” (30). Por isso pode dizer Hansenque os jesuítas não pensam a nova terra e ogentio que a habita antropologicamente“mas os propõem sempre como o Mesmo,apenas que muito distanciado da boa semelhança católica, segundo a analogia que fazdo mundo uma figura do ditado” (31). Epara Pécora, o índio para o jesuíta não é ooutro, nem o mesmo, mas o próximo, pois“no que toca à aptidão para a salvação ou àpossibilidade para a remissão, todos os homens são próximos” (32). Assim, não é amissa no dia 25 de janeiro que determina oorago de São Paulo, mas a ação jesuíticaque dá sentido à existência da aldeia no altodo monte da Serra do Mar. Ela nasce como propósito de trazer ao seio da cristandadeo gentio, que não é um outro, mas um mesmo desgarrado, ou um próximo desencaminhado, por meio da ação evangelizadora,civilizadora e catequética.O modelo de aldeamento de Nóbrega,tão evidente em São Paulo, é aquele quemantém os índios próximos às vilas dosportugueses, baseado na “ação coordenadados jesuítas com o braço secular coativodos governadores” (33). Daí a união de esforços da Companhia com Mem de Sá nareforma da cidade de Salvador. As leis dessareforma, propostas por Nóbrega, são implantadas pelo governante: proíbem-se aantropofagia, a poligamia e a guerra entreas tribos, castigam-se feiticeiros e pajés,ajuntam-se os índios em povoações grandes proibindo-se o nomadismo, obrigamse os meninos a freqüentarem os colégios.Os índios passam a ser considerados súditos livres da Coroa e determina-se a nulidade da escravização contra a justiça, bemcomo a punição de crimes cometidos con [Páginas 6, 7 e 8 do pdf]

tra os índios pelos brancos (34). Como desdobramento dessas medidas reformistasestá a fundação da cidade do Rio de Janeiro; com o fim das lutas contra os tamoios,são traçadas fortificações poderosas depedra e cal; e o próprio nome da cidadeindica o princípio da aliança fundadora: aescolha do nome de São Sebastião teria sedado pelo fato de “ser nome tanto do reiportuguês, quanto do santo do dia da vitória, equívoco que revela o desejo de contemplar os domínios de ambas as coroas,simultaneamente” (35). O poder temporalda Coroa e o poder espiritual da religiãodevem ser unidos para garantir a eficáciada conversão.Uma cidade nos moldes desejados pelos jesuítas, defendida de seus inimigos,aliada do poder temporal, com o exemplode bons cristãos e próxima o bastante dosaldeamentos, garantiria a eficácia da conversão pela criação de um solo que se deixasse salgar, como desejará Vieira um século mais tarde no Maranhão. Se a sujeiçãodo índio não se reduz a uma ação que dizrespeito apenas à “República temporal”, eladeve necessariamente “incluir-se em seudomínio; a conversão coativa conduz aoestabelecimento dos primórdios de umacidade que, terrestre e política, ordena-sesegundo a finalidade da Cidade de Deus”(36). Cidade de inspiração agostiniana etomista, a Jerusalém Celeste erguida na terrado Novo Mundo para contrapor-se à cidade da perdição, a Babilônia Terrestre, econverter o pecado em obra divina, o pecador em povo do Senhor (37); identificada,assim como a Cidade de Deus, “como cidade evangélica, militante, defensora e difusora da fé” (38). A criação e a defesa do Riode Janeiro são importantes para a manutenção da atividade missionária iniciada noscampos de Piratininga: quando os franceses invadem a Guanabara em 1561, ostamoios, seus aliados, ganham força na lutacontra seus inimigos tupis, aliados dos portugueses. Chegavam eles “a rondar, subindo pelo Paraíba, os campos de Piratininga,que pouco a pouco iam arroteando os Portugueses e seus filhos” (39). Defender oRio de Janeiro significava também defender e consolidar a ação catequética estabelecida pelos inacianos na cidade edificadasobre o monte. Pois se em relação à reforma de Salvador e à construção do Rio osjesuítas possuem, por meio de Nóbrega,uma ação coordenada e aliada ao podertemporal, na fundação de São Paulo, essemesmo Nóbrega antecipa o modelo político de sujeição baseado na cidade terrestreordenada segundo a Cidade de Deus contraos pagãos de Santo Agostinho. Pois a escolha do patrono apóstolo da aldeia piratiningana, em dia de sua tão famosa conversão, não foi aleatória, tanto quanto nãofoi a escolha de São Sebastião, o rei desejado, como patrono do Rio de Janeiro.Elas indicam a união dos poderes temporal e espiritual na conversão do gentio eno engrandecimento do império português. Tanto com relação ao Rio de Janeiro quanto com relação a São Paulo dePiratininga, busca-se “a fundação de umanova cidade, capaz de acomodar organicamente, sob as leis do reino e da Igreja,os diferentes membros do corpo místicodo Novo Mundo” (40).São Paulo, iniciada como povoamentojesuítico, com base na catequese do gentio,nasce com vistas ao sertão. Os inacianostinham como objetivo a proximidade comas tribos do interior, mas, apesar da retórica do isolamento e da distância dos mausexemplos dos colonos e do clero secular,sua estratégia de conversão estava, comoobserva Pécora, baseada na política. Nãose explica de outra maneira a atuação deNóbrega na reestruturação da Bahia, nadefesa do Rio de Janeiro e na extinção deSanto André por Mem de Sá em 1560. Atransferência do Pelourinho e da população da vila de João Ramalho para São Paulo, que recebe foro de vila, dá aos jesuítasa possibilidade da conversão e da catequese,não apenas dos índios como dos colonos,estes sim isolados da verdadeira fé na Borda do Campo. Os maus exemplos dosandreenses sobre os catecúmenos, que ascartas dos padres da Companhia denunciam, são possíveis porque os mamelucos deSanto André estão fora de sua jurisdição evigilância. O índio que cai na tentação da [Página 9 do pdf]

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