Vilas e cidades em trânsito: assentamentos urbanos, agência indígena e fronteira colonial na formação do espaço platino (séculos XVI e XVII), JOSÉ CARLOS VILARDAGA - 01/01/2021 de ( registros)
Vilas e cidades em trânsito: assentamentos urbanos, agência indígena e fronteira colonial na formação do espaço platino (séculos XVI e XVII), JOSÉ CARLOS VILARDAGA
2021. Há 3 anos
a narrou em 1620, como um lugar de costumes mestiços e com “la gente ruin e latierra es mal sana”.41 A vila quase foi destruída ao longo de um cerco dos Guarani,em 1560. Em 1570, o mesmo Melgarejo que a fundou fundaria, cerca de 60 léguasa leste, Villa Rica del Espiritu Santo. Segundo um historiador, o fundador levava comele mais cavalos que homens: 40 vecinos e 53 cavalos.42 O lugar eleito havia sidouma experiência missionária dos franciscanos, e os colonos adventícios buscaramdesenvolver uma mineração de ferro que rendeu parcos resultados. O sítio escolhidoinicialmente ficava entre as nascentes dos rios Piquiri e Ivaí, no “camino sabido eandado por donde entro el dicho gobernador Cabeça de Vaca y por onde estetestigo guio e traxo con el ayuda de dios nuestro senor al capitan Hernando de Trejoe gente de la armada del governador Juan de Senabria”.43Villa Rica mudaria de sítio em 1589, para a confluência dos rios Corumbataíe Ivaí, num processo controvertido, mas ainda seria trasladada mais cinco vezes,existindo atualmente no atual Paraguai, como Villarica, nas cercanias da cordilheirado Ybytyruzu, onde se instalou em 1682. Em função disso, ficou conhecida como acidade andariega. Foi o maior e mais povoado assentamento dos espanhóis naregião, mas nunca passou de pouco mais de 100 vecinos. Um cronista chegou aafirmar, em 1629, que a respeito de Villa Rica seria “mejor decir pobre”, já que seusmoradores viviam como “barbáros desterrados sin oir missa” e “son tan pobres losespañoles de esta Villa, que solo vesten de algodón”.44 Também organizadaconforme o padrão urbano da Índias, sobreviveu sobretudo da exploração daencomiendas de indígenas Guarani, o que garantia alguma produção de açúcar evinhedos. A primeira mudança do sítio foi levada a cabo por Ruy Diaz de Guzmán,e feita sob alegação de que os moradores haviam solicitado o deslocamento paraum lugar mais salubre, próximo de grupos indígenas e perto do caminho para SãoPaulo.45 Mas alguns moradores questionaram a ambição de Guzmán em tornar-seele mesmo um fundador de cidades, o que de fato se tornaria. Em verdade, Guzmánestava mais interessado em ser ele próprio um caudillo, já que em 1593 arrastouvários moradores do Guairá para criar Santiago de Jerez, nas bandas do rio Iguatemi,na beira do rio Muñey (hoje Ivinheima). A sina da mudança também acompanhouJerez que, em 1599, mudou-se para o Mbotetey (hoje rio Miranda), na confluênciacom o rio Aquidauana. Guzmán acabou enfrentando problemas com o governadordo Paraguai e chegou a ser condenado a viver alguns anos preso em Jerez.46 Apossibilidade de se fazer proliferar cidades em demanda de mercês e exercício depoder não deve ser descartada em nenhuma hipótese. O fato é que a Coroaespanhola chegou a emitir uma real cédula, em 1618, proibindo explicitamente queas cidades do Guairá mudassem de sítio de onde haviam sido fundadas.47 [Página 11]
A pequena vila de Santiago de Jerez teve uma vida breve e difícil. Instalada com o objetivo de reduzir e encomendar os indígenas que viviam na região chamada de Itatim, ela sofreu o assédio constante dos índios Paiaguá e Guaicuru. A vila chegou a ter somente 15 moradores. Na segunda década do século XVII, passou a sofrer a visita regular dos “bandeirantes” de São Paulo, o que levou ao seu abandono em 1632.48 Uma investigação, feita junto à Audiência de Charcas quanto aos motivos do abandono, levantou a suspeita de que um morador, Diego de Orrego y Mendoza (neto de portugueses), juntamente com outros, teria estimulado os paulistas que por ali passavam a assediarem os índios da região e assim forçar o despovoamento da vila.49 Vários moradores, inclusive Mendonza, terminaram migrando para as redondezas de São Paulo.
A região guairenha, que ocupava, grosso modo, a margem esquerda dorio Paraná, ficava no meio do caminho que ligava São Paulo a Assunção, e foialvo de disputas entre espanhóis e portugueses até o século XVIII. Ali os espanhóiscriaram quatro cidades: Ontiveros, de vida breve; Ciudad Real, Villa Rica doEspírito Santo e Santiago de Jerez, esta estritamente fora do chamado Guairá, masparte desta governação. As três vilas, juntamente com Assunção, comporiam aProvíncia do Paraguai, separada da do Rio da Prata em 1617.Ademais, instalou-se em lugar ainda incerto, mas provavelmente nas cabeceirasdo rio Jejui-Guazú, o porto de Mbaracayú, que servia ao embarque da principalriqueza regional, a erva-mate, colhida naturalmente pelos índios, sob o regime dotrabalho compulsório da encomienda, na serra do mesmo nome. O porto, apesar denunca ter se tornado vila ou cidade, concentrava, relativamente, uma numerosapopulação sazonal.50 Mercadorias vindas por vários caminhos, inclusive pelo de SãoPaulo, sobretudo tecidos, serviam a um comércio de trocas regulares com a erva, nesteentreposto.51 Indícios sugerem que após o abandono de Villa Rica, em 1632, naesteira dos ataques bandeirantes, a cidade tenha se trasladado para as cercanias deMbaracayú, onde permaneceu pouco tempo. Depois assentou-se na região deCuruguaty e dali foi trasladada às margens do rio Jejuy, em 1644. Uma parte dapopulação teria permanecido em Curuguaty e alterado o nome da vila para Villa deTalavera del Rey. O assédio Paiaguá à Villa Rica do rio Jejuy teria levado à reuniãode ambas no sítio de Curuguaty, novamente sob o nome de Villa Rica. Ali ficou até1676, quando outros ataques bandeirantes na região fomentaram novo abandono.52A região guairenha (aqui incluindo Jerez), fronteiriça, permaneceu semprecom o estigma de terra rebelde. Em 1589, o governador criollo da Província,Hernando Arias de Saavedra, ameaçou de desterro ao Guairá a todos os quedesobedecessem a suas ordens. Em 1602, já em seu segundo mandato na função,o próprio Saavedra desterrou para Jerez a um morador de Assunção, Lourenço [Página 12]
Quando refletimos sobre os assentamentos urbanos desaparecidos ou traslados nesta ampla espacialidade, não se pode deixar de falar em Esteco. Ela teria sido fundada em 1566 por um grupo de rebeldes amotinados contra o governador Francisco de Aguirre.66 Criada sem ritual de fundação, foi localizada no entroncamento do caminho do Peru com o que vinha do Chaco paraguaio. Sua fundação se articularia com a de outra cidade instalada no meio da região chaquenha, também abandonada, Concepcíon de Bermejo (1585), sobre a qual falaremos mais adiante. Ambas permitiriam a estruturação de um caminho que ligaria Assunção a Tucumã sem passar por Santa Fé, e partilhariam uma história comum de assédios dos grupos indígenas do Chaco, especialmente os Paiaguá e Guaicuru, e disputariam as mesmas encomiendas de índios dos grupos Matará e Guacará, ambos Toconoté.67
A primeira Esteco se instalou nas bandas orientais de Santiago de Estero, nasmargens do rio Salado, região de fronteira com o Chaco, e um dos limites da ocupaçãoespanhola. Assim como Estero e Tucumã, faria alianças com os índios Toconoté e Lule.A cidade prosperou, mas foi trasladada no começo do século XVII para servir deanteparo contra outros grupos indígenas que assediavam a região chaquenha. Nonovo sítio, recebeu o nome de Nuestra Señora de Talavera de Madrid, mas continuoua ser conhecida como Esteco.68 O contrabandista Acarrete du Biscay, que passou porela na década de 1650, fala de como havia sido “grande como Córdoba”, masestava decaída, assediada por “tigres que comem crianças” e “moscas venenosas”.69A cidade padeceria um grande ataque dos índios Mocovíes em 1686, e um terremotoarrasador em 1692, sendo definitivamente abandonada.
Sua origem rebelde serviria como sina, e seu destino, como lição moral. Acidade ganharia fama de “ciudad maldita”, a “Sodoma e Gomorra” de Tucumã, jáque nela corria a fama de que as casas de jogos e prostituição prosperavam sem freio,inclusive com a participação de altos membros do clero. O terremoto sacramentaria amaldição. As versões sobre o fim de Esteco transitam entre o castigo divino e asmudanças de rota de circulação de mercadorias. A trajetória desta cidade reúnealgumas destas características comuns às cidades coloniais fundadas nestes temposiniciais da “conquista”: criadas como atos de vontade de autoridades ou de dissidentes,padecem da precariedade proporcionada pela instabilidade das relações com osindígenas, com a natureza que a abriga e com a transitoriedade dos caminhos e rumosda colonização. A moralidade presente na narrativa de Esteco serviria também comoensinamento sobre o que não se fazer ao desenvolver uma cidade. [Página 16]
A PROVÍNCIA DO RIO DA PRATA
Completando esta espacialidade, e percorrendo as jurisdições coloniais deste mundo platino, chegamos à Província do Rio da Prata. Surgida formalmente em 1617, depois de separada da Província do Paraguai, com a qual formava antes uma unidade, a ela coube quatro cidades, assim como ao Paraguai, numa divisão salomônica. Ao Paraguai, como já dissemos, além de Assunção, coube Ciudad Real, Villa Rica e Santiago de Jerez. Ao Rio da Prata, Buenos Aires como centro, mais as cidades de Santa Fé, Corrientes e Concepción de Bermejo.
Buenos Aires, localizada numa das extremidades da rota potosina, próximaao Atlântico e na boca do Rio da Prata, foi uma cidade que também teve umdestino pouco salutar naquilo que a memória sacralizaria como sua primeirafundação. Buenos Aires fora criada pelo adelantado Pedro de Mendoza, em1536, com o nome de Nuestra Señora de Santa Maria del Buen Aire. As aliançascom os andarilhos Querandíe garantiram alguma estabilidade inicial, logosubstituída pelas hostilidades e, por consequência, pela fome e miséria doscolonos.70 Schmidl, nosso cronista-soldado já citado aqui, participou da fundaçãoe relatou uma penúria tão grande, que obrigara os moradores sobreviventes acomerem ratos e couro de sapatos. Até suspeitas de canibalismo cercam o queseria a dramática história destes primeiros povoadores, levando ao abandono dosítio em 1542.71 Contudo, há outras versões: da cidade de Assunção, já maisestabilizada, partiram ordens do novo governador, Domingos de Irala, escolhidopelos próprios colonizadores, para que os moradores abandonassem Buenos Airese se trasladassem para a vila assuncenha, o que foi feito. Essa demanda bem podeser interpretada como uma política de concentração das escassas forças europeiasem um único lugar. Seja como for, a história da primeira Buenos Aires parece tersido marcada pelo fracasso na manutenção das alianças indígenas.A cidade portuária seria refundada em 1580, no sentido inverso, partindode Assunção. Juan de Garay fundaria Santa Fé e depois Ciudad de Trinidad, emsítio mais ao norte do de Pedro de Mendoza, num movimento de articulaçãoregional que conectaria caminhos terrestres e fluviais e consolidaria um espaçocolonial. Desde a década de 1550 que reclamos de autoridades, como a dolicenciado Juan de Matienzo, reivindicavam a (re)criação de uma cidade noestuário platino para dar abrigo às naus espanholas e para o escoamento demercadorias vindas das regiões andinas e tucumenhas, esta última em processode consolidação e simbiose com o Prata.72Aos poucos, a vila portenha se estabilizou, especialmente depois que a rotapara Potosí ganhou força com o comércio legal e, sobretudo, ilegal. A separação das províncias fortaleceu a posição de Buenos Aires naquele espaço, e apesar daretórica queixosa sobre a pobreza dos moradores quando se solicitavam à Coroaautorizações de comércio, Acarette du Biscay descreve a cidade na década de1650 como muito aprazível, cheia de casas de barro, feitas com hortas e pomar,e com residências de comerciantes ricos muito “adornadas”.73Gradativamente articulada com Buenos Aires, a vila de Santa Fé, La Vieja,como ficou conhecida, foi fundada também por Juan de Garay, em 1573. Construídana beira do rio San Javier, um afluente do Paraná – antigamente chamado rio dosQuiloázas, numa referência a estes índios do grupo Chana que ali viviam –, erapasso obrigatório das pessoas e mercadorias que iam e vinham desde Assunçãorumo aos caminhos potosinos e portenhos. Era uma espécie de cidade-ponte entre omundo portenho e o assuncenho e, para alguns historiadores, região de descargade mestiços, jovens conquistadores sem encomiendas e rebeldes.74Ali estabeleceu-se um dos personagens mais poderosos da governação doParaguai e Rio da Prata, o criollo Hernandarias de Saavedra, três vezes governadore um dos artífices da separação das duas províncias em 1617. Santa Fé, apesar debem-sucedida em suas redes de alianças indígenas e sua boa posição na circulaçãofluvial, foi trasladada entre os anos de 1650 e 1660 em função da erosão dasmargens do rio San Javier, mas sobretudo em função dos assédios praticamentediários dos Guaicuru que avançaram pelo Chaco. No traslado, planejado, a anteriorposição dos proprietários e edifícios foi replicada no novo sítio.75 As ruínas de SantaFé, La Vieja, foram descobertas no final da década de 1940.
O mesmo impulso que partiu de Assunção para fundar Buenos Aires e Santa Fé, resultaria ainda na criação da cidade de Vera de las Siete Corrientes (1588), por Juan Torres de Vera y Aragón, nas margens do rio Paraná;76 e de Concepción de Buena Esperanza, fundada por Alonso de Vera, em 1585. Esta cidade ficaria conhecida como Concepción de Bermejo, em função da proximidade do rio de mesmo nome. Fundada em pleno Chaco Austral, chegou a ser uma das cidades mais populosas da espacialidade, e buscava servir tanto como ponta de lança da redução e “pacificação” dos indígenas chaquenhos quanto para diminuir as distâncias entre Tucumã, Charcas e Paraguai, graças à sua posição estratégica.Em carta ânua do padre jesuíta Diego de Torres, de 1609, ele afirma que a vila tinha 70 vecinos, sendo 25 deles encomenderos, e mais de 6 mil índios de serviço, não lavradores, “gente viva y muy vil.... colerica”.77
A história de Bermejo cedo se vinculou a Santiago de Estero, e a governação de Tucumã buscou atraí-la para sua jurisdição até a criação da Província do Rio da Prata, em 1617, que encerrou a questão. Como já dissemos, Bermejo e Estero partilhavam e disputavam encomiendas de índios Toconoté, e também as ameaças de Guaicuru e Paiaguá, que assediavam continuamente a povoação. O Chaco, espaço insubmisso às pretensões coloniais espanholas, funcionou como uma fronteira entre o Rio da Prata, Paraguai, Tucumã e Santa Cruz de la Sierra, esta última, resultado da fundação de 1561, mas também com história de itinerância. Assediada fortemente pelos Paiaguá, a vila de Bermejo foi abandonada em 1633 e seus moradores se refugiaram em Corrientes [Torre Revello (1943)]. As ruínas do antigo assentamento foram encontradas na década de 1940, num sítio hoje conhecido como Km 75. Atualmente há uma cidade com o mesmo nome, fundada no século XX, nas proximidades da antiga cidade, que a emula.
De todo modo, no balanço deste primeiro século, fica claro que a década de 1630 foi um “período crítico” em grande parte da espacialidade platina:79 o abandono das vilas guairenhas e do Itatim em função dos assédios bandeirantes, a grande rebelião Calchaquíe que abalou Tucumã neste mesmo ano e a destruição de Concepción de Bermejo representaram importantes refluxos das fronteiras coloniais espanholas na espacialidade platina. Em todas elas, de uma forma ou de outra, a questão indígena cumpriu um papel fundamental.
CONSIDERAÇÕES FINAISMuitos dos assentamentos urbanos aqui brevemente apresentados, quandovistos em conjunto, possuem destinos e histórias com semelhanças significativas,a despeito das também variadas dessemelhanças. Pensados, em geral, comopontas de lança da conquista e colonização europeia em sertões e fronteiras emprocesso de expansão, eles foram, de modo aparentemente paradoxal, semprereféns das alianças e das relações com os indígenas, pelo menos neste primeiroséculo e meio da colonização. Primordialmente, as vilas e cidades desapareciamou tinham seus moradores deslocados para outros sítios, na medida em que asalianças ruíam violentamente, ou se fazia necessário aproximar-se de novosgrupos indígenas na lógica da disputa colonial por encomiendas e fornecimentode mão de obra e víveres de abastecimento. Elas serviram para expandir e buscarconsolidar estas fronteiras coloniais através do abrigo de levas de colonosdesejosos de serem, eles próprios, encomenderos.80Por outro lado, grupos indígenas, chamados pela lógica da colonização de“insubmissos”, pois refratários às alianças com os europeus, também buscaram minarmuitos destes assentamentos. Isso não descarta de todo, desta análise geral, outrasrazões, como as ambientais – erosões, pestilências, catástrofes naturais – ou20 ANAIS DO MUSEU PAULISTA – vol. 29, 202181. Morse; Domingues(2017, p. 116). econômicas, como falência de projetos mi [Páginas 17, 18 e 19]