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“O movimento negro em Belo Horizonte: 1978-1998”, Marcos Antônio Cardoso
1 de janeiro de 2001, segunda-feira. Há 23 anos
1. 1978: A PRIMAVERA DE MAIO DO MOVIMENTO NEGRO" a palavra negro pulando de boca em bocacomo se fosse uma pimenta acesaos olhos queimando as vendaso fogoo vento das lembranças gerando o elodas palavras-lançaso batuqueas lanças afiadas em dias de pedra-limodias de cismade pólvora que já tá prontae palavras que se reencontram para reportarum futurosem algemas."16(CUTI)No período anterior à abolição da escravidão, homens e mulheres negrasescravizados, encontraram inúmeras formas para confrontar com a classe dos senhoresde escravos. Entre algumas dessas, podemos destacar o banzo - espécie de greve defome -, o assassinato individual do senhor pelo escravo, a fuga isolada, o abortopraticado pela mulher negra escrava, o suicídio, a organização de confrarias religiosas, amanutenção das religiões africanas, as guerrilhas e insurreições urbanas (Alfaiates,Balaiada, Cabanagens, Farroupilha, Revolta dos Búzios, Chibata, etc.)17.A esse fenômeno presente na trajetória histórica dos povos africanosescravizados no Brasil e seus descendentes, nomeamos de resistência negra, ou seja, areação individual e coletiva ao ato cruel de negação física e cultural da humanidade dehomens e mulheres negras. Os movimentos ocorridos ao longo da escravidão contam aintensa luta de negros e negras e são uma resposta à brutal repressão física e a violênciaa que a população negra foi submetida."Fazê-los trabalhar bem e surrá-los melhor" – este velho refrãoportuguês do século XVII traduzia o usual, mas não o mais cruel, da vida donegro. A crônica das crueldades e do sadismo desenfreado é tão rica que épreciso selecionar alguns casos típicos: eles não são os únicos – sãodemonstrativos de cada espécie de sofrimento imposto aos negros Um desses casos aconteceu no Recôncavo Baiano, perto de SantoAmaro. Em uma das casas-grandes, um senhor à mesa e sua mulher eramservidos por uma mulatinha [grifo meu] de olhos muito bonitos. O homemelogiou os olhos da mulata. No dia seguinte, a mulher ofereceu um grandejantar que se encerrou com uma sobremesa especial. Em uma bandeja de prata,coberta com uma toalha de linho, ela serviu ao senhor de engenho o doceespecial: ao levantar a toalha, ele viu horrorizado os dois olhos da mulata,arrancados a ponta de faca.(...) Na crônica das barbaridades da época conta-se que olhos, seios,mãos e até vaginas assadas foram à mesa dos grandes e senhores. (...) Um dosmais terríveis quadros da escravidão é o destino dado às “crias” dos negros.Não era econômico que as negras criassem seus filhos: por isso, nosperíodos em que o preço do escravo estava em baixa, os recém-nascidos erammortos. Jogados ao chão, pisados, enterrados vivos – mortos – para nãocustarem nada ao senhor: nem na perda de tempo do trabalho da negra, nem noparco alimento que o negrinho [grifo meu] iria comer até aos dezesseis anos,quando começasse a trabalhar.”18Vale ressaltar que dentre todas as formas de lutas desenvolvidas pelo povonegro, a organização dos quilombos (comunidades constituídas por negros e negraslivres – além de povos indígenas e brancos marginalizados – estruturados em leiscomunitárias), constituiu-se na mais avançada e sofisticada organização de resistênciacoletiva, em especial a “República Negra dos Palmares” que existiu de 1595 a 1695 echegou a abrigar 50.000 pessoas, na Serra da Barriga, hoje, Estado do Alagoas.“Foi no século passado, na sua primeira metade, que ocorreram asprincipais lutas do Negro contra o sistema escravista, mas foi neste período queas concepções libertárias e de progresso começam a tomar conta dos setoresmédios da população. E tais setores integram a partir da metade do século, aslutas abolicionistas. Após a Independência do Brasil, caminham em busca daRepública, da industrialização, unindo-se aos Negros pelo fim da escravidão. É,a partir daí, que nosso País começa a viver o processo de distensão, lenta,gradual e segura. [Páginas 20 e 21]

Na escola, aprendemos do primário ao colégio que a princesa Isabel,aproveitando-se da ausência de D. Pedro II, num ato de bondade, assinou a LeiÁurea. Na verdade, a abolição da escravatura é fruto de um conjunto decontradições vividas na época pela população brasileira e mesmo assinada pelaprincesa, não deixou de ter suas salvaguardas: a Imigração Européia, a direçãodos setores liberais. Ela surge como fruto das lutas do Negro, contra aescravidão, dos setores liberais contra a monarquia, o ascenso do capitalismoinglês em busca de novos mercados de consumo para seus produtosindustrializados, incompatíveis como o modo de produção escravista.19No período compreendido entre 1888 – marco da abolição formal do trabalhoescravo no Brasil – até os anos 70 do século XX, com raras exceções, os negros enegras não puderam expressar por sua própria voz, a luta pelo reconhecimento da suaparticipação social."Durante o período da escravidão o desenvolvimento do Negro foiimpedido, e após a Abolição, não atendia as exigências de trabalho assalariado.Mesmo os setores abolicionistas não tinham interesse em estimular edesenvolver um processo de adaptação do negro ao novo modo de produçãoinstalado no País. Foi, então, instituído a sua substituição por imigranteseuropeus. Durante todo o período da escravidão, forjou-se a ideologia desuperioridade racial. A burguesia surgida com o novo modo de produção erabranca; os primeiros operários eram brancos. Os imigrantes chegados ao Brasilnão tinham origem africana.Sem trabalho, com o estigma de escravo-coisa e não ser humano, oNegro discriminado pela sociedade, foi jogado à marginalidade. Às favelas emocambos. À fome. “Roubar” era a única alternativa para continuar vivo.Somente após a 1ª guerra mundial com o processo de industrialização, o negrocomeça a integrar o processo produtivo. Ao mesmo tempo que ocorria aimigração japonesa, ocupando terras cedidas pelo governo.Sem compreender o próprio condicionamento na sociedade, as formasorganizativas do negro não eram mais os Quilombos. Aqui, surgiram os gruposde capoeira, as entidades recreativas; as religiosas. E tais associações sofriam violentas perseguições policiais. Aqui, os setores dominantes da sociedade jánão perseguiam o escravo. As classes médias, não lutavam contra a Abolição.Sem “Dono”, que justificasse sua opressão, os Negros eram perseguidos comomarginais, como desempregados, como bagunceiros. Agora, a sociedadebrasileira tinha uma nova organização sem escravos – com imigrantes europeus,ocidental, cristã e liberal.O Negro formava uma massa miserável, sobrevivendo como dava, seminformação, sem organização, sem técnica. Trazia o estigma do escravo e todasas forças para libertar-se do senhor. Um ser violento e incapaz dentro da novasociedade; com formas de ser diferentes. Um animal com cara, corpo e voz deser humano. Um homem para ser visto como homem, mas não para ser tratadocom tal. Desde então, ser negro passou a ser vergonha para o indivíduo e umperigo para a sociedade. E a perseguição policial ao negro já não era um fatopolítico, mas uma perseguição comum.”20Como forma de resistir a essa situação surgem, neste período, diversas entidadese grupos negros em todo país, principalmente nas capitais e cidades do interior, comoassociações beneficentes e recreativas, clubes, jornais e grupos culturais. Os clubescombatiam o preconceito racial, buscavam a integração do negro na sociedade epropunham uma estrutura organizativa para a comunidade, construindo as suas sedescom base no sistema de ajuda mútua e cooperação.Nesse sentido, cabe registrar mesmo que sucintamente, algumas das formas deorganização que os negros e negras encontraram para responder àquela situação demarginalização e de abandono social. Dentre elas é fundamental destacar a “A Revoltada Chibata”, a importância da “imprensa negra”, o significado político da Frente NegraBrasileira e do Teatro Experimental do Negro.Pouco mais de 20 anos após o 13 de maio de 1888, precisamente em 1910,eclodiu na cidade do Rio de Janeiro, uma sublevação de marinheiros, na sua maiorianegros, que exigiam o fim dos castigos corporais impingidos aos marinheiros com achibata - prática remanescente da época da escravidão e vigente até aquele momento naMarinha Brasileira - além de melhores condições de trabalho e salários. Este [Páginas 22 e 23]

positiva que a Abolição da escravatura, até então vista, como uma dádiva decima para baixo, do sistema de S. Alteza Imperial.” 41Na prática, o MNU efetiva e consolida, ao longo dos anos, aquela proposição doGrupo Palmares42, com a divulgação de um manifesto nacional pela consciência negra.O manifesto tornou-se o ponto de partida do debate e da mobilização naciona lem torno da luta contra o racismo. Segundo o Movimento, era necessário a construçãode um mote, de uma palavra que pudesse centralizar e mobilizar pessoas, que chamassea atenção da população negra, que expressasse o conteúdo histórico das lutas por simesma. A palavra que emergiu foi “consciência negra.” Vejamos, na íntegra, omanifesto nacional do MNUCDR, divulgado no dia 20 de Novembro de 1978:“AO POVO BRASILEIRO! MANIFESTO NACIONAL DOMNUCDR - MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO CONTRA ADISCRIMINAÇÃO RACIAL - A ZUMBI - 20 DE NOVEMBRO:DIA NACIONAL DA CONSCIÊNCIA NEGRANós, negros brasileiros, orgulhosos por descendermos de ZUMBI, líderda República Negra de Palmares, que existiu no Estado de Alagoas, de 1595 a1695, desafiando o domínio português e até holandês, nos reunimos hoje, após283 anos, para declarar a todo o povo brasileiro nossa verdadeira e efetiva data:20 de novembro – DIA NACIONAL DA CONSCIÊNCIA NEGRA!Dia da morte do grande líder negro nacional, ZUMBI, responsável pelaPRIMEIRA E ÚNICA tentativa brasileira de estabelecer uma sociedadedemocrática, ou seja, livre, e em que todos – negros, índios e brancos –realizaram um grande avanço político e social. tentativa esta que sempre estevepresente em todos os quilombos.Hoje, estamos unidos numa luta de reconstrução da sociedadebrasileira, apontando para uma nova ordem, onde haja a participação real ejusta do negro, uma vez que somos os mais oprimidos dos oprimidos, não sóaqui, mas em todos os lugares onde vivemos.Por isso negamos o 13 de maio de 1888, dia da abolição da escravatura,como um dia de libertação. Por que? Porque nesse dia foi assinada uma lei que [Página 43]

Uma das questões importantes no processo de desmistificação da “democraciaracial brasileira” se deu na contraposição ao discurso da sociedade brasileira de que asrelações raciais no Brasil são mais humanas do que nos Estados Unidos e na África doSul e de que tal característica de nosso sistema escravista ter sido suave, mais humano,por que não dizer, quase doce.“Em relação ao mito da democracia racial, tem sido muito comumcomparações das situações e conflitos raciais do Brasil com os Estados Unidos.Foi sempre cômodo chamar a atenção para as tensões claras, explícitas, que láexistem e contrastá-las com a aparente tranqüilidade vigente no Brasil. Aquinão surgiram, por exemplo, movimentos como a Ku Klux Klan, sociedade"secreta" criada logo após o fim da guerra civil, dedicada a impedir o exercício,por parte dos ex-escravos, de quaisquer direitos que lhes viessem a serconcedidos pelo governo americano”. 108Ao contrário dos Estados Unidos e da África do Sul, nunca houve entre nós,desde a Abolição, qua lquer dispositivo legal que determinasse os lugares que os negrose brancos devam ocupar em veículos coletivos, restaurantes, banheiros públicos –injustiças que foram o estopim da revolta cívica do líder negro Martin Luther King,ampliando o movimento por direitos civis nos Estados Unidos e a reação do povo negrosul africano contra o “Apartheid” liderada, entre outras organizações, pelo ANC -Congresso Nacional Africano de Nelson Mandela e outras lideranças. Também, não eranecessário, pois, no Brasil, o “negro sabe o seu lugar”; 109 comumente, não freqüenta outêm problemas em clubes; são confundidos com serviçais de hotéis; utilizam oselevadores de serviços nos condomínios; são suspeitos e vigiados quando adentram asagências bancárias, lojas, shopping centers ou são maltratados/mal-atendidos emrestaurantes e guichês de repartições públicas ou prestadores de serviços de inúmerasempresas.“A aparente "harmonia entre as raças" existe em conseqüência de que,nos Estados Unidos, não existe, como no Brasil, essa intensa miscigenação, [grifo meu] que caracteriza os brasileiros. Estes fatos parecem confirmar a idéiade que as relações raciais no Brasil são pacíficas e igualitárias.Ao acreditarmos nisso, porém, caímos na chamada "armadilhaideológica": enxergar somente o que julgamos ou queremos ver, e não aquiloque está diante de nossos olhos. Qualquer análise detida, fundada em índicessociais ou na simples observação de nossos costumes revela a triste verdade:sob a máscara da cordialidade existe uma sociedade racista. (...) Portanto, ascontradições do "mito da democracia racial" podem ser constatadassimplesmente através da análise da realidade brasileira” 110É comum, nas comparações entre os quadros das relações raciais nos EstadosUnidos e no Brasil, se colocar o seguinte: o colonizador português se dignou misturar-secom negros e índios, por sua formação católica, seu caráter latino, a falta de mulhereseuropéias, a maior proporção de escravos; nos Estados Unidos a figura do mestiço seriapouco relevante na medida em que a formação protestante não permitia ao brancoreconhecer sua paternidade ao filho mestiço.“Contra este tipo de leitura deve-se afirmar o seguinte: a constituiçãode fronteira uma clara (e negra) em termo de identidade racial é uma conquistado povo negro norte americano, numa conjuntura específica de confronto racial;é o negro que não se deixa seduzir pelo mito da mestiçagem e se constituienquanto tal na identidade racial.” 111Um dos principais desafios enfrentados pelo Movimento Negro na luta pelaafirmação política da consciência negra, era a necessidade de desmontar as bases dopreconceito racial, da discriminação e do racismo, baseados em estereótipos negativosque a historiografia “oficial” cristalizou sobre a população negra brasileira. Essesestereótipos, via de regra, internalizados por todos (negros e não-negros), além defuncionar como redutores da humanidade de homens e mulheres, mascaravam arealidade social da população negra, como efeito do “mito da democracia racial”. Em1980, ao analisar a experiência do Teatro Experimental do Negro, Abdias doNascimento, alertava: [Páginas 92 e 93]

Porém, a questão que serve para melhor entendermos o problema doatual distanciamento do MNU e do Movimento de Mulheres é relativa àcomposição de classe. Contando em sua grande maioria com mulheres de classemédia, o Movimento de Mulheres não mostrou até agora nenhuma perspectivade implantação onde está o conjunto de mulheres que sofre mais diretamente aopressão sexual em condições sequer de identificar o problema.”241Nesse processo são discutidos a complexa inter-relação política e ideológicaentre sexo, raça e classe social; a relação do Movimento Negro Unificado com oMovimento de Mulheres; a questão sexual no interior do Movimento; os direitossociais, as relações de trabalho e legislação relativas às mulheres negras e,especialmente, os temas polêmicos como a questão do aborto e os que envolvem aquestão do controle da natalidade e as suas implicações na população negra, os direitosreprodutivos das mulheres negras e a questão da esterilização feminina. De acordo comLuíza Bairros, então Coordenadora Nacional e do Grupo de Mulheres do MNU, emdepoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito no Congresso Nacional em 1992 -uma iniciativa da então Deputada Federal Benedita da Silva, destinada a investigar aincidência de esterilização em massa de mulheres negras – “já em 1983, o MNU,através da sua seção no Distrito Federal, lança, o que eu suponho ser o primeiromanifesto do Movimento Negro, alertando para essas questões do controle da natalidadee as implicações sobre a população negra no Brasil”. [2 BAIRROS, Luíza. A esterilização de mulheres negras no Brasil. Salvador: Jornal Nacional doMovimento Negro Unificado, n. 22, ago. set. out. 1993, p.8. (Depoimento à Comissão Parlamentar deInquérito do Congresso Nacional em 23, jun. 1992)]

“Em julho de 1982, o economista Benedito Pio da Silva, assessor do Grupo de Assessoria e Participação (GAP), órgão do Banespa, criado durante o governo Maluf, ao expor seu projeto de controle da natalidade para o Estado de São Paulo, que segundo denúncias fazia parte de um acordo entre o governo do Estado de São Paulo e instituições japonesas, com o título "O censo de 1980 no Brasil e no estado de São Paulo e suas curiosidades e preocupações informou que o objetivo do programa era reduzir a população negra (pretos, pardos, mulatos, etc.) porque no ano 2000 essa população seria maioria no país, superando mais de 60% a população branca brasileira, podendo então tomar os pontos chaves do poder; propôs então uma campanha nacional para conscientizar nossos governantes, nosso povo e nossos religiosos de que era preciso iniciar desde já um trabalho de controle de natalidade (junto a população negra) para evitar as conseqüências da explosão demográfica.” [MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO. Controle da natalidade e suas implicações na população negra. Brasília: MNU/DF, out. 1993. Cf. 1978-1988 – 10 anos de lutas contra o racismo. Op. Cit, p.36]

Para que houvesse avanços políticos institucionais e conquistas dereivindicações na sociedade brasileira, foi preciso muita luta das mulheres negras, quese organizaram nos bairros, cidades, estados, articulando-se com outros movimentos anível nacional e internacional. E, através da pressão e outros mecanismos, foram seimpondo na sociedade e conquistando novos espaços.“O meu sonho era ser médica. Para mim ser médico é ter um horizontemaior, é atuar de fato junto à população que é igual a mim, agente pobre.Apesar de não ter feito a medicina na escola, hoje sou uma médica formadapela vida, e em vez de estar atrás de um consultório, especialista só numa área,estou com o povão, na favela, com as crianças e trabalhadores desse paísinteiro. Esta é a minha medicina, que não é com um bisturi, mas com umapanela, com uma vassoura, pano de chão e fazendo comida que eu tanto gostode fazer. É como se fosse um medicamento que eu receitasse ao paciente.Exerço atividade sindical e cuido de 185 crianças carentes, que tiramos da rua eestamos recuperando lá na CAMESI – Centro de Acolhimento ao Menor doSanta Inês. Esses meninos são os meus clientes. Ajudo-os na formação pessoal,escolar e profissional. Nem sempre o sonho se realiza como a gente imaginou,mas Nosso Senhor sabe o nosso papel e nos encaminha colocando na mão decada um a ferramenta necessária. Isso é muito bonito, é grandioso. Todo mundomerece viver seu sonho de ser cidadão. Ter direito a casa, escola e saúde. E nósda raça negra temos um motivo muito mais sério para lutar: nossosantepassados desbravaram essas matas, construíram esse país e ainda somosdiscriminados. Temos que continuar a lutar para mudar a história e sermosinseridos em todos os segmentos da sociedade. Aí poderemos ser felizes e viverem paz.”244 [Página 185 e 185]

ensinaram apenas a ser cozinheira, lavadeira, passadeira. E eu realizei meusonho trabalhando como líder comunitária na minha comunidade.Eu faço meu trabalho como se eu fosse realmente uma assistente social,ajudando e aconselhando as pessoas, procurando ajudar as famílias, os filhos, ossem-casa, as crianças carentes. Qualquer problema da comunidade que estiverao meu alcance, eu procuro ajudar.Eu tive um sonho uma vez de ser bailarina, mas minha família tinhapreconceito. Quem dançava, quem desfilava no carnaval era prostituta, e eununca pude ser bailarina. Mas eu realizei o meu sonho através da minha filha,que hoje é uma bailarina profissional. Depois de casada, filhos criados, realizeio sonho, desfilei numa escola de samba no carnaval, o Afoxé e a Escola deSamba Unidos do Vera Cruz.”248Vale ressaltar, também, os debates e as lutas encaminhadas pelas mulheres nesteprocesso, em especial as campanhas “Não matem nossas crianças” organizada peloCentro de Articulação de Populações Marginalizadas – CEAP/RJ e em Belo Horizonte,pelo Coletivo de Mulheres Negras; a Campanha Nacional pela PaternidadeResponsável, articulada pela Coordenação Nacional das Entidades Negras - CONEN eem Belo Horizonte, pelo Fórum das Entidades Negras e a Campanha Nacional Contra aEsterilização em Massa de Mulheres Negras encaminhada em diversos estados peloMNU, pelo Geledés - Instituto de Mulheres Negras de São Paulo e pelo CEAP/RJ eCriola/RJ sob a coordenação da médica Jurema Werneck, entre outras; com o objetivode denunciar a esterilização massiva de mulheres negras como processo de eugenia econtrole populacional.“Considero a convocação do Movimento Negro Unificado na CPI, umavitória, porque essa questão da esterilização está completamente permeada peloque vimos discutindo há anos, que é o problema do racismo. O nossodepoimento veio demonstrar o quanto esse controle da natalidade, como vemsendo conduzido no país, tem hoje um endereço certo, que é o povo negro.

Existem vários indicadores de que vivemos um processo mais ou menoscamuflado de tentativa de extermínio do povo negro brasileiro.O que mais marcou, fundamentalmente, os anos 80 e agora, 90, é oaumento da violência racial com a ação da polícia sobre os negro; comocrescem os casos de pessoas negras que são mortas pela polícia com base emacusações que nunca são completamente evidenciadas. Existe hoje, no País,uma pena de morte à raça negra que é praticada por grupos de extermínioligados à instituição policial, incluindo crianças e adolescentes de rua que são,majoritariamente negros.Apesar da especificidade dessa CPI, abordamos a questão da raça negra de umaforma abrangente, para mostrar que todo esse quadro é complementado como oprocesso de esterilização que está atingindo mais brutalmente as mulheresnegras. Na verdade, está endereçado a elas.”249Em Belo Horizonte, o N´zinga – Coletivo de Mulheres Negras – foi criado em1986, cujo nome do grupo é uma homenagem à tradição africana das mulheresguerreiras que combateram os escravagistas e colonizadores europeus; ao registrar oexemplo da rainha N´zinga M´bandi de Angola, contemporânea de Zumbi dosPalmares e soberana competente no enfrentamento militar e político aos portugueses eholandeses. O N´zinga é uma organização feminista de mulheres negras que luta contraa opressão de gênero e a opressão racial/étnica.“Nós Mulheres Negras somos discriminadas no trabalho, ondeocupamos as profissões menos qualificadas e pior remuneradas. Constituímos omaior contigente de analfabetos e apresentamos o menor preparo profissional.As campanhas de esterilização, mascaradas sob o rótulo de controle danatalidade visam, impiedosamente, restringir o nascimento de crianças oriundasda população negra e pobre. Os traços que herdamos muito honrosamente denossas antepassados sã considerados fora dos padrões estéticos de beleza emnosso país. Nossa imagem é distorcida pelos meios de comunicação de massa.Nós sabemos que nas escolas o modelo ideal é marcado pelasuperioridade do brancos sobre o negro, e do homem sobre a mulher. [Páginas 190 e 191]

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