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A “nobreza da terra” e o comércio de animais no centro-sul do Brasil: redes sociais, crédito, controle social e hierarquia no além-mar Tiago Luís GIL
201108/04/2024 02:26:48

moldou o comportamento econômico, ela acabou incorporando a hierarquia militar comorégua social. Neste sentido, mais do que as armas, os capitães comandavam seus escravos, suacasa, suas regiões, e, assim, controlavam a economia.Além do mando sobre os escravos, os capitães também controlavam a política. Nosdistritos, havia um comandante capitão. Nas vilas, o capitão-mor. Na capitania, o capitãogeneral. Sem falar dos capitães de ordenanças da nobreza. Mas ser capitão não era algo inato,ainda que em muitos casos fosse quase hereditário. Ser Capitão era algo desejado, umreconhecimento da ascensão ou manutenção da posição social. E quem acabava regulando,desta forma, a reprodução da hierarquia no ultramar, era a Coroa que tinha o poder deconceder e confirmar aqueles postos, assim como os demais.A força dos capitães (e outros oficiais) e seu impacto na economia do mundo dastropas

Em Sorocaba, 1790, os oito maiores senhores de escravos detinham 27% do total decativos da Vila. Somente o Capitão-mor era proprietário de 7% do total, somando oitenta esete pessoas. Em seguida vinha o capitão Manuel Alvares de Castro, do bairro do Piraíbu, com cinqüenta e um escravos. Os demais eram o Alferes Francisco Paes, os Guardas-mores Joaquim José de Almeida e João de Almeida Leite, o Tenente Coronel Paulino Aires de Aguirre, José Pires de Arruda e o Capitão Francisco Luis de Oliveira. Como se percebe, os maiores proprietários, com apenas uma exceção, eram todos portadores de patentes expressivas, e há uma notória correlação entre patentes e número de escravos, especialmente aquela maior da governança local, o posto de Capitão-mor.

Em Curitiba o maior senhor era, também, o Capitão-mor, Lourenço Ribeiro deAndrade, por volta de 1789, com vinte e cinco escravos. O também capitão Francisco XavierPinto era o segundo senhor, com vinte e quatro cativos. O Capitão Manuel Gonçalves deSampaio era o terceiro, com dezenove pessoas, seguido de Antonio José Ferreira, com quinze,e Rita da Conceição França, com onze. Juntos, estes maiores senhores possuíam 26% do totaldos cativos da vila de Curitiba. E todos, com exceção de Rita da Conceição, eram capitães nomomento de elaboração da lista nominativa. [Página 2]

localidade e também das campanhas de conquista do sertão de Tibagi, durante a década de177015.15Também na fundação da vila estavam o Capitão Inácio Taques de Almeida e o tenenteJeremias de Lemos Conde, que nesta ocasião foi eleito Juiz de Órfãos. Em Castro,particularmente, se percebe notoriamente, tal como em Lages, a divisão geográfica destespequenos potentados, ainda que todos participassem da governança local. Lemos Conde tinha suaárea de atuação na Ponta Grossa, mais ao sul da vila, enquanto o Alferes Luis Castanho atuava nobairro do Lago e os Carneiro Lobo no centro da mesma, mas com interesses em áreas mais aonorte, assim como no Bairro de Santo Antonio16.

Em Sorocaba não era diferente, ainda que houvesse uma maior disputa entre as elites locais. O tenente-coronel Paulino Aires de Aguirre era um sujeito com muita força, alianças locais e negócios. Investia no contrato dos Dízimos, no contrato das passagens das bestas, em tropas e em negócios de fazenda seca e molhada. Em posição política oposta estava o Capitão-mor Cláudio de Madureira Calheiros que igualmente era negociante de animais e fazendas, além de ser aliado e parente do Capitão-mor de Itu, Vicente da Costa Taques Goes e Aranha. Da mesma forma, em Sorocaba havia também uma certa divisão espacial da área de atuação de certos capitães, ainda que a maioria fosse apresentada nas listas nominativas como residente na matriz. Mas encontramos o capitão Jacinto José de Abreu no Capotera, Manuel Álvares de Castro e Francisco Manuel Fiuza no Piraibu, um tanto distantes um do outro; Manuel Gomes de Carvalho e João Pires de Almeida Taques estavam no Iperó, mas em sub-divisões diferentes deste bairro, que era bastante grande se comparado com os demais17.

O conjunto destes dados nos traz algumas informações importantes. Em primeiro lugar,deve-se ter em conta a importância dos oficiais, especialmente os capitães, na economia local,como agentes econômicos diretos, comandando negócios, criações de animais, lavouras, lavras deminérios, dentre outras atividades que constituíam a base da economia regional. É certo que erauma economia relativamente pobre, se comparada, por exemplo, com os negócios desenvolvidosna Praça do Rio de Janeiro na mesma época18. Mas eram estes capitães locais, à exemplo doscapitães e coronéis Carneiro Leão e Gomes Barroso, que comandavam a dinâmica econômica. Nocaso da rota das tropas, os capitães eram os senhores daquela pobre economia, como os do Rio deJaneiro eram de grossa aventura.O controle social geograficamente limitado também caracterizava a ação política dos“capitães”, que poderiam ser tenentes, alferes ou detentores de postos maiores. E talvez nem fosse [Página 5]

décadas e ao longo deste tempo seu patrimônio só cresceu23. Há igualmente indícios de queele atuasse como tesoureiro dos tributos da passagem dos animais em Sorocaba, já na décadade 175024. Na década de 1770, era administrador do Registro de Sorocaba, negociante deanimais e produzia grande quantidade de alimentos25. Ele havia lutado nas guerras do sul,provavelmente nas lutas de reconquista de Rio Grande, onde foi encarregado dos soldadosdoentes que fez curar e assistir a sua custa26. Em 1776, a Câmara de Itapetininga o indicavaCapitão-mor, ainda que o posto fosse provido pelo governador da Capitania, Martins LopesLobo de Saldanha, por ser Oliveira Leme homem de possibilidades para decoro do mesmoposto e por ter naquela paragem uma propriedade. A própria criação do posto pelo governadorfoi questionada, anos depois, ainda que nada fosse alterado27.

Em 1795, assumia o posto de Sargento-mor de Itapetininga Salvador de Oliveira Aires, neto do Sarutaiá. Não sei até que ponto agiram os filhos de Oliveira Leme, mas certamente a figura com a performance mais destacada entre filhos e genros foi Paulino Aires de Aguirre, incorporado ao grupo familiar ao se casar com Ana Maria de Oliveira Leme, em 1765. Ele vinha de uma bem relacionada e tradicional família de São Sebastião (litoral da capitania) e rapidamente ocupou espaços relevantes dentro do grupo dos Oliveira Leme. Ele já havia combatido, soldado, com Bobadela na Campanha das Missões e na Praça de Santos como Cabo de Esquadra, segundo o governador de São Paulo, o Morgado de Mateus, que em 1766, logo após seu matrimônio, o fez Capitão de Auxiliares28.

Com o fim dos combates entre portugueses e espanhóis, Paulino parece voltar-se paraa vila de Sorocaba e ao núcleo parental de sua esposa, assumindo o posto de inspetor doRegistro de Sorocaba em 1779, sucedendo assim a seu sogro29. Nas décadas de 1780 e 1790,ele entraria em diversos negócios de animais, fazendas secas e, principalmente, arremataçõesde contratos, inclusive os Dízimos de toda a Capitania e os Registros de Passagem deanimais30. Em 1784, Paulino foi feito Tenente-Coronel do Regimento de Cavalaria LigeiraAuxiliar de São Paulo, quando tinha cerca de 50 anos31. Importa lembrar, contudo, que noinício da década de 1780 em uma provável tentativa de tornar-se Capitão-mor de Sorocaba,Paulino foi rechaçado pelos oficiais da Câmara, sendo acusado de ambicioso e de baixa esfera32.

Em 1796, Antonio Francisco de Aguiar substituía seu sogro, Paulino Aires de Aguirre,na administração do Registro de Sorocaba. Sua trajetória era razoavelmente semelhante.Aguiar era, provavelmente, natural de Sorocaba. Havia servido as tropas em Santos, porocasião da guerra com os espanhóis e depois fora para Sorocaba onde seguiu carreira naCompanhia de Auxiliares de Paulino Aires de Aguirre. Em 1776, ele passava de Portabandeira para Tenente, sendo logo depois enviado para Santos. Em 1784 ele fora promovido aCapitão do Terço da Infantaria Auxiliar de Serra Acima, quando Paulino fora promovido aTenente-Coronel. Entre 1788 e 1795 ele foi encarregado em diversas ocasiões de organizardiligências para a captura de prisioneiros fugitivos e criminosos, cumprindo um papel depolícia33.

Todas estas atividades foram destacadas pelos membros da Câmara de Vereadores em1799, quando passaram um atestado no qual salientava, inclusive, que os seus soldados ousubordinados além de uma cega obediência lhe tinham amor paternal e os pais de família oprocuravam para na Companhia do mesmo terem seus filhos praça pela boa doutrina comque os dirigia34. Em 1797, era a vez de Aguiar se reformar como Tenente Coronel, tendopouco mais de 40 anos. De 1795 até o início da década de 1810, Aguiar atuou comoadministrador do Registro e em outros contratos de arrematação nos quais estavainteressado35.Durante este tempo, construiu e reforçou diversos relacionamentos que tinhacom senhores importantes de outras localidades, vereadores, oficiais e negociantes, o quegarantiu uma ligeira expansão dos interesses da família para fora da vila36.Temos aqui três gerações de capitães e tenentes-coronéis. Estamos diante de um clãque pôde e soube ascender no plano local e, ao longo das gerações, estender seus interessesem um espaço maior. Não há dúvida que os conflitos na parte sul, tanto a chamada GuerraGuaranítica quanto os diversos embates posteriores à tomada de Rio Grande pelos espanhóisforam ocasião apropriada para a aquisição de status por aqueles cabeças de família. Mas nestecaso, não podemos exagerar, afinal, em comparação com outros grupos, mesmo de São Paulo,os nossos heróis não estiveram no front ou perto dele, com exceção de Paulino naGuaranítica, já que mesmo Salvador de Oliveira Leme ficou encarregado dos doentes, ou seja,na retaguarda. Mas o simples fato de terem estado alistados e participado em alguma convocação ou contexto de perigo era motivo para reconhecer formalmente suas prerrogativasde mando na sociedade, em tempos de guerra ou de paz.Tanto no caso de Oliveira Leme, como no de Paulino e Antonio Francisco, há algumarelação direta entre aquele núcleo familiar e os poderes de centro atuantes na região. Paulinotorna-se capitão pouco depois de esposar a filha de Salvador, assim como este último é feitoCapitão-mor pelo governador em ato que ao seu tempo foi considerado ilegítimo. E também ofato de Antonio Francisco de Aguiar seguir de perto os passos de seu sogro na hierarquiamilitar tinha as bênçãos do governador Lobo de Saldanha. E a presença da monarquia comoinstituição que outorgava e legitimava poderes é, neste caso, fundamental. Era ela quegarantia a ordenação social em última instância e regulava o acesso àqueles postos. E aoreconhecer a verdadeira nobreza, também se reconhecia.Um elemento em particular caracterizou as primeiras duas gerações do caso acimacitado: a atividade comercial como base para o engrandecimento do grupo. Tanto Salvadorcomo Paulino aparecem associados à imagem de baixos negociantes, promotores da ruína docomércio e cobradores ambiciosos. O grupo, contudo, soube modificar esta situação ao longodo tempo, através de várias estratégias, dentre as quais estavam as doações faraônicas dePaulino para os poderes sobrenaturais, por ocasião de seu testamento.Se no início da década de 1780 vemos a Câmara de Sorocaba considerar Aires deAguirre uma pessoa da baixa esfera, que fazia uso de pesos e medidas falsos e tinha um gêniointrigante, no final da de 1790 vemos o mesmo Senado atestar as qualidades de AntonioFrancisco. É certo que não eram os mesmos vereadores, mas a imagem pública da família,particularmente da nova geração, também não era mais a mesma. Nela já se encontravamelementos de boa doutrina. Aguiar fazia sucesso com os pais de família.É certo que o controle do posto de Capitão-mor de Itapetininga era algo relevante eostentado pelo clã. Antonio Francisco de Aguiar, em suas cartas, se referia a Salvador deOliveira Aires como meu cunhado Capitão-mor37. Mas o controle do Registro de Sorocabaera, talvez, mais atraente em um grupo que crescia em termos econômicos, políticos e sociais.Era uma forma simples de garantir contatos com negociantes de locais muito diversos. Nãosei até que ponto Paulino soube aproveitar este posto e criar relações com aqueles homens, ouse os camaristas realmente tinham razão em apontá-lo como alguém que perseguia os pobrestropeiros. Mas Antonio Francisco de Aguiar, em suas cartas, salienta com algumaregularidade as dificuldades dos tropeiros e a necessidade de se facilitar o pagamento e a concessão de fianças. Em 1806, diante de um cenário desfavorável aos negócios dos tropeirosque vinham do sul, Aguiar argumentava em tom forte ao tesoureiro da Casa Doada:A vista do meu exposto real fé do meu ofício deve vossa mercê mudar de projeto e fazer verestes conceitos ao nosso constituinte [a Corte Real, o “Doado”] com as expressões destaverdade que ignora e que a mim me lembra a fosse dos míseros tropeiros...No ano seguinte, ele voltava a carga, agora com um caso em particular:O Guarda-mor Rodrigo Pedroso de Barros portador desta se acha no termo desta Vila comsua tropa de bestas e cavalos magros pela falta de pastos compradores e o inverno aportae sendo o prejuízo do mesmo e de nosso constituinte infalível deve vossa mercê acautelardo modo que vou ponderar. Dando o mesmo Rodrigo fiador abonado, concede-lhe vossamercê tempo suficiente de ele passar os animais engordar, vender, cobrar, a pagar, poisdestes milagres já não posso por mim...38E o dito Guarda-mor não foi o único que teve o benefício da intercessão de AntonioFrancisco de Aguiar. Vários outros tropeiros, mas não todos, foram devidamente atendidospelo inspetor de Sorocaba. Aguiar se valia desta possibilidade para incrementar seusrelacionamentos externos e, desta forma, ampliava o espaço de atuação de seu grupo familiar.Através desta tática, mantida ao longo do tempo, Rafael Tobias de Aguiar, filho de AntonioFrancisco, chegou ao posto de Brigadeiro, ocupando o Governo da Província para, em 1842,liderar a Revolta Liberal Paulista, dispondo de aliados e contatos que iam do Rio Grande aoRio de Janeiro, ainda que com forte ênfase em São Paulo39.O trabalho de ascender, contudo, não passava apenas pelos sucessos do campo debatalha, pelo enriquecimento e boas relações. Uma boa política doméstica era necessária. Paraa conquista, a Casa devia estar em ordem. A trajetória deste núcleo familiar sugere uma clarapolítica de seleção de quadros de comando dentro da família, melhor dizendo, o sucessor dochefe era escolhido em uma seleção da qual podiam participar filhos, genros e cunhados. Oinvestimento da família na formação de quadros podia resultar em mais de um homem (atévários) preparado para o comando da Casa, momento em que o grupo poderia dividir seusinteresses em áreas de concentração e “distribuir tarefas” entre os “comandantes”. Tal foi ocaso na geração de Paulino: seu filho Salvador era bom candidato para ocupar os postos doavô Salvador, ainda vivo, e do pai. O grupo, entretanto, havia feito uma importantecontratação: Antonio Francisco de Aguiar, que ficou encarregado de uma parte dos negócios, mais exatamente a administração do Registro de Sorocaba, enquanto o neto sucedia o avô nocomando da Vila de Itapetininga.Este cenário promissor para o grupo, agora rico em comandantes e coincidente comuma época economicamente boa, não fora o mesmo encontrado por Salvador de OliveiraLeme. Até onde pude investigar, ele até fez de seu filho Francisco Xavier de Oliveira herdeirode parte de seus negócios40, mas isso até a figura de Paulino Aires de Aguirre eclipsar o rapaz.E nestes casos, a performance dos agentes, suas habilidades e seus recursos, faziam adiferença e podiam representar uma transformação na estratégia familiar. Em termosestritamente familiares (numa operação de desmonte para observação) a relação entre OliveiraLeme e Francisco Xavier era de pai e filho. Mas em termos de política familiar, ser filhosignificava, mais que ser herdeiro, suceder o pai no comando. Neste sentido, entendo quegenros, cunhados e filhos podiam, ainda que desigualmente, disputar o cargo de filho político.O príncipe doméstico não precisava ser de sangue, mas precisava de certas qualidades queeram cobradas destes nobres “de segunda”, como a valentia.Assim, acredito que genros e cunhados, em certas circunstâncias, poderiam passar porum processo de filiação política ao grupo familiar, enquanto os filhos podiam re-filiar-se.Com tudo isso quero salientar o quão dinâmica era a constituição de um núcleo familiar comvistas maiores, como poderia ser conflituoso, no plano interno, o “fazer-se” de um bando, porexemplo. No caso particular, não encontrei semelhantes conflitos e a família Aguirre/Aguiarpôde organizar-se bem para buscar vôos maiores. Tal processo de re-filiação era semelhanteao que ocorria nos processos de filiação da Casa Real, quando o Rei, informado peloMordomo-mor, decidia sobre aqueles que desejavam tornar-se fidalgo, filiar-se à Casa Real41.E tanto o Rei escolhia seus cavaleiros como o pai escolhia seus filhos, e estes não precisavamser naturais. E tanto os cavaleiros eram moradores da Casa Real como os genros e cunhados,na tradição paulista, muitas vezes residiam na casa de seus sogros e cunhados. Todavia, comoisso fazia parte da política familiar, nada impedia os filhos de opor-se aos planos paternos.Nazzari apresenta vários exemplos de como os filhos podiam opor-se ao dote estabelecidopelo pai42.Há outro elemento relevante que vêm à baila na política interna: as diferentesdensidades de relações dentro de um mesmo núcleo familiar. No caso da família Aguirre/Aguiar, é possível perceber que no ano de 1796 o grupo possuía quatro figurasproeminentes, com seus lugares específicos de mando, mas articuladas entre si: Salvador deOliveira Leme, o velho patriarca; Paulino Aires de Aguirre, o patriarca sucessor, Salvador deOliveira Aires, o futuro Capitão-mor; Antonio Francisco de Aguiar, o genro promissor. Mas afamília era composta de muitas outras pessoas e, evidentemente, as mulheres não faziam partedaquele núcleo duro de poder doméstico. Em 1806, Oliveira Leme e Paulino estavam mortos:a densidade interna se reordenava e os poderes se concentravam. Se voltarmos no tempo, paraos anos 1760, por exemplo, veremos Oliveira Leme como um pequeno patriarca alçando seusprimeiros vôos e pensando em um bom marido para sua filha43.Trazer membros selecionados para este grupo reduzido dentro da família é uma formade se compreender o matrimônio das filhas. E não era uma tarefa fácil encontrar noivos deigualha naquele mercado matrimonial. Neste sentido, a prática do dote pode ser entendidadentro do jogo de dádivas e contra-dádivas que relaciona ou ressalta a relação sogro-genro. Eme parece que o matrimônio é mais um momento de confirmação dentro de uma seqüência detransações bem sucedidas que o início de um processo, ainda que tampouco seja o fim. Masnem todos os genros se colocavam da mesma forma dentro do grupo do genro. AntonioFrancisco não fora o único a se casar com filhas de Paulino Aires. Poucos dias antes destaunião, ainda em 1793, Escolástica Maria de Oliveira, filha de Paulino, se casava com oAlferes José Ferreira Prestes, de uma conhecida família sorocabana, morador do Bairro doPirajibu, onde tinha sete44escravos.Não encontrei nenhum indício de um envolvimento estável de Prestes na políticadoméstica dos Aires de Aguirre. Talvez isso esteja associado à posição inferior dele nacomparação com Aguiar e Oliveira Aires. Era alferes, o que parece pouco para as pretensõesdo grupo naquele momento e não me consta que estivesse entre os mais ricos ou bemrelacionados. Procurei na lista nominativa de Sorocaba de 1790 e concluí que Ferreira Prestesera um dos poucos homens aptos para desposar uma filha de Aires de Aguirre naquelemomento, já que os demais sujeitos com um perfil minimamente adequado estavam, em suamaioria, casados45. Mas aqui há pouco material para afirmações mais categóricas. De qualquermaneira, a pouca visibilidade de Ferreira Prestes contribuía para fazer brilhar a estrela de Antonio Francisco e seu espaço no núcleo familiar de Paulino.Torno a um ponto chave: a existência de uma rede com distintas densidadessobreposta ao núcleo familiar que, em certo sentido, se confundia com o próprio núcleo, masque dentro de si tinha diferentes forças de atração. Havia o núcleo dos comandantes, Haviaoutro, um pouco mais extenso, que incluía algumas mulheres e outros homens. Havia afamília, em um sentido bem amplo, que reunia todos, inclusive agregados e escravos, comoparte constitutiva da Casa. Este último elemento deve ser particularmente ressaltado: apresença de escravos e agregados como parte do grupo, como base social e, inclusive, comoindicador de status. Como bem salienta Machado, em momentos de dificuldade de aquisiçãode escravos, as famílias da elite disputavam agregados entre si e com famílias livres pobres46.O núcleo familiar de Aires de Aguirre tinha, em 1801, somados 163 escravos,aproximadamente 1/10 do total dos cativos da Vila47, o que de algum modo deixava o gruponuma situação confortável em no quesito dependentes a ponto de poderem dispensaragregados. Na Lista Nominativa de 1790, Paulino acolhia apenas Francisco Antonio, de 19anos, nesta condição48.Com o que vimos até aqui, podemos concluir que para se tornar capitão não bastavaser tenente e talvez isso nem fosse necessário. Posso destacar alguns elementos importantes:comandar a política doméstica (ou figurar entre os comandantes); construir relações no planoextra-familiar; a posse de escravos (e seria conveniente uma boa relação com estes, paragarantir apoio aos projetos); uma dose de aliança com os poderes de centro presentes nalocalidade; recursos econômicos e, em certa medida, a participação militar na conquista ou naguerra.Os Pinto BandeiraLigado ao mundo das tropas de animais, ainda que não tivesse nesta atividade suaprincipal negociação, o grupo familiar dos Pinto Bandeira atuava em uma região bastanteextensa, que incluía a Vila do Rio Grande e seu sertão, o Viamão, Triunfo e o Rio Pardo. Nadécada de 1750, Francisco Pinto Bandeira era Capitão de Dragões e se destacava naCampanha das Missões, a Guerra Guaranítica, a mesma da qual teria participado Paulino Aires de Aguirre. Nos anos 1760, ele providenciou casamentos para suas filhas com recémchegados ao Viamão, um dos quais, Bernardo José Pereira, era negociante, o outro, CustódioFerreira de Oliveira Guimarães, iniciouse nos negócios após a Campanha das Missões, da qualtambém participara, para estabelecer-se também no Viamão49.Ambos se casaram quase na mesma época que Paulino desposava, em Sorocaba, a filha deSalvador de Oliveira Leme. Mas Custódio e Bernardo se aliaram a família Pinto Bandeira algunsdias após a tomada da Vila do Rio Grande, o que pode ter acelerado a política de atração daquelefamília, dado o contexto de guerra. Neste momento, o filho mais velho de Francisco, Rafael PintoBandeira, já havia contraído núpcias com Bárbara Vitória, filha de um cacique minuano chamadoMiguel Carai. Após a morte desta esposa, Rafael se casaria novamente com Maria Madalena, umaguarani missioneira. Após nova viuvez, Rafael se casaria pela terceira vez com Josefa Eulália deAzevedo, de origem portuguesa e filha de importante família da Colônia do Sacramento.Tanto no caso de Rafael e seu sogro Miguel Carai, como na relação entre Custódio,Bernardo e Francisco Pinto Bandeira, percebe-se a força, também neste contexto, da relaçãosogro-genro. Rafael manteve relações com Dom Miguel até mais de duas década após omatrimônio e a boa relação dos seus cunhados com seu pai foi deixada de herança. Na década de1780, os negócios entre o novo chefe do grupo familiar e seus cunhados e irmãos iam de vento empopa. Mas é preciso considerar alguns eventos importantes ocorridos na década de 1770. Duranteeste período, Rafael pôde destacar-se em dois sentidos. Promoveu diversos saques a propriedadesde espanhóis no outro lado da fronteira e comandou as tropas lusas na reconquista nos embates dereconquista da Vila de Rio Grande.Tais fatos garantiram um enriquecimento acelerado em paralelo ao aumento de suaposição de comando e ao aumento de seu prestígio público, além de um estreitamento em suasrelações com os poderes centrais. Para tanto, contou com a ajuda dos minuanos e de umagrande quantidade de pequenos lavradores e criadores que participaram dos combates, nosquais igualmente recebiam um butim. Todas estas conquistas e ganhos se juntaram ao Hábitode Cristo, que Rafael recebia por suas vitórias militares, e a patente de Coronel da CavalariaLigeira, uma tropa sob seu comando. Durante a década de 1780, Rafael alternou o governo [Páginas 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15 e 16]

a liquidez.Na comparação com o grupo dos Aguirre/Aguiar, a vantagem dos Pinto Bandeira ésaliente. Rafael era feito Brigadeiro pouco depois de Paulino se tornar Tenente-Coronel, postoque sequer ocupou. Isso sem falar que Rafael era alguns anos mais jovem que Paulino esequer pôde participar da Campanha das Missões no tempo de Bobadela. Pelo que pudeperceber, Rafael pôde jogar mais alto com o sucesso dos empreendimentos bélicos e, nolimite, nos seus negócios de contrabando e saques, atividades que não estavam disponíveispara Paulino e seu grupo. Se a América era conquista, as fronteiras do Rio Grande e do RioPardo, onde Rafael atuava, o eram ainda mais. Mas o comportamento social, me parece, erabastante similar. A filiação política doméstica dos genros e a re-filiação dos filhos aocomandante máximo da família é um elemento importante a ser destacado.Por outro lado, a relação imbricada entre família, negócios e política é visível emambos os casos. A comandância regional de Custódio Ferreira de Oliveira Guimarães noDistrito do Caí só se processou após seu ingresso ao grupo familiar dos Pinto Bandeira e só semanteve como decorrência direta deste fato, ainda que eu deva ressaltar aqui a performancede Custódio em suas atuações locais, intimidando a população e perseguindo com convicçãoseus inimigos mais diretos. Ascensões semelhantes, como vimos, foram produzidas pelogrupo Leme/Aguirre/Aguiar, relacionadas com a ascensão familiar e do ator social dentro dafamília. Aqui também a filiação teve um significado importante na dinâmica interna dosgrupos.A violência como forma de ação política e como prerrogativa de poder local eratambém uma prática comum em ambos os grupos, mas não o tempo todo. Rafael pôde exercêla, assim como Paulino e Salvador o podiam. De acordo com o processo de consolidação dafamília na esfera local e sua projeção e reconhecimento em esferas mais largas, chegando atéa Corte, no caso de Rafael, os grupos poderiam mudar sua estratégia, como de fato parecemter feito. A morte de Rafael, em 1795, e as mortes de Paulino, em 1798 e Salvador de OliveiraLeme, em 1802, são momentos interessantes para se acompanhar o peso da perda desteschefes e a estratégia de transmissão de liderança. Isso pode trazer luz sobre o significado deuma filiação bem elaborada.Rafael não tinha um herdeiro para o posto de comandante do grupo e sua posiçãoextremamente centralizada dentro do seu grupo era eficiente no funcionamento do bando, masacabou significando uma enorme dificuldade para a manutenção desta estrutura após suamorte. De certo modo, seu primo, Manuel Marques de Souza, acabou se tornando umaespécie de herdeiro político, mas sem o peso carismático e uma parcela importante das [Página 19]

ofertas anteriores. Este período também coincide com sua ascensão social, e ele passa deSargento-mor da Vila de Curitiba para Capitão (provavelmente Auxiliares). No final dadécada de 1790 ele já se destacava como tropeiro de animais, conforme no indica ManuelJosé Correia da Cunha em uma carta de 1797:O capitão Manuel Gonçalves Guimarães veio a este Registro para averiguar pelo livro quetropas eram as das guias que vossa mercê lhe escreveu estava devendo e como os livros játinham ido me pede para vossa mercê pelo livro examinar que tropas foram de conta deque por ter guiado várias tropas alheias e se acorda de alguma das guias se fez algumpagamento e quem o fez para assim vir no conhecimento da pessoa a quem pertence70.De 1798 até 1809, é possível encontrar Manuel Gonçalves Guimarães em ao menossete tropas, todas elas valores expressivos, sendo que uma, de 1801, pagou mais de 500$000em tributos no Registro de Curitiba. Se levasse apenas mulas, deveriam ser mais de 400. Eleaparece na lista de moradores de 1806 como vivendo de negociar tropas e de uma fazenda decriar animais vacuns e cavalares71. E neste período Guimarães segue em plena ascensãohierárquica, passando de Capitão para Tenente-Coronel por volta de 1797 e daí para Coronel,em 1808. Faleceu em 1815, mas sua filha Ana Ubaldina do Paraíso Guimarães casou-se comJoão da Silva Machado, que se tornaria, muitos anos depois, Barão de Antonina.Tomemos outro exemplo: José Vaz de Carvalho. Ele chegou em São Paulo em 1774,vindo do Aveiro, depois de formar-se em Coimbra. Logo que chegou, casouse com a filha deum grande negociante local, mas de origem lusa, Manuel de Macedo, de algum modoherdando sua posição no grupo de mercadores locais72. Nas décadas seguintes, vai atuar nacontratação de importantes tributos da Capitania de São Paulo, por períodos ininterruptos,junto com sócios como Paulino Aires de Aguirre, Francisco José de Sampaio e José deAndrade e Vasconcelos. Paulino já conhecemos. Francisco José era negociante e, depois, secasou com uma filha de José Vaz. José de Andrade e Vasconcelos era Capitão-mor deTaubaté.José Vaz inicia sua carreira na hierarquia militar já como Mestre de Campo doRegimento Auxiliar da Marinha de Paranaguá, o qual ocupa por seis anos até se tornarCoronel da Cavalaria de Milícias de Curitiba. Mas estes não são os cargos mais destacadospor Vaz de Carvalho em sua folha corrida, apresentada em 1806 para requisitar maishonrarias. Ele salientava o fato de ter atuado como Juiz das demarcações de terras, [Página 24]
*A “nobreza da terra” e o comércio de animais no centro-sul do Brasil: redes sociais, crédito, controle social e hierarquia no além-mar Tiago Luís GIL

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Pessoas (4)
erroc2:testeAntonio Francisco de Aguiar (f.1818)
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Comunicava o Rei D. Manoel a seus sogros, Fernando e Izabel de Espanha o sucesso da segunda viagem á índia, por seu almirante Pedro Alvares Cabral, dizendo no que se referia ao Brasil, o seguinte: “...O dito meu capitão partiu com 13 naus, de Lisboa, a 9 de março do ano passado, e nas oitavas da Pascoa seguinte chegou a uma terra que novamente descobriu, á qual colocou nome de Santa Cruz, na qual encontrou gente nua como na primitiva inocência, mansa e pacifica; a qual terra parece que Nosso Senhor quis que se achasse, porque é muito conveniente e necessária para a navegação da índia, porque ali reparou seus navios e tomou água; e pela grande extensão do caminho que tinha de percorrer, não se deteve afim de se informar das cousas da dita terra, somente me enviou de lá um navio para me noticiar como a achou.
Carta do rei dom Manuel, datada de Sintra, anunciando aos príncipes católicos o descobrimento da terra de Santa Cruz, por Pedro Álvares Cabral

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