Capítulo 1: Os vestígios mercantis nos impressos e manuscritos
Em 23 de dezembro de 1766, D. Luiz Antonio de Souza Mourãoescreveu uma longa carta ao Conde de Oeiras, com vistas a informá-lo sobre oestado da capitania de São Paulo recém-restaurada. Sua atenção recaía sobreo “mau método da lavoura que em toda a parte se pratica, fundando-sesomente no uso das roças de Mato Virgem”12.
De acordo com suas observações, as práticas empregadas no cultivo dosolo eram as principais responsáveis pela falta de religião, de sociedade e deaplicação da justiça aos povos. Embrenhados nas matas em busca da terravirgem, os homens distanciavam-se cada vez mais dos princípios da doutrinacatólica; viviam dispersos e isolados apenas em companhia de suas famílias e,apartados da fé, do convívio social e da lei, estavam sujeitos a agir como feras.Entretanto, antes de expor as soluções para o grave problema quepairava sobre a capitania, Morgado de Mateus fez a seguinte ressalva:“Eu falo da maior parte do Povo desta Capitania que vive assim poreste modo, não falo daqueles filhos do Reino que têm casas de negócio,fazendas, ou lavras estabelecidas, nem daqueles fidalgos Paulistas quese conservam com seu modo de vida (...), ou a maior parte do tempo empovoado, pois é certo que eles têm toda a civilidade que se requer”13.A presença dos agentes mercantis na cidade também foi flagrada porManuel Cardoso de Abreu que, entre os anos de 1765 e 1773, passara porvárias vilas da capitania durante suas viagens a Cuiabá14. Ao descrever acidade de São Paulo, o autor do Divertimento Admirável teceu brevescomentários sobre o clima, o relevo, as principais ruas, as habitações, os templos e as estradas que partiam da capital. A respeito das atividadeseconômicas desenvolvidas em solo piratiningano, Abreu observou:“Os habitadores da cidade vivem de várias negociações: uns selimitam a negócio mercantil, indo à cidade do Rio de Janeiro buscar asfazendas para nela venderem; outros da extravagância dos seus ofícios;outros vão a Viamão buscar tropas de animais cavalares ou vacuns paravenderem, não só aos moradores da mesma cidade e seu continentecomo também aos andantes de Minas Gerais, e exercitam o mesmonegócio vindo comprar os animais em São Paulo para os ir vender aMinas, e outros, finalmente, compram alguns efeitos da mesmacapitania, como são panos de algodão e açúcar, e vão vender às Minas,labutando nesta forma todos naquilo a que se aplicam”15.Como se vê, os dois trechos transcritos destacam a existência docomércio na cidade de São Paulo em meados do século XVIII. EnquantoMorgado de Mateus nos informa que as casas comerciais eram dirigidas porreinóis, os quais viviam conforme as leis de Deus e de Sua Majestade, ManuelCardoso de Abreu nos revela a variedade de negócios realizados peloshabitantes, articulando a urbe a outra regiões coloniais, por meio do comérciode mercadorias, animais e gêneros agrícolas.Embora os documentos evidenciem a presença mercantil na capital, atemática do comércio e dos comerciantes foi negligenciada pelos estudiososque se debruçaram sobre a economia e a sociedade paulistas no período de1711 a 1765. A pobreza e a decadência da capitania no século XVIII, odespovoamento da região em virtude dos descobertos auríferos em MinasGerais, Cuiabá e Goiás, a imagem de Piratininga vazia e solitáriaprevaleceram, durante décadas, na produção historiográfica. [Páginas 10 e 11]