Com a filha no colo, Maristela Ferreira Amaro, de apenas sete meses, e ao lado do marido, Cícero Ferreira, a jovem Luiza Herculiani Ferreira esperava em um banco da estação ferroviária, há exatos 53 anos, a passagem de um dos trens noturnos da Estrada de Ferro Sorocabana. Tal composição deveria levá-los até Bauru, para que próximo dali, em Duartina, pudessem festejar o Natal com familiares.
Sob a gare - cobertura da estação -, um trem de mercadorias, o BG-2, estava parado para descarga. Tudo era normalidade até 0h36, quando ocorreu o maior desastre ferroviário em perímetro urbano da história de Sorocaba: na madrugada de 23 de dezembro de 1964, o trem cargueiro C-48, procedente de Botucatu, colidiu contra a cauda do BG-2, lançando ao alto vagões, fardos e tábuas de madeira, derrubando parte da cobertura metálica e transformando parte da esplanada da estação em uma montanha de ferragens retorcidas.
A cena ainda é nítida para Luiza, hoje com 78 anos: alertada pelos gritos do chefe da estação naquela noite, Romeu de Mello -- conhecido como "Passarinho" --, ela e a família correram do local onde estavam. Sinalizando para que o trem em aproximação acionasse os freios, Passarinho morreu no acidente.
O fato gerou comoção na cidade e a Sorocabana, em reconhecimento à atitude do ferroviário, o promoveu postumamente à classe imediatamente superior. "Ele veio dar sinal para que saíssemos dali", recorda-se Luiza. Caso permanecesse onde estava, a família certamente teria perecido, como a segunda vítima fatal daquele acidente.
"Pouco antes um idoso parou para conversar conosco, falando mal da Sorocabana, que o trem balançava muito, comparando-a com outra ferrovia, a Paulista. Ele falou mal da Sorocabana pela última vez", relata.
Na agonia que tomou conta da estação após o acidente, entrou em cena uma moça desconhecida, cujo paradeiro Luiza e Maristela hoje desejam descobrir. "Nós sobrevivemos, mas nos ferimos. Fomos surpreendidos por madeiras e ferro que voavam sobre nós.
Eu acabei com as pernas prensadas contra as rodas dos vagões e tive fraturas nos tornozelos, enquanto meu marido teve esmagamento próximo dos rins. À minha filha, no meu colo, não ocorreu nada, mas estávamos imobilizados ali", relembra Luiza. Uma jovem, então, resgatou Maristela dos braços da mãe e, mesmo com o próprio pai machucado no local, levou a criança ao Pronto-Socorro de Sorocaba em um gesto de solidariedade.
Luiza e Cícero ficaram internados em outro hospital, o de Votorantim, por 15 dias. A garotinha ficou sob os cuidados de uma prima -- a quem a jovem salvadora entregou a criança no dia seguinte ao acidente. Essa mulher nunca mais foi vista: seu nome não foi registrado pela família, que pouco depois deixou Sorocaba, retornando definitivamente à região de Bauru.
"Ela é um anjo que apareceu ali para me salvar, mesmo sem me conhecer. Meus pais se machucaram muito, duas pessoas morreram, foi um acontecimento horrível. E eu sinto que tenho de encontrá-la. Eu não a conheço, não sei quem ela é, mas ela é muito importante para a minha vida. O "anjo da Sorocabana", posso dizer assim", descreve Maristela -- torcendo para que a publicação da história possa colaborar para um reencontro entre todos.
Daquele acontecimento, há uma pista, pois a pessoa que carregou Maristela ao hospital levou consigo uma lembrança dela: a manta na qual o bebê estava enrolado naquela noite. Maristela hoje tem 53 anos e recentemente retornou à estação de Sorocaba para rever o local do acidente. "Olhando tudo isso, eu vejo que nasci de novo. Não é exagero dizer que a data do meu nascimento é 23 de dezembro", afirma.
Boiada
Além da morte do chefe da estação, o desastre ferroviário do Natal de 1964 é lembrado pelos mais antigos, até hoje, também pela confusão que provocou na cidade. O trem parado na estação conduzia, dentro de gaiolas, vários bois, carneiros e cabritos -- que fugiram dos vagões quando eles se romperam pelo impacto.
"Na noite do desastre eu estava na porta do Gabinete de Leitura. Vimos aquela boiada correndo pelas ruas Maylasky e Direita, no meio da multidão que fazia compras de Natal", relembra o historiador Adolfo Frioli.
A cidade registrou diversos acidentes ferroviários nos anos 1960. Em 30 de maio de 1964, o trem de passageiros N-3 descarrilou em alta velocidade entre Inhaíba e Brigadeiro Tobias.
Seis carros saltaram dos trilhos e dez pessoas morreram. Em 13 de novembro de 1965, dois trens voltaram a se chocar na estação de Sorocaba, quando o trem P-1, parado na plataforma para embarque, foi abalroado por outra composição de passageiros, o P-2 -- que vinha de Itararé e foi desviado para a via errada pelo controle de sinalização. Mais duas pessoas vieram a falecer.
Em 9 de setembro de 1968, sem vítimas, o trem japonês SP-6 foi colhido pelo cargueiro C-56 em Inhaíba, que varou um sinal vermelho. De tempos em tempos (o último foi em 2013) os descarrilamentos ainda causam transtornos aos sorocabanos, mas não com a gravidade daquela madrugada de 23 de dezembro, marcada até hoje na memória de muita gente.