' O MÁRMORE E A MURT A: SOBRE A INCONSTÂNCIA DA ALMA SELVAGEM. Eduardo Viveiros de Castro Museu Nacional -Rio de Janeiro RESUMO: Ao tentarem catequizar os Tupinambá, os jesuítas encontravam sua mai - 01/01/1992 de ( registros) Wildcard SSL Certificates
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O MÁRMORE E A MURT A: SOBRE A INCONSTÂNCIA DA ALMA SELVAGEM. Eduardo Viveiros de Castro Museu Nacional -Rio de Janeiro RESUMO: Ao tentarem catequizar os Tupinambá, os jesuítas encontravam sua mai
1992. Há 32 anos
Ver São Paulo/SP em 1992
12 registros
Não é prazer propriamente que as leva a comer tais petiscos, nem o apetite sensual, pois de muitos ouvi dizer que não raro a vomitam depois de comer, por não ser o seu estômago capaz de digerir a carne humana; fazem-no só para vingar a morte de seus antepassados e saciar o ódio invencível e dia-bólico que votam a seus inimigos (1975: 233).

Não parece fácil conciliar estas informações sobre a repulsa ao canibalis-mo, e sobre uma certa disposição em deixá-lo, com aquela5 que afirmam seu valor e honra, e mesmo sua excelência enquanto prática alimentar, como o famoso diálogo de Hans Staden com o principal Cunhambebe (1974: 132):

Durante isto Cunhambebe tinha à sua frente um grande cesto cheio de carne humana. Comia de uma perna, segurou-m ´a diante da boca e perguntou-me se também queria comer. Respondi: "Um animal irracional não come um outro parceiro, e um homem deve devorar um outro homem?". Mordeu-a en-tão e disse: "Jauára ichê". "Sou um jaguar. &tá gostoso." Retirei-me dele, à vista disto. 48

Bem, pode-se argumentar que os dados sobre os Tupi antigos provêm de muitos pontos da costa brasileira, e referem-se a épocas diferentes - não haveria por que termos wna opinião monolítica sobre as virtudes da carne humana. Tería-mos algo como o caso dos Aché, que à época da pesquisa dos Clastres estavam divididos em dois grupos, um canibal, o outro não, e assim répondirent à la question de l ´ethnologue qui voulait savoir pourquoi chacun était ce qu ´il était. Les cannibales: nous mangeons les morts parce que la chair humaine est douce . Les autres: nous ne man-geons pas la chair humaine parce que c´est amer (Clastres, 1972: 82).

Questão de gosto cultural, dir-se-ia. O problema é que no caso tupinambá as opiniões variavam dentro de um mesmo grupo; sobretudo, mesmo aqueles gru-pos que prezavam enormemente este comer e esta comida deixaram com relativa facilidade tais prática5. De qualquer modo, está claro que a prática do canibalis-mo tinha um peso diferenciado no sistema guerreiro dos Tupi e Guarani da costa; os dados sugerem, por exemplo, que os Tupinambá da Bahia eram especialmente tenazes no apego a ela, que os Tupiniquim de São Paulo se deixaram dissuadir com maior facilidade, e que os Carijó (Guarani) do litoral sul e do sudoeste de São Paulo eram pouco dados ao canibalismo .49

Uma explicação para o abandono do canibalismo pelos índios, ou, antes, a determinação dos motivos e processos que responderam pela maior facilidade com que esta prática foi coibida pelos jesuítas e governadores-gerais, comparativamente ao caso da guerra de vingança tout court, exigiria uma análise global do significado do canibalismo na sociedade e na cosmologia tupinambá, algo que não podemos fazer aqui. Já mencionamos um a5pecto do motivo canibal, aquele que o toma pela perspectiva da vítima - evitação do enterramento e da putrefação, ou, dito de outra forma, um método de "aligeiramento do corpo", tema fundamental na perso-nologia tupi-guarani (Clastres, 1975; Viveiros de Castro, 1986; Combes, 1985-86, 1987). Da perspectiva dos devoradores, o canibalismo deixa entrever múltiplas conexões. Antes de mais nada, ele era a parte e a forma da yíngança que cabia à comunidade dos captores e seus aliados - ao passo que a morte ritual era levada a cabo por um só homem, que não comia da carne do contrário; neste sentido, era a máxima socialização da vingança, pela qual todos os devoradore s se afirmavam como inimigos dos inimigos, colocando-se assim no campo da "re-vindita compulsória" (Fernandes, 1963: 123) destes. Em seguida, há indícios de que ele remetia aos mesmos temas escatológ icos e personológicos que atraves-sam a religião, o xamanismo e a mitologia tupi-guarani: assim, as repetidas men-ções à voracidade das velhas (grandes inimigas dos jesuítas nesta história de acabar com o canibalismo )5º sugerem que o que se buscava no repasto canibal não devia ser diferente daquilo que os karaiba prometiam: "Y promételes longa vida, y que la5 vieja5 se han de tornar moças ... " (Nóbrega, I: 151; ver também Já-come, I: 242; Azpicuelta, II: 246). O canibalismo parece assim ter sido, entre muitas outras coisas, o método especificamente feminino de obtenção da longa vida, ou mesmo da imortalidade , que no caso masculino era obtido pela bravura guerreira e a coragem na hora da morte. Há mesmo indicações de que a carne hu-mana era diretamente produtora daquele aligeiramento do corpo que os Tupi-Guarani buscaram de tantas formas diferentes, pela ascese xamântica , a dança, a ingestão do tabaco ... (ver Combes, 1987, e Saignes, s/d, ali citado).

Por fim, o rito canibal era uma encenação carnavalesca de ferocidade, um devir-outro que revelava o impulso fundamental da sociedade tupinambá - ao absorver o inimigo, o corpo social tomava -se, no rito, determinado pelo inimigo, constituído por este.

Forma máxima da vingança, o canibalismo não era entretanto sua forma necessária. O gesto crucial da vingança guerreira era o esfacelamento do crânio do contrário, ritualmente executado pelo matador. Era a quebra do crânio que qualificava à obtenção de um novo nome; e por vezes se desenterravam inimigos para lhes partir a cabeça:

... porque não se contentam de matar os vivos, mas também de desenterrar os mortos e lhes quebrar as cabeças para maior vingança e tomar novo nome ... (Anchieta, 1933: 237) ... se encontram alguma sepultura antiga dos contrários, lhe desenterram a caveira, e lha quebram, com o que tomam nome novo, e de novo se tornam a inimizar (Soares de Souza, 1971: 301).5 Este gesto era exclusivamente masculino: as mulheres podiam matar um prisioneiro com as próprias mãos, quando furiosas; mas precisavam chamar um homem [Página 58]

O termo tupinambá geral para os europeus parece ter sido mesmo karaiba, e a explicação de Anchieta é razoável. A etimologia desta palavra, difundida entre os Tupi contemporâneos como etnônimo para os brancos, é incerta. Montoya identificou na forma guarani cara! o lexema cara, que signi-fica "hábil, engenhoso, astuto". E há o espinhoso problema de se saber se a palavra karaiba tem algo a ver com Caribe, Caraíbas etc. No Alto Xingu, karaiba é o termo usado por tocfas as tribos dali fXlra os brancos. Von den Steinen estava convencido de que este era um termo de origem caribe.

Vale notar que os europeus, chamados de karaiba, e como estes personagens inicialmente tra-tados, terminaram trazendo para os índios o exato oposto do que os karaiba prometiam: em vez de er-rância migratória, aldeamento forçado; em lugar de longa vida e abundância sem esforço , morte por epidemias e trabalho escravo; em lugar de vitória sobre os inimigos, proibição de guerra e canibalis-mo; em lugar de liberdade matrimonial, novas restrições ... (16) No que segue, ver-se-á diversos pontos de discorch1ncia frente às interpretaçõ es de Hélene Clastres; por isto mesmo, fique logo registrado que acho La Terre sans Mal um livro admirável por sua penetração e densidade, especialmente no que concerne a caracterizaçào dos temas fundamentais da filosofia tupi-guarani. (17) Por isto, foi tanto o caso de os Tupinambá "quererem virar brancos" quanto o de quere-rem que os brancos virassem Tupinambá. As cartas jesuíti cas abundam em queixas sobre os maus cristãos que estariam "turning native", casando poligami camente com índias, matando inimigos em terreiro, tomando nomes cerimonialmente e mesmo come ndo gente. ( 18) Ver aincfa os edificantes diálogos 1985: "second traité", caps. XV a XXI), onde os índios endereçam uma quantidade de questões cosmológico-teológicas aos pa-dres.

( 19) Além dos Guarani contemporâneos, cujo caso-tipo são os Apapocuva de Nimuendaju (1987 [1914]), ver ainda os Wayãpi (Gallois, 1988) e os Araweté (Viveiros de Castro, 1986). H. Clas-tres ( 1975: 35) afirma que praticamente não se acha menção nos cronistas ao tema indígena do apoca-lip;e (exceto uma muito vaga passagem de Thevet). Nas Cartas dos primeiros jesuítas no Brasil, entretanto, Anchieta narra a anedota de um velho índio que doutrinara: "Lo que más se le imprimió fué el mysterio
(20) Os jesuítas da costa brasileira , desanimados com suas ovelhas, acalentaram longos sonhos de mudar para o Paraguai, pois ouviam maravilhas sobre os índios de Já (os Guarani): que eram exce-lentes cristãos, monógamos, não comiam gente, tinham chefes de verdade, obedeciam aos padres etc. Anchieta resume: "Além destes índios [Tupi], há outro gentio es~lhado ao longe e ao largo, a que chamam Carijó, nada distinto destes quanto à alimentação , modo de viver e língua, mas muito mais manso e mais propenso às coisas de Deus, como ficamos sabendo claramente da experiência feita com alguns, que morreram aqui entre nós, bastante firmes e constantes na fé" (II: 116). Ver também: Nu-nes, I: 339-40; Nóbrega, I: 493*4; II: 15-6, 171-2, 402-3, 456-7. Nisto entrava, sem dúvida , uma boa dose de idealização ; mas os jesuítas do Brasil insistiam que muitos Carijó não eram canibais (embora os Irmãos Pero Correia e João de Souza tenham sido mortos pelos Carijó do sul em 1554, e dois índios que os acompanhavam devorados, Anchieta esclarece que estes eram ainda indômitos, mas que a maioria desta nação já estava bem sujeita aos espanhóis).

(21) H. Clastres interpreta as indicações das fontes sobre o prestígio e imunidade dos cantores e "senhores da fala" como se aplicando exclusivamente aos karaiba, confo rme sua teoria da extraterri-torialidade destes personagens; mas isto não se sustenta. Ver Blázquez: "Avía en esta poblazión un principal mui antigo y a quien ... tienen grande crédito, porque lle llaman ´sefior de la habla ´" (III: 408); Anchieta: "Fazem muito caso entre si, como os Romanos, de bons linguas e lhes chamam senho-res da fala e um bom lingua acaba com eles quanto quer e lhes fazem nas guerras que matem ou não [página 65]

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