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Marca de iates luxuosos, Ferretti quase naufraga no Brasil. Por Chris Martinez, globo.com
5 de maio de 2015, terça-feira. Há 9 anos
Ver Cotia/Vargem Grande/SP em 2015
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"A Polícia Federal acabou de apreender o iate do Eike. Coitado”, disse Marcio Christiansen, dono do estaleiro que fabrica os barcos de luxo Ferretti no Brasil, após uma rápida olhada no celular, enquanto posava para a foto que ilustra esta reportagem. O barco em questão, da marca britânica Pershing 115, controlada pela Ferretti, foi vendido por Christiansen ao ex-bilionário em 2008. Com comprimento de 115 pés, ou 35 metros, tem um espaço interno equivalente ao de um apartamento de 400 metros quadrados. Possui três suítes, uma cozinha em aço escovado e uma TV de 67 polegadas na sala. O motor, de 12,5 mil HP, conta até com uma turbina de avião, e faz a embarcação atingir 96 km/h na água. Seu preço? Está avaliado em R$ 85 milhões.

A trajetória de Christiansen, de certa maneira e em diferentes proporções, se confunde com a de Eike Batista. Numa época em que já passavam por problemas em suas empresas, eles preferiram dobrar a aposta no sucesso, mesmo quando o bom senso recomendava prudência. Em resumo, a tempestade que ambos enfrentam pode ser explicada por falta de planejamento, descontrole financeiro, excesso de confiança, muito marketing pessoal e a crença de que o crescimento da economia brasileira seria robusto e duradouro o suficiente para garantir um mercado próspero por anos, independentemente das condições externas. A derrocada de Eike vem sendo bastante noticiada. O pesadelo de Christiansen começa agora a ser revelado.Luxuosa, imponente e capaz de entorpecer até o mais distraído dos navegantes, a italianíssima Ferretti, espécie de Ferrari dos mares, navega em águas turvas no Brasil. Nos últimos dois anos, atrasou a entrega de pelo menos dez iates - e escapou por pouco de entrar na lista de empresas que faliram por aqui.Demitiu mais de 500 funcionários (hoje há apenas 180 na fábrica), desativou um showroom em um shopping de luxo em São Paulo e deixou de pagar diversos fornecedores. Alguns clientes, motivados pelo cansaço depois de seguidos atrasos, e também pela amizade com Christiansen, chegaram a bancar o salário dos funcionários e a compra de componentes.Na lista de iates atrasados figuraram a bilionária Ana Maria Marcondes Penido Sant’Anna, principal acionista da maior operadora brasileira de rodovias pedagiadas; José Luiz Gandini, presidente da Kia Motors no Brasil; Paulo Isola, ex-Bradesco; e o publicitário Roberto Justus, que comanda o Grupo Newcomm no país. O barco de Gandini, por exemplo, levou quase dois anos para ficar pronto – o prazo normal é de seis meses. Um cenário inimaginável por ele e outros vips de todo o país que participaram de coquetéis recheados de garrafas Dom Pérignon e caviares Petrossian enquanto decidiam qual modelo da marca iria atracar em suas marinas. A história de Christiansen no setor náutico começou no fim dos anos 70, quando fundou o próprio estaleiro, o Tecnomarine, que produzia barcos com tamanhos entre 30 e 71 pés. O negócio, no entanto, não prosperou e entrou em concordata um pouco antes do começo da parceria com os italianos, no início dos anos 90. Com a Ferretti, Christiansen ficou como representante da marca durante quase 20 anos. Em meados de 2010, com o forte crescimento das vendas no Brasil, negociou com a matriz na Itália a ampliação da parceria. Pelo acordo, além de se tornar sócio da Ferretti no país, passou a ser o primeiro representante da marca a ter uma fábrica licenciada pela empresa fora da Itália.O investimento no estaleiro foi de R$ 45 milhões, todo realizado com capital próprio, segundo Christiansen. Era um tempo em que os ventos sopravam a favor. De 2009 para 2011, a Ferretti saiu de um faturamento de R$ 80 milhões ao ano para R$ 240 milhões. Vendia, em média, 45 barcos por ano. O Brasil vivia um momento econômico melhor, o dólar estava na casa de R$ 1,50 e a Intermarine, sua principal concorrente e de capital nacional, sofria um duro revés com a morte de seu controlador. “A Intermarine tinha 70% do mercado e eu, 30%. Era a chance que eu tinha para virar o jogo, então apostei tudo”, conta Christiansen. A fábrica da Ferretti, localizada em Vargem Grande Paulista, a 40 quilômetros de São Paulo, ficou pronta em 2011. Na época da inauguração, os planos eram produzir 120 barcos por ano e terminar 2014 faturando R$ 1 bilhão. Nem chegou perto. Seu apogeu foi mesmo em 2011, e desde então o cenário só piorou.No fim do ano passado, a Ferretti do Brasil entrou com pedido de recuperação judicial. Antes de formalizá-lo, Christiansen sondou diversos clientes na tentativa de evitar o naufrágio da subsidiária brasileira de um dos estaleiros mais tradicionais e glamourosos do mundo. Quase ninguém topou, pois a situação do estaleiro entre os milionários era bastante conhecida.O publicitário Roberto Justus foi um dos poucos que se dispôs a abrir a carteira para ajudar. Em abril do ano passado comprou um barco de 75 pés, o F750, totalmente customizado. O iate possui quatro suítes, um banheiro social para os convidados em dias de festas, cozinha com visão de 360 graus e casco inteiramente pintado de preto. Durante o Carnaval, o iate de Justus desceu ao mar, depois de três meses de atraso, e navegou pelo litoral catarinense. A bordo estavam sua família, amigos, além do próprio Marcio Christiansen e sua mulher, Bernadete.Um e outro são amigos de longa data, coisa de 40 anos. Eles se conheceram quando Justus entrou na faculdade e, de presente, se deu uma BMW 520 importada, comprada de Marcio. “Era 1974, na época não havia tantos carros importados. O meu chegou e eu vendi para o Justus”, conta. Os laços entre eles se fortaleceram com o passar dos anos. E, mesmo com todos os problemas da Ferretti, Justus topou não apenas comprar o barco “com algum desconto”, como disse, mas aceitou também a incumbência de se tornar o embaixador da marca no Brasil. “Foi um convite do Marcio. É um título honorário e eu não tenho problema algum em testemunhar a favor de uma marca reconhecida como a Ferretti”, diz Justus. “Era um momento difícil para a empresa.” Para ele, há muita maldade no mercado em relação ao futuro da Ferretti no país.É verdade. Há toda a sorte de comentários sobre a Ferretti. A empresa tornou-se vidraça de concorrentes, ex-funcionários e clientes que se sentiram lesados. Embora reconheçam a habilidade inegável de Christiansen de vender luxo, pessoas entrevistadas para esta reportagem o taxaram de perdulário e omisso à gestão dos seus negócios. “Ele é chique e arrojado, mas tem verdadeira ojeriza a administração, planilhas e custos”, afirmou uma pessoa próxima. “Esse jeito certamente o prejudicou, porque houve gente que se aproveitou disso”, acrescentou outro que participou de perto dos tempos áureos da Ferretti.É evidente a insinuação dessas pessoas à ousadia de Christiansen em suas tacadas. Uma delas foi montar a loja Tools & Toys, no Shopping Cidade Jardim, em São Paulo, em 2010. Era uma espécie de showroom para vender os barcos Ferretti e outros brinquedos para milionários, como helicópteros. Tinha, ainda, um serviço real estate de apartamentos em Miami, representação dos relógios Parmigiani Fleurier, além de vender outras marcas de iates, como Yacht Brokers. Antes da inauguração, o empresário gastou 24 horas e um bocado de dinheiro para içar um iate Ferretti 530, com capacidade para 14 pessoas e motor de 800 cv, até o terceiro andar do shopping. Um guindaste de 400 toneladas deu conta do recado, e o barco de 53 pés, avaliado em R$ 4 milhões, virou atração. Nos fins de semana, chegava a ter fila de curiosos ávidos por calçar o sapatinho de pano e fazer um tour por dentro da embarcação. “No começo foi ótimo. Consegui fechar muitos negócios, mas depois o custo ficou alto”, afirma. Na época, no entanto, a empolgação era tanta que o empresário chegou a negociar a abertura de uma Tools & Toys no São Conrado Fashion Mall, no Rio.Outra investida de Christiansen – e esta quando os negócios já davam sinais de fadiga – foi apostar suas fichas no Ferretti Weekend, um evento próprio que aconteceu em paralelo ao Rio Boat Show 2013. Sofisticado, o empresário fechou o Portobello Resort & Safari, em Mangaratiba, vizinha de Angra dos Reis, para um final de semana exclusivo, com a finalidade de proporcionar uma raríssima experiência no mundo Ferretti. Na época, fez parcerias com a Embraer e com a Mercedes-Benz. Os convivas chegavam por terra, mar e ar. Um luxo que, apesar de ser justificado pela clientela e pelos iates em exposição, impressionava até os mais experientes no setor.A compra de uma embarcação como as da Ferretti é sempre um namoro longo e cheios de mimos aos clientes. Afinal, o investimento em uma delas com tamanho entre 64 e 85 pés varia de R$ 7,8 milhões a R$ 16 milhões. Já para manter um barco desses, incluindo vaga na água e marinheiro, o proprietário desembolsa em média R$ 30 mil mensais – sem contar o combustível. A sedução inclui conversas, jantares regados a bons vinhos e, quando o freguês topa fazer o teste de mar para experimentar o veículo, um pacote ainda mais completo. Nesses casos é comum levar os clientes de jatinho para um final de semana em uma praia paradisíaca. Até porque, normalmente, as esposas vão junto, e todo o ambiente deve primar pela perfeição.A configuração do iate é acompanhada de perto pelo comprador. É como adquirir um apartamento de alto padrão. Pode-se escolher a disposição de praticamente tudo na área construída. No Ferretti 750, por exemplo, o desenho inicial traz quatro suítes no deque inferior e mais uma sala de estar e outra de jantar no deque principal. Há quem opte por instalar uma pista de dança em um dos pisos. Por isso, muitas vezes o barco demora mais do que o tempo médio de seis meses para ficar pronto.No total, o passivo da Ferretti soma R$ 48 milhões, sem contar a dívida fiscal, no valor de R$ 100 milhões. O montante, segundo Chistiansen, foi renegociado depois de a empresa entrar no Programa de Recuperação Fiscal, o Refis, no ano passado. Com isso, a Ferretti terá 18 anos para pagar os impostos atrasados. Dos R$ 48 milhões, a empresa deve R$ 11 milhões ao Bradesco, mas a maior parte (R$ 22 milhões) diz respeito aos clientes que fizeram – nas palavras do empresário – “um empréstimo amigável” para compensar a alta do dólar em relação ao real. Barcos possuem muitas peças importadas, como motores, atreladas à moeda americana. “O dólar subiu e houve um descasamento, então alguns clientes pagaram entre 10% e 15% do valor para que a produção não parasse e conseguíssemos entregar os barcos com algum atraso mas sem mexer um milímetro no padrão de qualidade”, diz. Ele não comentou o pagamento de funcionários e fornecedores por esses amigos da marca para que a produção não parasse.Na prática, a recuperação judicial, criada em 2005, é a antiga concordata, aquela à qual as empresas recorriam em busca de socorro quando a corda já estava apertando o pescoço. Em geral, é difícil se livrar de um naufrágio. Mas não impossível. Pela recuperação judicial, uma empresa pode suspender pagamentos das dívidas por seis meses e tem 60 dias para elaborar uma proposta de reestruturação que contemple o pagamento dos credores. A questão é que, no Brasil, empresários recorrem à recuperação judicial quando não há mais saída e enxergam na medida o último suspiro para não quebrar. Até porque, depois que vai à falência, a vida do empresário se complica e ele não pode nem sair do país. “Se, de fato, o problema da empresa for econômico-financeiro, há solução, já que ele consegue prazo para pagar e ainda conta com seis meses de suspensão das dívidas. Mas se o problema for gestão, fica mais difícil”, diz o especialista em recuperação judicial Kleber Bissolatti.Embora tenha problemas, Christiansen não parece temeroso em relação ao futuro da empresa. De imediato, a solução mais eficaz depende da matriz. O grupo, que nasceu italiano e se baseou na cidadezinha de Forlì, com pouco mais de 100 mil habitantes, também enfrentou trovoadas lá fora, e acabou mudando de mãos. Desde 2012, é controlado pelo grupo chinês Shandong Heavy Industry Group-Weichai, que comprou 75% da empresa, numa operação de R$ 480 milhões. A eles, Christiansen quer vender 51% da Ferretti brasileira. Na prática, seria como se os chineses assumissem os R$ 48 milhões referentes às dívidas, mais o passivo fiscal. Em meados de fevereiro, um grupo de executivos italianos, capitaneado pelo executivo George Kyriazakos, que ocupa o posto de CEO Advisor, esteve no Brasil para avaliar a situação. Durante a entrevista, Christiansen chegou a mostrar a foto deles em almoço na fábrica. Ele se diz otimista.E por que o negócio ainda não fechou? O empresário acredita que a aprovação dependa dos controladores chineses, que estão avaliando a empreitada. Procurado, George Kyriazakos respondeu por e-mail que há, sim, uma conversa. Mas foi evasivo. “Neste momento, não posso prever qual será o resultado das nossas negociações. São confidenciais e não posso revelar os detalhes”, escreveu. “Marcio Christiansen teve uma bem-sucedida parceria como nosso licenciado e estamos à procura de maneiras de iniciar um novo empreendimento. Essas propostas serão apresentadas para o nosso conselho para aprovação.” A Ferrett i tem oito plantas. Apenas duas ficam fora da Itália. Uma está localizada nos Estados Unidos. A outra é a fábrica brasileira.Se a Ferretti italiana não quiser entrar na sociedade, o empresário tem outra carta na manga. Ele pretende propor a amigos que formem um pool de investidores e coloquem dinheiro na empresa. Com um aporte de R$ 18 milhões, acredita, conseguirá fabricar pelo menos cinco barcos. Nesse bolo, podem estar as lanchas de pessoas que desistiram do negócio no meio do caminho. Muitos clientes migraram para a concorrente Intermarine, que tem aproveitado a crise da Ferretti para reconquistar terreno no mercado.Em 1991, logo após a sua Tecnomarine entrar em concordata, ele conseguiu que um empresário do nordeste comprasse sua empresa. Na época, o novo dono queria fazer barcos-ambulâncias. O negócio não deu certo, mas Christiansen conseguiu sair ileso. Resta saber se, desta vez, alguém vai jogar a boia.ATRASOU, MAS CHEGOUO publicitário Roberto Justus e o dono da Ferretti no Brasil, Marcio Christiansen, se conhecem há quase 40 anos. No ano passado, para ajudar o amigo, Justus encomendou um iate de R$ 10 milhões e, de quebra, virou embaixador da marca para tentar convencer outros milionários a comprar seus barcos. A entrega atrasou três meses. PERSHING 115O Spirit of Brazil VIII, de Eike Batista, foi a maior venda realizada pela Ferretti no Brasil desde que a marca chegou ao país, no início dos anos 90. O iate com 35 metros de comprimento é avaliado em cerca de R$ 85 milhões. Para o azar de Batista, a Polícia Federal apreendeu a embarcação no começo de fevereiro.

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