' História da riqueza no Brasil: Cinco séculos de pessoas, costumes e governos Capa comum – 5 outubro 2017 - 05/09/2017 de ( registros) Wildcard SSL Certificates
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História da riqueza no Brasil: Cinco séculos de pessoas, costumes e governos Capa comum – 5 outubro 2017
5 de setembro de 2017, terça-feira. Há 7 anos
oficina estatal ou ter contato com seus agentes. E, nesse ambiente, constroemriqueza.

Mesmo quando se entra na esfera formal dos governos, quando se recorre a suas “oficinas”, nem tudo é unanimidade, sobretudo quando se trata de história.

Desde muito cedo houve diferentes tipos de “oficina”. Em 1532 foi instalada a primeira vila, mas com um território circunscrito de governo; em 1534 implantaram-se oficinas mais abrangentes, que atuavam sobre conjuntos de vilas, as chamadas capitanias hereditárias. Em 1549 criou-se uma oficina central, o governo-geral. Desde então, sem exceções, essa estrutura com três níveis – hoje chamados de municipal, estadual e federal - conforma a esfera dos governos de molde ocidental, ainda que nem sempre de forma coesa. A coordenação mínima entre essas três esferas demandou bastante tempo – e gerou formas de acomodação entre os governos trazidos d’além-mar e os governos de costume preexistentes. O livro não tem como objeto a análise propriamente política. Mas considera os costumes e governos formais em suas possíveis relações significativas com a acumulação de riqueza – o “carro” desta narrativa, vale repetis.

Fundação da vila de São Vicente, conhecido como “Porto dos Escravos”
22 de janeiro de 1532, sexta-feira (Há 492 anos)
 Fontes (24)

Tanto quanto possível, o tratamento dessas instâncias segue o padrão daapresentação de números locais - para medir a evolução – e da comparação comsituações externas, para medir atraso ou adiantamento. Mas como, nesse caso,tais indicativos são muito mais esparsos, é impossível evitar um descompassonas apresentações.

Por fim, existe a esfera da teoria, da ação dos “engenheiros”. No geral, ela ganha relevo nos momentos de grande dificuldade: o carro não pega, o mecânico não descobre as causas. É a hora de apelar para os detentores de maior conhecimento: como consertar a oficina mudando as normas? Como recolocar a vida no eixo alterando-se o próprio carro ou o conjunto das normas? A resposta a essas perguntas cabe a teóricos. Este, porém, não é um livro teórico. Não há qualquer intenção de propor ideais de governos, ditar normas, produzir manuais de instrução, vender veículos ou avaliar motoristas. O principal objetivo aqui é o de juntar num todo que faça sentido uma série de novos conhecimentos sobre os [Página 16 do pdf]

permitia que o indivíduo se considerasse um ser de elevado estatuto social, esses poucos alfabetizados costumavam reforçar ao máximo as diferenças entre o falar e o escrever como sinal de sua distinção. Por isso escreviam e se comunicavam segundo normas complicadas de ortografia, sintaxe e estilo. Ironizavam a “incapacidade” dos analfabetos de entenderem a própria língua na qual se comunicavam. Tornavam difíceis as condições para a disseminação da escrita nas escolas existentes, perpetuando essa situação. Deixaram também um problema que, por muito tempo, se mostrou insolúvel. Uma vez que eram os únicos a produzir documentos escritos, os historiadores tiveram de trabalharapenas com esse universo restrito e artificial de manifestações, sobretudo nos períodos iniciais do uso da escrita no território.

Os novos conjuntos de dados romperam uma limitação estrutural inerente à documentação escrita. Tanto as descobertas da antropologia como as da econometria permitiram a formulação de modelos que apontam na mesma direção. No primeiro caso, graças à compilação das normas dos governos consuetudinários dos povos sem escrita, tornou-se possível a reavaliação dos seus sistemas produtivos. No segundo, tratando de maneira indistinta os dados relativos a alfabetizados e analfabetos, possibilitaram uma nova perspectiva dos mercados e da acumulação de riqueza. Devido a ambas inovações no campo dapesquisa, um universo antes descartado e tido como marginal na formação da riqueza e no modo de governo – de maneira muito ampla, o chamado “sertão” (termo que aparece já na carta de Caminha, em 1500) – pôde ser analisado de outra maneira, diversa da que presidiu a produção de documentos coevos e as análises dos clássicos no século passado. Vem dessa diferença a opção por contar uma história da relação entre os governos e o desenvolvimento que não se baseia no modelo tradicional da disciplina, mas antes nas descobertas vindas de fora.

Para tanto foi preciso recorrer a uma visada transdisciplinar – o que leva aum último ponto relevante. Minha especialização técnica foi constituídaformalmente num mestrado em Sociologia e num doutorado em Ciência Política.

Cartas de Caminha e do Mestre João Emenelau Farás
1 de maio de 1500, terça-feira (Há 524 anos)
 Fontes (20)

Ao completá-la, segui a norma da produção acadêmica, que implica aespecialização, a delimitação progressiva de um campo pelo emprego de termos [Página 18 do pdf]

CAPÍTULO 1> Costumes e problemas de escritaA DESPEITO DE TODAS AS DIFICULDADES ESTATÍSTICAS, DEMÓGRAFOS HISTÓRICOS estimam que oterritório das chamadas Terras Baixas, a porção a leste dos Andes no continentesul-americano, teria, em 1500, uma população entre 1 milhão e 8,5 milhões depessoas. Linguistas especializados em história identificaram mais de 170 línguasfaladas por esses povos e distribuídas em quatro grandes troncos linguísticos:tupi-guarani, jê, caribe e aruaque. Essa imensa variedade linguística leva aalgumas discussões sobre os primórdios da ocupação humana na região. Deacordo com indícios recentes, os primeiros grupos ali se instaram há 30 mil anos(ampliando assim a estimativa anterior, de pouco mais de 10 mil anos), depois deterem eventualmente percorrido duas rotas, uma por terra desde a América doNorte e a outra pelo oceano Pacífico.As características comuns a tantos grupos são poucas: quase todos viviamem aldeias autônomas. Sempre que o grupo atingia certo porte havia divisão,com parte dos moradores se mudando e formando um novo grupo. Desse modo,o governo era exercido apenas na área de domínio de cada aldeia. Bastantevariado era o nível de desenvolvimento tecnológico: num extremo, pequenosgrupos de coletores migrantes que desconheciam a agricultura; no outro, oschamados cacicados da Amazônia, com dezenas de milhares de indivíduos (noséculo XVI, para comparação, a população de Madri era de 30 mil pessoas) queviviam em aglomerações extensas e cultivavam terras irrigadas. Como nenhumdesses grupos conhecia a metalurgia, as ferramentas de trabalho e os utensíliosdomésticos eram feitos de pedra e madeira.Por outro lado, o conhecimento sobre as espécies naturais era muitoavançado. Enquanto os médicos europeus manipulavam algo como uma centena [Página 23 do pdf]

CAPÍTULO 2> Governos com genros europeusA PARTIR DE 1500 OS HABITANTES DO LITORAL ATLÂNTICO DA AM ÉRICA DO SUL contemplaram umacena que se repetiria com frequência cada vez maior: grandes barcos fundeavamem baías, se reabasteciam de água e mantimentos e, em troca das cargas quelevavam, deixavam objetos – e também pessoas. Nos registros históricosconstam vários motivos para o desembarque desses indivíduos. Havia osmarujos que, cansados das viagens e dos riscos, atiravam-se por conta própria nabusca de uma nova vida em meio à paisagem deslumbrante (que incluía as mulheres vestidas apenas com coberturas púbicas e pinturas corporais).

Comandantes ordenavam o desembarque de tripulantes, os chamados lançados, que ficavam em terra para aprender os costumes dos moradores e relatar seus conhecimentos para um eventual próximo comboio. E também passaram a ser comuns as arribadas de náufragos. O destino dos que deram em terra foi tão variado quanto os motivos de desembarque. Muitos terminaram mortos. Mas os sobreviventes cuja história acabou sendo registrada tiveram quase sempre o mesmo destino: eles travaram relações com os grupos Tupi-Guarani.

Não se tratava de acidente. Um dos primeiros a escrever sobre essas relações foi Ulrich Schmidl, alemão que fazia parte de uma leva de 300 espanhóis que subiram o rio da Prata a partir de 1535.

Rio da Prata
1535, terça-feira (Há 489 anos)

Durante dois anos foram topando com habitantes nativos, lutando por comida, escorraçando e sendo escorraçados. Não conseguiram estabelecer nenhuma outra forma de contato além da guerra comqualquer grupo, exceto quando afinal encontraram os Guarani. Após um breve combate, estabeleceu-se uma trégua – e, em seguida, os 300 europeus receberam 300 mulheres nativas em casamento. Não porque eram bonitos, mas porque os Guarani firmaram com eles uma aliança pelas regras consuetudinárias [Página 32 do pdf]

O aumento da escala produtiva e dos conflitos teve outras consequências. Os cativos de guerra, antes incorporados ao grupo, agora passaram a serempregados nos trabalhos produtivos – e muitos começaram a ser vendidoscomo mercadoria pelos genros que serviam de intermediários. Já na segundadécada do século XVI esses negócios se tornaram comuns em todo o litoral – eem vários portos surgiram entrepostos permanentes comandados pelos genros dechefes. Assim passaram a ter um papel que antes não existia na sociedade Tupi:o de pessoas ricas, capazes de acumular a partir de trocas comerciais. Algunsnomes de portugueses nessa situação e nesse período foram registrados porhistoriadores: Vasco Fernandes Lucena, em Pernambuco; Diogo Álvares Correia,o Caramuru, na Bahia; João Ramalho e Antônio Rodrigues, em São Vicente.Mas o fato é que talvez fossem minoria entre os europeus. O número defranceses vivendo nas mesmas condições talvez fosse ainda maior, uma vez queos negócios entre os genros franceses acomodados em grupos Tupi e osnavegantes de seu país estendiam-se por uma vastíssima área, que ia desde a fozdo rio Amazonas até a baía de Guanabara. Havia também espanhóis em meio aesses grupos, sobretudo no sul: o Bacharel de Cananeia e Enrique Montes, esteem Santa Catarina, foram os mais notórios.

E não havia exclusividade para os conterrâneos nas compras e vendas. Alguns deles, quando ganharam dinheiro suficiente, viajaram para a Europa, levando as suas diversas mulheres Tupi. Foi o que fez Diogo Álvares Correia, que seguiu para a França num navio comandado por Jacques Cartier, o futuro descobridor do Canadá. O grupo desembarcou em Rouen, onde as mulheres foram batizadas em 1528. Uma delas, Guaimbimpará, filha do chefe Taparica, teve como madrinha Catherine des Granges, nobre e mulher de Cartier – e adotou o nome desta, ficando mais tarde conhecida como Catarina Paraguaçu.

Caramuru
1528, domingo (Há 496 anos)
 Fontes (1)

O mesmo entrecruzamento de espaços e culturas acontecia no interior docontinente. Em 1526, o português Aleixo Garcia, que vivia em aldeamentos naregião de Cananeia, embrenhou-se pelo interior com um grande número deguerreiros seus parentes, sempre avançando por regiões dominadas por Tupi ouGuarani. Ali encontravam guias para levar a expedição adiante. As trocas tinham dois sentidos. Muitos grupos iam conhecendo o ferro; já os europeusconstatavam que as histórias ouvidas no litoral não eram apenas lendas ou mitos.Depois do contato com os incas e a prata, descobriram que o “Império do ReiBranco” existia – e, melhor ainda, que havia prata em fartura. Garcia recolheuamostras bem reais do metal, e elas chegaram intactas ao ponto de partida daexpedição, ainda que ele tenha morrido no caminho.

Os europeus de Cananeia receberam as amostras. Como essa espécie denotícia, acompanhada de provas, era sensacional, moradores da região – bemcomo suas mulheres – foram levados para a Europa, onde mostrarampessoalmente as peças para os reis de Portugal e da Espanha. Os francesessouberam de tudo. Diante da comprovação da existência de minerais preciosos,os soberanos dos três reinos chegaram à mesma conclusão: valia a pena gastardinheiro próprio para fazer algo que até então vinha sendo totalmentedesnecessário, qual seja montar postos avançados - “oficinas” no exemploinicial - de governo no território. Até então, durante três décadas, asprovidências governativas para adaptar a produção crescente de mercadorias emanter a vida civilizada haviam sido tomadas apenas pelos Tupi. Como eramcapazes de produzir, segundo seus costumes, mais excedentes que o padrãoanterior exigido pelos europeus, o crescimento da acumulação econômica nãoexigiu transformações de monta nesses costumes: dentro deles, com variantespalatáveis, os genros foram ampliando as atividades e se adaptando ao modo devida Tupi-Guarani. [Páginas 37 e 38]

juzgo no pensamento hispânico: “Faciendo derecho el rey debe haber nome derey, et faciendo torto pierde nome de rey”, na expressão de Francisco deVitoria.2O direito e o torto, no caso, não resultam da ação própria do soberano, masantes do fato de suas ações se pautarem pelo respeito ao plano divino, o qualfunciona como a régua da vida terrena. E régua que seria conhecida na Terraapenas pelo rei (cujo poder teria, portanto, origem divina). Com base nessa réguae atribuindo a justa parte a cada um, o soberano mereceria a fama de justo. Osreis de Portugal resolveram merecer seu nome fazendo algo que nem eraobrigatório para quem conhecia as medidas da Justiça: desde o século XVpassaram a editar as leis que mantinham a justa medida que sustentava asdesigualdades entre os homens num código conhecido como as Ordenações doReino.Em 1521, o rei D. Manuel deu um passo adiante, empregando sua versão, aschamadas Ordenações Manuelinas, como arma de difusão e propaganda numtempo de mudanças. Aproveitou a recente invenção da tipografia para fazercópias do conjunto de leis e distribuir essas cópias pelos incontáveis órgãos compoderes judiciários, visando a uniformidade de aplicação – que não tinha nada aver com universalidade da lei ou igualdade. Tratava-se apenas da organização dadesigualdade. O código era organizado em cinco livros, cada um delessubdividido em títulos. O conjunto visava criar uma hierarquia – algo que podeser facilmente entendido a partir de um exemplo: as determinações do modo peloqual uma pessoa podia ser presa.O Livro I tratava das formas mais altas de Justiça. No caso das prisões, otítulo 14 definia a esfera mais alta, aquelas detenções que só o monarca podiamandar fazer através do meirinho-mor, o único que poderia prender “pessoas deEstado, quando por nós [o rei] lhe for mandado, e assim grandes fidalgos ou taisque outras justiças não possam prender”.Já o Livro II, que, de maneira geral, regulamentava as relações do poderrégio mais alto com a nobreza e o clero, definia caso a caso como funcionavam [Página 40]

‘também os privilégios concedidos individualmente a alguém se chamam leis;pois ninguém pode perturbar aquele cidadão na fruição de seu direito’.”5Todos os privilégios tidos como direito deixaram de ser apenas tradicionaispara se transformarem em assunto de tribunal: “A derrogação de um direitoadquirido – fosse a propriedade de bens, a posse de ofícios, a detenção de umprivilégio irrevogável, o direito de não pagar impostos ilegalmente criados – sóera possível em sede judicial. Dito isso, já se vê como os tribunais, comoinstâncias de salvaguarda da justiça e de defesa dos direitos de cada um,ocupam, na constituição jurídica do Antigo Regime, uma função constitucionaldeterminante.” 6A codificação de leis e a judicialização dos conflitos inerentes aoreconhecimento de diferenças e direitos adquiridos não eram as únicaspeculiaridades da formalização escrita do governo português da época. Aempresa dos descobrimentos e a administração das novas terras estavam ligadasa uma singular estrutura – capaz de dar conta, ao mesmo tempo, de umaoperação tecnológica de ponta e uma diplomacia religiosa: a Ordem de Cristo.Essa instituição tinha uma história reveladora. Embora conquistada peloscristãos na Primeira Cruzada em 1098, Jerusalém viu-se de novo cercada pelosárabes em 1116. Foi nessa ocasião que os nobres franceses Hugo de Poiens eGeoffroi de Saint-Omer juraram, na igreja do Santo Sepulcro (o templo doscristãos na cidade), viver em perpétua pobreza e defender os peregrinos que iamà Terra Santa. Nascia assim a Ordem dos Cavaleiros Pobres de Cristo,renomeada, em 1119, como Ordem dos Cavaleiros do Templo, quando a sede foitransferida para o Templo de Salomão – e por isso ficou conhecida como aOrdem dos Templários.Na época, várias organizações católicas congregavam devotos sob regimentopróprio. A dos templários, entretanto, tinha um regimento particular: seusmembros eram monges-guerreiros que se empenhavam em combates militares.As regras da ordem eram secretas e só conhecidas, na totalidade, pelocomandante-chefe (o grão-mestre) e pelo papa. Desde o início, os templário [Página 43 do pdf]

branco com a cruz quadrada vermelha. Com a queda da Cidade Santa, em 1244,e a expulsão das tropas cristãs da Palestina, em 1291, a mística se dissipou. Asderrotas no Oriente Médio desencadearam uma onda de acusações, segundo asquais os cavaleiros teriam feito acordos com os muçulmanos, fugido de camposde batalha e traído os cristãos. Aproveitando o clima, em 13 de outubro de 1307o rei francês Felipe, o Belo, invadiu, de surpresa, as sedes templárias em toda aFrança. Só em Paris foram detidos 500 cavaleiros, muitos dos quais acabaramdegolados. Todos os bens da ordem foram confiscados. Esperava-se uma fortuna,mas, como pouco foi efetivamente recolhido, criou-se a lenda de que tesourosteriam sido transferidos em segurança para outro país. Para muitos, esses paísteria sido Portugal. O rei D. Dinis (1261-1325) decidiu de outro modo. Em 1317,reiterando que os templários não haviam cometido crime em Portugal, D. Dinistransferiu o patrimônio deles para uma organização recém-fundada: a Ordem deCristo.Assim, Portugal serviu de refúgio para perseguidos em toda a Europa. Devários países chegavam fugitivos carregando o que podiam. O castelo de Tomarvirou a caixa-forte dos segredos que a Inquisição não conseguiu arrancar. Nasprimeiras décadas de existência da Ordem de Cristo, os ex-templáriosmantiveram os estaleiros em Lisboa, fizeram contratos de manutenção de naviose dedicaram-se à tecnologia náutica, aproveitando o conhecimento adquirido notransporte marítimo de peregrinos entre a Europa e o Levante. Alimentaramplanos para voltar à ação, contornando a África por mar e, aliando-se a cristãosorientais, expulsar os mouros do comércio de especiarias. Convenceram alguémimportante. O infante D. Henrique sagrou-se cavaleiro em 1415, na batalha deCeuta, no atual Marrocos, em que os portugueses expulsaram os muçulmanos dacidade. No ano seguinte, o príncipe foi nomeado comandante da Ordem deCristo. Solteiro e casto, dividia o tempo entre o castelo de Tomar, sede da ordem,e a vila de Lagos, no Algarve. Em Tomar, cuidava das finanças, da diplomacia eda carreira dos pilotos iniciados nos segredos do empreendimento cruzado. Ocastelo era um repositório de recursos e informações secretas. Lagos era a basenaval e uma corte aberta. [Página 45 do pdf]

Desde Tomar, D. Henrique chefiou as negociações com o Vaticano. Em 1418 conseguiu sagrar uma importante aliança: uma bula papal deu aval para o projeto de navegação, classificando-o como uma cruzada. Em termos técnicos, o reconhecimento desse estatuto na bula transferia à Ordem de Cristo o poder de organizar e administrar a Igreja nos territórios conquistados. Da cobrança dos impostos eclesiásticos à criação de bispados ou paróquias, tudo dependia dogrão-mestre da ordem. Ao mesmo tempo o papa reconhecia o direito desta aos territórios conquistados aos infiéis e se comprometia a lutar pelo reconhecimento desses direitos entre outros reis católicos. Daí em diante, cada avanço para o sul e para o oeste será seguido da negociação de novos direitos. Em um século, os papas emitiram onze bulas privilegiando a Ordem de Cristo com monopólios de navegação na África, posse de terras, isenção de impostos eclesiásticos eautonomia para organizar a ação da Igreja nos locais descobertos. Já em Lagos a vida era muito cosmopolita para o tempo. Vinham viajantes de todo o mundo, de “desvairadas nações de gentes tão afastadas de nosso uso”, como diz Gomes Eanes de Zurara, na Crônica da tomada da Guiné. Entre outros, o autor cita moradores das ilhas Canárias, caravaneiros do Saara, mercadores de Timbuctu (hoje no Mali), monges de Jerusalém, navegadores venezianos, alemães e dinamarqueses, cartógrafos italianos e astrônomos judeus.

Até a metade do século XV todos os volumosos investimentos paratransformar essa variedade de informações em conhecimentos capazes depermitir a navegação oceânica foram bancados pela Ordem de Cristo – e osresultados (mapas, instrumentos de navegação, relatos de viagens) guardados emTomar e mostrados apenas aos cavaleiros iniciados que agora comandavamnavios e missões diplomáticas. Enquanto o tesouro de dados marítimos estevesob a sua guarda, a estrutura secreta da ordem garantiu a exclusividade para osportugueses. Em Tomar e em Lagos, os navegadores progrediam na hierarquiaapenas depois que a sua lealdade era comprovada, se possível em batalha. Sóentão tinham acesso aos relatórios reservados de pilotos que já haviam exploradoregiões desconhecidas e a preciosidades como as tábuas de declinaçãomagnética, que permitiam calcular a diferença entre o polo norte verdadeiro e o [Página 46 do pdf]

CAPÍTULO 4> VilasOS MORADORES DE CANANEIA QUE HERDARAM AS AMOSTRAS DE PRATA OBTIDAS por Aleixo Garciaforam levados para Sevilha, na Espanha, em 1530 – com todas as suas mulheres,com seus filhos e parentes. O rei Carlos V, então o homem mais poderoso daEuropa, dono das coroas de Castela, Aragão, Leão, Navarra, Catalunha,Alemanha, Áustria, Borgonha, Sicília, Sardenha, Nápoles e Milão, ligou poucopara a poligamia que exibiam abertamente e muito para o metal. Recebeu osrecém-chegados, ouviu-lhes os relatos, cobriu-os de honrarias – e tratou demodificar sua estratégia. Enquanto Carlos V tomava providências, espiõesportugueses ficaram sabendo do encontro e avisaram o rei D. João III em Lisboa.Este ordenou a seu embaixador que fizesse o possível para convencer algum dosnáufragos a lhes contar a mesma história. O embaixador mostrou-se convincenteo bastante para que Gonçalo da Costa aceitasse rever seu Portugal natal. Finda aconversa, o monarca ofereceu mundos e fundos para que ele deixasse de lado asbenesses espanholas e servisse a um novo senhor. Porém, como o acordoproposto não incluía a permissão para que vivesse com as duas mulheres Tupi eos filhos, Gonçalo achou mais prudente fugir de fininho.O embaixador repetiu o processo de aliciamento com Henrique Montes,igualmente português. Mais sensível ao dinheiro que aos casamentos, abandonouas suas mulheres na Espanha e foi para Lisboa no início de novembro de 1530.Já no dia 15 foi nomeado cavaleiro da Casa Real – um fidalgo de nobre estirpe –e passou a ganhar 2,4 mil-réis por ano. No mesmo ato foi nomeado provedor daarmada de Martim Afonso de Sousa, quase pronta para levantar âncoras, o queocorreu no dia 3 de dezembro de 1530. Ao longo de 30 anos a monarquiaportuguesa vinha recebendo notícias, bens e pessoas do Brasil. Nada disso levara o rei a mover um dedo no sentido de instalar qualquer dispositivo de governo noterritório: nem ao menos um modesto funcionário ou um casebre haviam sidoinstalados para competir com a autoridade governativa dos chefes Tupi-Guarani.Martim Afonso de Sousa, um amigo de infância do rei, recebeu de D. JoãoIII algo mais que o comando das naus. Levava uma carta que o designavacapitão-mor de todo o Brasil. Em outras palavras, o texto delegava aocomandante uma série de poderes que só o rei poderia exercer. Entre essespoderes, o mais importante era o de tomar posse do território: Martim Afonso deSousa deveria percorrer todo o litoral, desde a foz do Amazonas até a foz doPrata, e fincar marcos de pedra nos mais diversos pontos, como prova materialdo domínio português. O comandante gastou um ano cumprindo essas ordens.Era um serviço para o rei em disputa com outros soberanos europeus – mas,como marcos de pedra não significavam muita coisa para os moradores da terra,nenhum deles deu muita atenção aos artefatos reais.Em 1o de agosto de 1531 a armada chegou a Cananeia – o ponto de partidada expedição pioneira de Aleixo Garcia. Dali todos se lançaram à região da pratapor dois caminhos: um grupo de 70 homens – sem experiência no convívio comos nativos – foi enviado por terra aos domínios do Rei Branco. Já os naviosseguiram a rota determinada pelo rei: descer pelo mar até a foz do rio da Prata esubir continente adentro por ele e pelo rio Paraná. Os dois projetos fracassaram.A tropa terrestre desapareceu sem notícias, o navio de Martim Afonso naufragouem baixios, os outros não conseguiram ir muito longe rio acima. Juntando assobras, o capitão voltou no rumo norte – e foi dar em dia exato num local que jáfora batizado em português. No dia 22 de janeiro de 1502 as naus de GonçaloCoelho haviam aportado numa baía – e como era dia de são Vicente, padroeirode Portugal, deram o nome dele ao local.Durante o longo intervalo de três décadas nenhuma autoridade haviaaparecido por lá, e assim o nome original caíra no esquecimento. Mais práticos,os frequentadores o conheciam pelo tipo de atividade ali praticada: Porto dosEscravos. Na falta de pau-brasil abundante na região, outra “mercadoria”,embora menos rentável que a madeira de tintura, mostrara-se atraente o [Páginas 48 e 49 do pdf]

instância de governo. Em carta a Martim Afonso de Sousa, disse que tinhaencontrado outro caminho. Cancelou as franquias concedidas ao capitão e amigode infância para governar todo o território em seu nome e resolveu fatiar odomínio em “capitanias hereditárias”. Na carta, o soberano não deixou delembrar que reservara “as melhores fatias” para o comandante e para o irmãodeste, Pero Lopes de Sousa, os quais receberam capitanias alternadas no litoralsul; e, além disso, Pero Lopes tornou-se capitão de Itamaracá, em Pernambuco.Os títulos começaram a ser distribuídos a partir de 1534. Em pouco mais de doisanos, todo o território foi redistribuído. Começava uma nova era, na qual ospedaços de papel fundavam novos cálculos de governo – que a prática docontato com a economia mista dos Tupi e dos genros trataria de transformar emdestinos. [Página 54 do pdf]

CAPÍTULO 5> CapitaniasAS AMOSTRAS DE PRATA E AS HISTÓRIAS DE HENRIQUE MONTES LEVARAM O REI D. João III a gastardinheiro do Tesouro para financiar a viagem do amigo Martim Afonso de Sousa.Mas os relatos do capitão-mor listando fracassos e as mortes dos buscadores demetal o levaram a enfrentar uma dura realidade. Os governos se mantêm graçasao que arrecadam dos governados e ao que conseguem emprestado. D. João IIIavançara sobre os recursos do reino para pagar a expedição e não podia contarcom a sonhada prata para repor com lucro esse dispêndio. Pior ainda, gastaranum período em que a agricultura portuguesa enfrentava problemas devido aoclima, em que os franceses faziam provocações diplomáticas e em que asviagens para a Índia não estavam rendendo o previsto. Tudo isso tambémsignificava aumento de despesas. Fechando a conta e constatando o déficit, osconselheiros do rei o chamaram para uma reunião em Évora, no verão de 1532.Saiu dela convencido de que não valia a pena gastar muito dinheiro do Tesouropara instalar um governo no Brasil. E foi convencido porque os conselheirosapresentaram-lhe um plano de repassar a missão a particulares.Nos moldes da época, era uma fórmula clássica. O rei concedia parte de seuspoderes a empreendedores que realizavam, por conta própria, serviçosgovernamentais, em troca dos quais cobravam impostos dos beneficiários,embolsando a diferença na forma de lucros. Já havia sido empregada com êxitonas ilhas dos Açores e da Madeira, de modo que era só adaptar a ideia para anova terra. O segredo estava no equilíbrio adequado entre o que o rei cedia aointeressado e o que reservava para si mesmo como autoridade. A parte cedidaficava registrada numa carta de doação: o domínio sobre uma porção de terra (acapitania); as regras de transmissão desse domínio para herdeiros (por isso, [Página 55 do pdf]

do Maranhão. O trio armou dez navios, que levantaram âncora em 1535. A maiorparte da frota se perdeu numa tempestade e alguns sobreviventes foram dar noCaribe. Só um pequeno grupo desembarcou no Maranhão. Como ali os aliadosdos Tupi eram franceses, foram recebidos a flecha e acabaram expulsos. Oprejuízo dizimou as fortunas dos donatários. Apenas em 1554 reuniram dinheiropara tentar de novo, dessa vez com dois navios. E de novo foram expulsos pelosnativos aliados aos franceses.A capitania do Ceará foi doada a Antônio Cardoso de Barros, altofuncionário do Tesouro. As notícias do fracasso maranhense e da existência defeitorias francesas em seu quinhão foram decisivas ao pesar os prós e os contras:entre a proximidade segura de um tesouro real e os riscos para fazer o seu,resolveu ficar com o que já punha no bolso e deixou o governo e os negócioscearenses em mãos dos Tupi e franceses. No caso da capitania de Rio Grande,ela foi dada em sociedade para João de Barros e Aires da Cunha – justamente osdois que perderam muito investindo no Maranhão. Por conta disso os sóciostiveram a mesma atitude do vizinho setentrional: deixaram o governo e osnegócios para os nativos e franceses. Pero Lopes de Sousa, o donatário deItamaracá, tinha uma relação bem diferente com seu território. No comando denavios da frota do irmão Martim Afonso de Sousa, ele atacara e tomara duasvezes a feitoria francesa ali existente. Instalara gente de confiança naadministração – mas o diabo é que a clientela que vinha de navio era todafrancesa, de modo que ficou muito difícil criar um fluxo de comércio em outradireção. O melhor que conseguiu foi reforçar a posição minoritária de náufragosportugueses que eram sócios dos investidores franceses, contentando-se comalguns trocados.O vizinho ao sul era Duarte Coelho, donatário da capitania de Pernambuco.Ele decidiu vir pessoalmente, trazendo a mulher, Brites de Albuquerque; ocunhado, Jerônimo de Albuquerque; e todos os técnicos que julgava necessáriospara instalar engenhos – além de ter encontrado financiadores e fornecedoreseuropeus para garantir a operação. Ainda assim passou apertado, pelo motivo desempre: nativos pouco interessados em abandonar as terras que controlavam ou em abrir roças para os outros (pois sabiam o quanto isso era trabalhoso). Asdisputas pela mão de obra de nativos aliados continuaram, até serem resolvidasao modo da terra: Vasco Fernandes Lucena, náufrago português com vastaexperiência no trato com governos nativos, convenceu Jerônimo de Albuquerquea se casar com Muira Ubi, filha de um chefe Tabajara. Selada a aliança, o sogromudou de lado – e as coisas mudaram de rumo. Enquanto Jerônimo ia tendofilho atrás de filho com sua mulher, batizada de Maria do Espírito SantoArcoverde, e com outras filhas de chefe que garantiram a ampliação da aliançaoriginal, tudo se resolvia. O território governado pelos sogros dos franceses foilimitado, apareceram escravos para trabalhar, os campos foram cultivados, osnegócios progrediram e um governo português se firmou no território – comduas instâncias distintas.Além da capitania, em 1541 foi instalada a vila de Olinda, com a repetiçãode todas as formalidades de São Vicente: títulos de sesmarias, lista de homensbons aptos a votar, eleição de vereadores, alternância no poder. A diferença eraque havia entre eles produtores regulares – plantadores de cana, artesãos,senhores de engenho - e, portanto, uma volumosa produção de excedentes forado controle dos nativos. Mas a vila era apenas uma instância menor de governo.Em Pernambuco passou a funcionar de maneira efetiva a autoridade dodonatário, em dois sentidos. No das receitas, implantou a cobrança de impostos,inclusive com repasses ao rei, e tais recursos financiavam serviços delegados aodonatário, como o de atuar como instância mais alta que o Judiciário da vila e ode controlar a vida civil.

Dezoito anos depois da chegada, em 1553, Duarte Coelho voltou à Europa levando os filhos para estudar e deixou a mulher, Brites de Albuquerque – que era alfabetizada, coisa muito rara na época – no exercício do cargo de “capitoa e governadora”, como diziam os pernambucanos. O marido morreu no ano seguinte, de modo que Brites governou Pernambuco até sua morte, em 1584 – como casta viúva e em sociedade com o seu irmão casado com muitas mulheres. (Jerônimo teve um mínimo de três dúzias de filhos com muitas índias, algumas escravas africanas e a mulher portuguesa que lhe enviou a rainha Catarina quando ele tinha 52 anos, com ordens para desposá-la e “deixar de viver na lei de Moisés, com suas trezentas concubinas”; a parte do casamento foi cumprida e ele teve uma dúzia de filhos com a enviada – mas não se desfez das concubinas.)

Se tivesse prestado um mínimo de atenção nas alianças de casamento com nativas, o vizinho ao sul dos Coelho / Albuquerque / Arcoverde talvez tivesse sido o mais bem-sucedido de todos os donatários. Francisco Pereira Coutinho desembarcou na baía de Todos os Santos em 1536 e foi bem recebido por Diogo Álvares Correia, o Caramuru, suas mulheres e os sogros indígenas. Viu a igreja da Graça, que os parentes índios haviam erguido para a mulher de Caramuru, Guaibimpará, agora rebatizada como Catarina Paraguaçu. Conseguiu com facilidade terras e escravos para implantar engenhos. Por dez anos reinou a prosperidade – tanto dos engenhos e dos ganhos de Coutinho como dos negócios com os franceses que faziam a fortuna de Caramuru. Por algum motivo, contudo, o donatário fez valer seu apelido de Rusticão, obtido em batalhas pela Ásia e África – e a situação degringolou.

Em 1545, os parentes nativos de Diogo e Catarina atacaram os engenhos e a pequena aglomeração urbana (Coutinho, ao contrário de Coelho, não dividiu seus poderes com os moradores fundando uma vila), expulsando os portugueses para Porto Seguro. Tentando retomar a capitania, Coutinho organizou uma expedição em 1547. O navio no qual vinhamnaufragou e todos foram dar na ilha de Taparica, assim nomeada porque ali viviao sogro de Caramuru. Então comprovou-se que o Rusticão era de fato umguerreiro valente: foi morto ritualmente a golpes de borduna, teve o corpocozido e as partes devidamente deglutidas para infundir coragem em seusvencedores, entre eles Caramuru.

A mesma relação inicial entre sucesso econômico e boas relações com osgovernos Tupi marcou a evolução da capitania de Ilhéus, cujo donatário eraJorge Figueiredo Correia. Ele organizou a expedição, mas deixou o comando nasmãos de Francisco Romero e voltou para Portugal. Este seguiu o roteiro desucesso: fez aliança com os índios, instalou os engenhos (foram nove), organizouvilas (quatro). As coisas andaram tão bem que um simples proprietário local,Lucas Giraldes, acabou comprando a capitania dos descendentes do donatário original depois da morte deste, em 1552. Mas tudo desandou quando os Aimorése desentenderam com os novos ocupantes e passaram a empreender ataquesseguidos, desarticulando a produção e retomando o governo efetivo da maiorparte do território.Pero de Campos Tourinho, o donatário de Porto Seguro, desembarcou com700 homens e muitas famílias. O potencial da capitania era grande: terras férteise muito pau-brasil, além de um mar especialmente piscoso por causa dos coraisde Abrolhos. Os problemas eram os mesmos de outros donatários: os francesesdominavam os negócios de pau-brasil porque se haviam aliado por casamentoaos Tupi locais. Homem rude e conhecido pela propensão e profusão deblasfêmias, o donatário foi se virando como pôde. Aliou-se aos nativos paramexer na estrutura francesa dos negócios de pau-brasil. Conseguiu espaçosuficiente para criar vilas, montar uma produção pesqueira de certo porte (vendiapeixe salgado para a Bahia), abrir roças – mas não conseguiu instalar nenhumengenho de grande porte. Por fim, acabou prejudicado por sua boca: mesmotendo fundado oito igrejas, foi preso por blasfemar e obrigado a responder aprocesso em Lisboa. Inocentado, viu-se proibido de voltar à capitania, que tevede transferir para o filho. Já Vasco Fernandes Coutinho, o donatário da capitaniado Espírito Santo, era o menos abastado de todos. Desembarcou com umpequeno grupo de 60 degredados – e só os que sobreviveram aos primeirosembates com os nativos conseguiram se aliar a eles pelo casamento,sobrevivendo de modo semelhante aos paulistas: fornecendo objetos de ferropara seus parentes que governavam.

Dali para o sul começava uma região de forte associação entre franceses enativos. Por toda parte essa aliança se fez valer. O donatário de São Tomé, Perode Góis, foi expulso em 1536. Martim Afonso de Sousa e Pero Lopes de Sousa,donatários respectivamente do primeiro quinhão de São Vicente (no litoral doatual estado do Rio) e de Santo Amaro (parte no atual estado do Rio e parte noatual litoral norte de São Paulo), não fizeram nada nesses domínios. Mas a vilade São Vicente prosperou o suficiente para que a capitania de Martim Afonsofosse se firmando – basicamente porque ali não havia conflito com os nativos, [Páginas 57, 58, 59 e 60 do pdf]

Esse desenho do governo-geral estabeleceu um exemplo contundente. Se opróprio rei, cabeça espiritual do poder, não empregava os poderes de concederdomínios de terra e jurisdição apartados para si mesmo, por que haveria de fazerconcessões similares para a nobreza? Desse modo, a ação direta do governoficava nas mãos de agentes que circulavam em torno das ordens militares, dapequena fidalguia e dos primeiros técnicos de governo – a chamada nobrezatogada, a nobreza dos direitos adquiridos, resultantes da mistura entreempreendimento e nobilitação menor. Esse enquadramento não era corriqueironem mesmo para D. João III. Ao assumir o trono em 1521, os conflitos entre anobreza togada e a nobreza hereditária estavam provocando uma rupturaimportante. Ao longo do século XV, Portugal fizera um esforço tecnológicoadmirável com base em adesões conseguidas pela Ordem de Cristo: cartógrafosjudeus, matemáticos árabes, pilotos italianos, financiadores de toda a Europa.O objetivo central foi atingido: a navegação oceânica permitiu ligar povos epaíses de todo o mundo. Os navios levavam nos porões mercadorias que criavamnovos fluxos de comércio – gerando lucros e concentração de capital para seusproprietários em proporções capazes de mudar a vida econômica do Ocidente.Lisboa foi o primeiro centro mundial a viver essas novas circunstâncias. Porém,assim que os lucros começaram a fluir, o governo português passou a dividiraquilo que lhe custara muito a congregar. A capacidade de absorver inovaçõesesbarrou em limites quando se tratou de criar um ambiente de negócios capaz dedar conta das gigantescas possibilidades abertas pela navegação marítima.Novas tecnologias e novos negócios se traduziam na multiplicação depessoas de formação técnica e de empresários – e, em termos de governo, empressão para ampliar o âmbito de poder dessas pessoas. A adaptação a essamudança começou ainda antes do reinado de D. João III, mas não exatamente nadireção favorável a tal expansão. As expulsões de judeus, primeiro da Espanha edepois de Portugal, ocorreram na altura em que se abriam as rotas marítimas. Osexpulsos levaram seus capitais para as cidades da Flandres, que logo se tornarampontos efervescentes de comércio internacional. Uma das primeiras medidas donovo monarca, em sua condição de administrador da Igreja, foi a de instalar a [Página 64 do pdf]

apontar novos caminhos com ordens bastante diretas: “Portanto vos mando quecomo chegardes a dita baía vos informeis de quais são os gentios quemantiveram a paz e os favoreçais de maneira que sendo-vos necessário sua ajudaa tenhais certa.”2 Assim, com palavras, o monarca aceitava aquilo que todos ossobreviventes no Brasil haviam aceitado: a aliança com os governantes Tupi. E,mesmo sem palavras diretas, dispunha-se a consagrar a sábia decisão dossobreviventes. No lugar de simplesmente entregar territórios por cartas, semligar a mínima para “vassalos existentes”, preferiu entender-se com o maiordeles.Alguns historiadores dizem que, antes de entregar o Regimento a Tomé deSousa, D. João III escreveu uma carta a Diogo Álvares Correia, o Caramuru.Sem nenhum cargo formal de governo, ele sustentava as alianças essenciais comos Tupi a partir de seus casamentos. Pelas alturas de 1549 era já um homem rico– e algumas de suas filhas, especialmente aquelas tidas com Guaibimpará, agoraCatarina Paraguaçu, estavam casadas com homens ricos. Tudo isso se constituíaem poder – que foi reconhecido pelo monarca, tenha ou não escrito a carta.Assim que desembarcou, o novo governador fez, em nome do rei, aliança com afamília luso-Tupi. Três dos filhos homens do casal foram nobilitados quase noato do desembarque, alçados a membros da nobreza togada. Logo em seguida,alguns recém-chegados abastados e prestigiosos casaram-se com filhas do casal.Assim se constituiu muito rapidamente uma ocupação econômica. As terraspara a agricultura foram distribuídas sem atritos com os territórios das aldeiasaliadas, os utensílios de ferro chegaram ali em abundância – e parte deles foitrocada por escravos que os aliados dos aliados agora traziam do interior, demodo que não faltava mão de obra para abrir matas, plantar cana e construirengenhos. Salvador foi transformada em vila com a repetição dos rituais de SãoVicente e Olinda: uma série de títulos de propriedade distribuídos e uma eleiçãopara dar substância e poder ao governo local recém-instalado – e que passava aprocessar os interesses representados na eleição. Mas a vila não seria como asoutras já instaladas no Brasil. Estabelecer uma capitania produtiva para o real donatário era apenas parte do plano.O Regimento também era claro sobre o que fazer em caso de êxito: “Tantoque os negócios que na dita baía haveis de fazer estiverem para os poderdesdeixar, [...] vós com os navios e gente que vos bem parecer ireis visitar as outrascapitanias. E porque a do Espírito Santo que é a de Vasco Fernandes Coutinhoestá levantada ireis a ela com a mais brevidade que puderdes e tomareis ainformação por o dito Vasco Fernandes Coutinho e por quaisquer outras pessoasque vos disso saibam dar razão da maneira que estão com os ditos gentios e oque cumpre fazer-se para se a dita capitania tornar a reformar e povoar e o queassentardes poreis em obra trabalhando tudo o que for em vós porque a terra sesegure e fique pacífica e de maneira que ao diante se não levantem mais os ditosgentios e na dita capitania do Espírito Santo estareis o tempo que vos parecernecessário para fazerdes o que é dito.” 3A lição do reconhecimento da aliança Tupi como alicerce sobre o qualassentaria o progresso deveria se estender, transformada em realidade políticaonde quer que chegasse a ação do governo-geral. Como parte dessatransformação havia mais um ponto expresso no Regimento: “A principaltentativa minha é que se convertam à nossa santa fé, logo é razão que se tenhacom eles todos os modos que puderem ser para que o façais assim. E o principalhá de ser escusardes fazer-lhes guerra porque com ela se não pode ter acomunicação que convém que se com eles tenha.”4As novidades foram além. Até então o comandante da cruzada empreendidapela Ordem de Cristo não tinha feito o menor gesto para instalar a Igreja quecomandava naquela terra onde agora instalava uma representação da esfera realde governo. Até 1549 os documentos revelam apenas a construção de igrejas porencomenda de moradores, fossem europeus (como em Iguape, onde existemenção de uma capela de Nossa Senhora da Conceição das Neves em 1534) ounativos convertidos (como a igreja erguida por ordem de Catarina Paraguaçu).No entanto, tudo mudou de figura depois que Tomé de Sousa conseguiu acertaras coisas durante a viagem em que passou pelos pontos então ocupados.[Páginas 66 e 67 do pdf]Em 1553, ele saiu de Salvador para executar um plano diretamente associado àcombinação de conversão religiosa dos nativos com domínio político ampliadodo território.Esse plano havia sido concebido por membros de uma ordem religiosafundada em 1540, a Companhia de Jesus. Ainda em seus primórdios, aorganização caiu nas graças de D. João III, que, como chefe da Igreja em seusdomínios, foi entregando sucessivas missões aos jesuítas, a começar pelareforma da universidade de Coimbra. As relações entre o rei que encomendavaserviços e os padres que os realizavam eram muito diferentes das tradicionais.Em vez de ficarem em conventos, os jesuítas eram treinados para andar nomundo; o rei se aproveitava desse treino para encarregá-los de missõesespecíficas, diretamente financiadas com recursos do Tesouro. Sem precisarperder tempo buscando dinheiro de esmolas, os padres iam direto ao ponto. E oponto, no caso dos seis jesuítas que vieram com o governador-geral, era o deestudar cuidadosamente a cultura dos índios num local onde ainda vivessem aseu modo e montar um projeto exequível de conversão em massa.Ao passar por São Vicente, Tomé de Sousa conheceu João Ramalho, e assimo descreveu ao rei: “Tem tantas mulheres, filhos, netos e bisnetos e descendentesque não ouso dizer o número a Vossa Alteza. Não tem cãs na cabeça e anda noveléguas a pé todos os dias antes do jantar.” Por educação deixou de fora o númerode mulheres e a nudez – mas não hesitou em fazer uma série de concessões defidalguia: transformou a taba onde João Ramalho vivia na vila de Santo André,concedeu títulos de homens bons aos parentes indianizados, conferiu aoandarilho o título de capitão e reconheceu-lhe o mandato de vereador. Em trocade tudo isso conseguiu que ele arranjasse junto a seu sogro Tibiriçá uma formade acomodar os padres europeus na tribo sem que tivessem de casar – algo quecausava muita estranheza a um Tupi. Mas afinal tudo se ajeitou, de forma que oestudo da cultura Tupi foi adiante como parte da ação do governo-geral noBrasil.Coube ao padre Manuel da Nóbrega chefiar a missão, que contou comgrande ajuda de José de Anchieta, capaz de destrinchar em pouco tempo tanto a língua como o sistema de parentesco dos nativos, cumprindo tarefas dignas deum antropólogo moderno. Para o que interessa ao plano de conversão, umaindagação básica precisava ser respondida: os nativos eram seres racionaiscapazes de reconhecer Deus ou apenas brutos danados? Ao fim do estudo,Nóbrega chegou à conclusão de que, embora fossem “descendentes de Caim epor isso ficam nus”, não chegavam a ser, como seres humanos, substancialmentediferentes de europeus e povoadores: “Toda esta gente, uma e outra, naquilo quese cria, tem uma mesma alma e um mesmo entendimento.”5Porque tinham alma racional e capacidade de entendimento, o padre jesuítanão via diferenças humanas essenciais entre antropófagos e europeus. Mas,exatamente por não vislumbrar tanta diferença, esboçou um programa decatequese, expresso no Diálogo sobre a conversão do gentio, pelo qual os índiosdeveriam ser transformados à força em cristãos e colocados num lugardeterminado na nova sociedade a ser criada: “A lei que lhe hão de dar édefender-lhes de comer carne humana e guerrear sem licença do governador;fazer-lhes ter uma só mulher; vestirem-se, pois têm muito algodão; depois de[transformá-los em] cristãos, tirar-lhes os feiticeiros; mantê-los em justiça entresi e para com os demais cristãos; fazê-los viver quietos e sem mudarem paraoutras partes, tendo terras repartidas que lhes bastem e padres da Companhiapara doutriná-los.”6Na altura em que traçou tal plano, a realidade prática do governo noterritório ainda era marcada pelo domínio das formas anteriores à chegada dosprimeiros navios, pelo governo autônomo de pequenos grupos. Mas o comérciode ferro e madeira por navios, marca da nova era, havia promovido astransformações das alianças entre europeus e grupos cada vez mais extensos deTupi – uma realidade que até mesmo D. João III reconheceu como fundamentopara a política. Os territórios das principais áreas de contato entre portugueses eTupi ganharam o estatuto de vilas, mesmo quando não passavam de tabas, comoa Santo André de João Ramalho. Aglomerados regionais de vilas eramsupervisionados por donatários. O governo-geral começou como uma capitaniade sucesso e como um centro de dispersão das decisões de fundar [Páginas 68 e 69 do pdf]apreendidos como invasores do Brasil. Francisco I não hesitou em defender ossúditos. Pediu ao papa para ver “o testamento de Adão” que teria justificado oTratado de Tordesilhas, que dividia entre portugueses e espanhóis o mundo entãoacessível por navios. O soberano francês também ajudou em processos de perdasmovidos pelos armadores e promoveu todo tipo de intriga diplomática. Haviarazões econômicas. Os negócios franceses andavam tão bem que, em 1548, Luísde Góis, morador de São Vicente, escreveu a D. João III: “Não sei que fim teráesta carta, pois de dois anos para cá vem a esta parte sete ou oito naus francesasa cada ano, direto para Cabo Frio e o Rio de Janeiro, e não há navio portuguêsque ouse aparecer pois muitos têm sido tomados pelos franceses.”2As naus francesas não levavam apenas pau-brasil. Os muitos produtosagrícolas domesticados pelos nativos iam encontrando mercado. O algodãotornava-se conhecido entre tecelões. Até mesmo a rainha Catarina de Médiciadotou o hábito de fumar tabaco. Havia tantos Tupi vivendo em Rouen que asautoridades da cidade resolveram transformá-los em atração das festividades derecepção ao rei Henrique II e à rainha fumante, que em 1550 visitaram a cidade.E era atração forte o suficiente para atrair gente importante: Maria Stuart, rainhada Escócia; os embaixadores da Espanha, Veneza, Inglaterra e Alemanha, entreoutros; além de sete cardeais e nobres de alta estirpe. O espetáculo foiapresentado ao ar livre. O cenário era aquele de uma aldeia que tinha tabas,redes, moquém, instrumentos de todo tipo. Cinco dezenas de Tupi nus (e duascentenas de figurantes franceses) iam mostrando como era a vida cotidiana,inclusive o modo de cortar pau-brasil. O ponto alto do espetáculo ficou para ofinal: o ataque simulado de uma tribo inimiga, aliada dos portugueses, repelidocom ajuda dos franceses.O fluxo de mercadorias e signos entre o Brasil e a França dependia porcompleto, no lado americano, dos governos Tupi. Cada grupo nativo, segundoseu costume, dava conta de processar as mudanças econômicas de monta. Tudofuncionava tão bem que nenhum francês teve a ideia de implantar algum tipo degoverno na terra. Com o governo-geral, porém, a situação mudou. Em 1554, o cavaleiro Nicolas Durand de Villegagnon, depois de uma incursão a Cabo Frio,convenceu o rei de que afinal seria vantajoso instalar um governo francês.Mesmo sem a perspectiva de muito lucro, Henrique II topou. Ajudando aqui eali, permitiu que Villegagnon armasse uma esquadra, embarcasse 600 homens etomasse o rumo da baía de Guanabara. Ao desembarcar ali em novembro de1555, foi recebido pelos franceses casados na terra. Escolheu o local que lhepareceu adequado para edificar uma fortaleza, que seria a primeira obra de seugoverno: uma laje de pedra no meio da baía (onde hoje funciona a Escola Naval,ao lado do aterro onde foi construída a pista do aeroporto Santos Dumont).Apesar da esquisitice do lugar quente e sem água, não faltaram meios parainstalar os aliados dos aliados: com ajuda dos Tupinambá, em três meses o forteestava pronto. Bastou esse curto intervalo para que os soldados e marujospercebessem que podiam ter uma vida muito boa se casassem com as índias quelhes eram oferecidas a cada dia – pois a aliança matrimonial era a linguagempolítica dos Tupinambá.Villegagnon, porém, ficou com medo de perder autoridade e acabargovernado pelos moradores, e por isso baixou medidas draconianas para separaras partes. A consequência foram os motins e as fugas. Tentando recuperar ocomando, Villegagnon começou a escrever cartas a conhecidos por toda aEuropa. Num dia de 1556, uma delas chegou a Genebra. Escrita para um antigocompanheiro de colégio chamado João Calvino, ausente, foi aberta por seusauxiliares, e os resultados da leitura foram registrados por Charles Baird: “Umculto solene teve lugar na catedral. Todos, naturalmente desejosos de difundirsua religião, deram graças a Deus por aquilo que viam como um caminho abertopara estabelecer sua doutrina e permitir que a luz do Evangelho brilhasse entreos povos bárbaros, sem Deus nem lei nem religião.”3Vários jovens estudantes cheios de fé, um dos quais o sapateiro Jean deLéry, se ofereceram para o trabalho de instruir os selvagens a respeito docristianismo revelado. Formou-se assim o primeiro grupo de protestantes acruzar o Atlântico. Depois de muitas peripécias, chegaram ao Rio de Janeiro em [Página 72 e 73 do pdf]

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