17 de maio de 1842. A cidade de Sorocaba amanheceraem alvoroço. Há tropas pelas ruas. Rufos de tambores.Clarins. Repicam todos os campanários. O sino grandeda cadeia toca a rebate.Que é?
O povo acorre com ânsia. Vem tudo, borborinhando,ver o que há. A Câmara está reunida. Grande sessãoextraordinária. Preside-a o velho José Joaquim Lacerda. Andam por ali, fardados, os oficiais da guarda. Muitos vereadores. Todas as autoridades civis no recinto.Populares atulham corredores e saguões. Que formigarde gente!
José Joaquim Lacerda ergue-se. Na estranha assembléia, diante do povo, com a assustadora aprovaçãodos militares, exclama:
- “Senhores! D. Pedro II, imperador constitucional doBrasil, é hoje dominado por certa facção política quevai levando o Império às bordas do abismo. Ainda mais:essa facção está reduzindo a província de S. Paulo aomesmo estado mísero das províncias do Ceará e daParnaíba. Isto, senhores, graças à administração tirânica desse procônsul que vem, em nome daquela facção,oprimindo e escravizando a nossa terra.”1
“Diante dos fatos, que são notórios, eu alvitro, comomedida de salvação pública, que coloquemos novo presidente à testa dos negócios da Província. Este presidente governará S. Paulo até que o augusto Soberano,livre da facção que o coage, escolha outro ministério daconfiança nacional”.Silêncio fundo. A multidão ouve, com espanto, as palavras do velho. Aquilo é gravíssimo. José JoaquimLacerda continua:- Senhores! Eu proponho que, por unanimidade, aclamemos presidente da nossa província o coronel RafaelTobias de Aguiar.Levanta os braços no ar. E com retumbância:- Viva o presidente Rafael Tobias de Aguiar!Os conjurados – vereadores, militares, autoridades,gente de prol, todos, com um brado só:- Viva Rafael Tobias de Aguiar!José Joaquim Lacerda nomeia a seguir, a comissãoque deve ir buscar o presidente aclamado.Tobias de Aguiar, há dias já, instalara-se em Sorocaba.O celebrado político mora ao lado. Mora na casa de D.Gertrudes Eufrosina do Amaral.A comissão sai. Torna em breve com o Coronel Tobias.Ao vê-lo, erguem-se todos. Reboam palmas. Vivasfrenéticos.José Joaquim de Lacerda, na presidência, defere ao chefe destemeroso o julgamento de honra. Tobias, sobreos santos Evangelhos, jura. José Joaquim Lacerda, como ritual do estilo, empossa-o no cargo de presidente.O revolucionário lança então, solenemente, naquelasessão histórica da Câmara de Sorocaba, o seu manifesto à nação:- “Paulistas! Os fidelíssimos sorocabanos acabam delevantar a voz: escolheram-me para presidente da província. Estou eu aqui para debelar essa hidra de trintacabeças que vem devorando o país. Estou eu aqui paralibertar a província desse procônsul que vem postergando as leis mais sagradas, Paulistas...”Continua, flamante, a proclamação incendiária. A assembléia aclama-o. Rompem os sinos. A tropa faz asalva de 18 tiros.Rafael Tobias de Aguiar é, desde esse instante, o presidente ilegal de S. Paulo. É ele, com o seu alto prestígio,o chefe da rebelião paulista de 1842.* * *
Por que a rebelião?
O primeiro ministério da maioridade fora liberal. Tinha, noseu seio, três nomes, pelo menos, nacionalmente simpáticos: Antonio Carlos, Martin Francisco, Limpo de Abreu.
Esse ministério, com desgosto da nação, pôs-se a politicar rasteiramente. Empenhou-se, de corpo e alma,em eleger uma câmara sua. Eleger deputados, visceralmente liberais. Fez, para isso, coisas de pasmar: removeu juízes, suspendeu funcionários, demitiu chefes depolícia, deitou abaixo catorze presidentes de Província!
Uma derrubada em regra. Avolumaram-se, no país inteiro, descontentamentos vermelhos. Houve celeumasbravas. O ministério impopularizou-se integralmente.Eis que surge, nos vaivens políticos, este caso pequeno: a retirada do comandante das armas do Rio Grandedo Sul. Aureliano Coutinho é pela medida. Os outros ministros, não. D. Pedro, diante da divergência, aproveitado ensejo para desfazer-se do ministério. Demite-o.Saem os liberais do poder. Mas saem tranqüilos. Saemcom essa risonha segurança de quem tem, para o próximo ano, a Câmara nas mãos.
Os conservadores, subindo ao poder, não começampor vinganças reacionárias. Nada de violências. Tratamapenas, nesse fim de legislatura, de conseguir aindaduas leis: a reforma do processo criminal e a criação doConselho d’Estado. Conseguem-nas.
Contra essas duas leis, batem-se furiosamente os liberais.Transformam-nas em tela da oposição. Jamais a reformado processo criminal! Jamais o conselho d’Estado! Querem os oposicionistas, a toda força, que o governo protelea promulgação delas até a abertura do parlamento:- Empossada a nova Câmara, apregoavam os liberais,as duas leis imediatamente derrogadas!
Mas o governo não cede. No Rio, à vista disso, tramase a revolução. Teófilo Ottoni e Limpo de Abreu fundamo centro político que urde e insufla o levante. São duasas províncias minadas pelos revolucionários: S. Pauloe Minas. E os emissários da corte, infatigavelmente, começam a trançar pelas duas terras rebeladas.
* * *
Rafael Tobias de Aguiar era, pela segunda vez, presidente de S. Paulo. Político, fora ele sempre liberal. Liberal Vermelho. Liberal dos mais exaltados.Quando caiu o gabinete dos seus correligionários, RafaelTobias quis demissionar-se. O ministério, por intermédiode amigos, susteve-lhe o gesto. E o presidente ficou.Os conservadores, porém, não aceitaram, de cara alegre, a estada do liberal no poder. Houve na provínciagrita desabalada. Os situacionistas, junto ao ministériomoveram céus e terra. Clamaram. Protestaram. Exigiram. Foi preciso atendê-los. O ministério não teve poronde sair: demitiu o presidente Tobias.Infelizmente, não foi só. O governo, por essas alturas,promulgou as duas leis detestadas que tinham sido acausa primária da reação.Fez mais: dissolveu a Câmara que os liberais haviameleito!Aquelas medidas, bem se vê, desencadearam tempestades. Atiçaram fúrias. Acutilaram.A idéia do levante, desde então, engrossou temerosamente. Corporificou-se. Em S. Paulo, mais do que emnenhuma parte, cresceu ela para a realização.Rafael Tobias encabeçou o movimento. Entendeu-secom Itu, com Itapetininga, com Porto Feliz, com Campinas. Aprestou tudo.
*Demitido, Rafael passara o poder ao vice-presidenteAlvim. Este não agradou aos conservadores. Teve quepassá-lo ao padre Pires da Motta. Este permaneceutrês meses no poder. Teve, por sua vez, que passá-loao Costa Carvalho, barão de Monte-Alegre. Costa Carvalho era político altamente partidário. Trabalhava desmascaradamente pelos parceiros. Tornou-se com isso, está claro, o alvo dos ódios liberais. Era, na expressão favorita dos insurgentes “o procônsul que vinha es-cravizando a província...”O movimento fora tramado abertamente. Tramado com desassombro. Costa Carvalho, Senhor do plano, pode, com facilidade, sustá-lo na capital. Mas não pode sus-tá-lo no interior. Eis por que, naquela manhã de maio de 1842, estalara, em Sorocaba, o grito revolucionário.
Seriam nove horas da noite. Na casa de D. GertrudesEufrosina, em torno de Rafael Tobias, estão reunidosos companheiros. Lá está o Dr. Gabriel Rodriguesdos Santos, secretário do governo rebelde. Lá estáo velho José Joaquim Lacerda. Lá está o portuguêsMascarenhas Camello. O Vicente Eufrásio. O ManuelCampolim.
Fervem os comentários em torno das notícias. As notícias são ruins. É verdade que Porto Feliz aderira com oDr. João Viegas. É verdade que Itu igualmente aderiracom Tristão Rangel. Mas é só.Tatuí levantara-se pela causa imperial. Levantara-se ebatera já, num pequeno encontro, a coluna que RafaelTobias para lá mandara.Não ficava aí, desgraçadamente. Campinas, por suavez erguera-se pela causa imperial. Jundiaí também.Unido a isso, mais do que isso, aterrorizando, ecoara naProvíncia a grande notícia: o barão de Caxias desembarcara em Santos! E Caxias vinha descendo serra abaixo,com o Exército Pacificador, a combater o Tobias!Os revolucionários discutem. Vêm à tona probabilidades. Esperanças de socorros. Adesões.Nisto, um oficial atravessa o salão. Aproxima-se de Tobias. E em voz baixa:- Acaba de chegar aí um padre. Quer falar com urgênciaao senhor.- Padre?- Sim, um padre de muletas, meio paralítico. Insiste emquerer falar com urgência.- Que entre!O oficial torna. Cai rápido silêncio. Anseiam todos porver quem é. Eis que a porta se abre de novo. O militarfaz um gesto ao chegadiço:*[Páginas 10, 11 e 12 do pdf]