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Quinta da Regaleira, a mansão e o filósofo. nationalgeographic.pt
22 de março de 2022, terça-feira. Há 2 anos
Entre Abril e Maio de 1904, o ornitólogo e entomo´logo belga Philogène Wytsman escreveu quatro cartas com destino a Lisboa. Wytsman estava então no auge da sua actividade científica, que o levaria a coordenar vários volumes sobre aves e insectos até 1914. O destinatário era António Augusto Carvalho Monteiro, o milionário nascido no Rio de Janeiro em 1848, consagrado na tradição popular como o “Monteiro dos Milhões”, alcunha que herdara do pai. O que pretendia o cientista deste luso-brasileiro que tratava como “caro colega”?

Monteiro e Wystman discutiam a troca de obras científicas recentemente publicadas e a aquisição da pele e esqueleto de um ocapi proveniente do Congo Belga. É bom lembrar que esta espécie da família das girafas fora descoberta apenas em 1901, circunscrita à actual República Democrática do Congo e tornara-se uma excentricidade desejada. Wytsman informou que o primeiro ocapi trazido para a Europa viera para o Museu Britânico em 1901 e custara 30 mil francos. A pele e esqueleto deste animal valeriam agora 15 mil francos.

Em troca, o luso-brasileiro teria de obter “três altas distinções honoríficas para os funcionários do Estado do Congo [assunto possível com a intervenção do ministro] que confidencialmente são meus amigos”, escreveu Wytsman. Percebe-se, já nas cartas de Maio de 1904, que Carvalho Monteiro interveio em nome do Museu Zoológico de Lisboa e do seu amigo naturalista José Barbosa du Bocage, mas, desta vez, não teve sorte: Wytsman informou, a 28 de Maio, que a cobiçada peça seguiria para o Museu de Estocolmo.

Escassa correspondência de Carvalho Monteiro chegou aos nossos dias e esse espólio remanescente deve muito ao cuidado dos descendentes. Este episódio, porém, ajuda a resolver um equívoco com mais de um século: o rótulo de capitalista excêntrico, ocioso e beneficiário de uma fortuna que lhe permitiu nunca exercer uma profissão, esconde a verdadeira dimensão da sua biografia, que a Fundação Cultursintra, entidade que divulga e estuda o património cultural da Quinta da Regaleira, tem vindo a descobrir. Há hoje razões para acreditar que a famosa caricatura desenhada por Francisco Valença, que mostra Carvalho Monteiro no dorso de um burro, abençoado pela fortuna, com o livro de cheques pendente do bolso e moedas a escorrer da cartola, é uma ínvia representação do ideólogo da Quinta da Regaleira.

Eça de Queiroz, por quem o romântico António Carvalho Monteiro não nutriria particular apreço, escreveu:

Para alargar o conhecimento sobre os grandes homens, De facto, não é fácil fazer a arqueologia de uma vida extinta há 90 anos. Para tal, socorremo-nos de fragmentos de informação, relatos orais e documentos como peças de um puzzle incompleto."

António Carvalho Monteiro viveu no Brasil até aos treze anos de idade. O pai, Francisco Monteiro, um português de Lagos da Beira, emigrara aos 13 anos para escapar ao sacerdócio que o seu pai havia destinado para si. Trabalhou numa empresa de importação de carvão inglês e viria a casar com Teresa de Carvalho, a filha de um rico comerciante que partira de Lisboa com a corte portuguesa. A família possuía um rico património imobiliário e fundiário potenciado depois pelo crescimento da cidade brasileira.

O apreço por Portugal e Brasil manteve-se impregnado na família: de Portugal, Francisco Monteiro não se coibiu de participar em 1863 na subscrição pública para ajudar o império brasileiro, lembrando que foi ali que “passou os melhores 21 anos” da sua vida; em 1890, em contrapartida, poucos meses antes de falecer, foi um dos primeiros aderentes à subscrição nacional de auxílio ao governo português, pressionado pelo ultimato inglês.

Em Portugal, a família viveu primeiro na Rua da Couraça de Lisboa, em Coimbra, cidade onde António Carvalho Monteiro estudava, e mais tarde no palácio da Rua do Alecrim, adquirido em hasta pública em 1874 após falência do conde de Farrobo. Fora a residência de Junot durante a primeira invasão francesa.

O jovem licenciou-se em direito, entre 1866 e 1871, com 14 valores, e terminou igualmente o curso administrativo, então composto por várias cadeiras de filosofia natural, recebendo prémios em agricultura e mineralogia. Dominaria já o latim, o grego, o francês e o alemão e, graças à sua facilidade de memória, chegou a recitar integralmente os “Lusíadas”, fazendo jus à tradição familiar de camonista dedicado em que se tornaria.

Em 1873, casou com Perpétua Augusta Pereira de Melo, com a qual teria dois filhos. Residiu em Petrópolis e no Rio nos três primeiros anos de casamento, movido pela paixão pela entomologia.

Casamento de António Augusto de Carvalho Monteiro com Perpétua August...
1873 (Há 151 anos)
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Ver ano
68 registros

Radicado por fim em Lisboa em 1876, investiu na sua paixão pelas ciências naturais e tornou-se membro das mais importantes sociedades científicas do seu tempo, como a Real Sociedade Espanhola de História Natural (1877), a Sociedade Entomológica de França, a Sociedade de Geografia de Lisboa (ambas em 1878), a Sociedade Entomológica de Londres e a da Bélgica (ambas em 1879), a Sociedade de Aclimatação Zoológica de Paris (1885), a Sociedade Broteriana de Coimbra (1886), a Sociedade Entomológica Alemã (1889) e a Sociedade Entomológica de Berlim (1890). Em 1893, foi proposto para a Academia das Ciências de Lisboa (ACL) por um trio luxuoso de cientistas – Nery Delgado, Barbosa du Bocage e Alberto Girard – que referiram, na carta de recomendação, a sua colecção ímpar de lepidópteros e conchas, bem como o impacte que estas tiveram na investigação de Francisco Arruda Furtado, um dos primeiros defensores do darwinismo em Portugal. Miguel Telles Antunes, director do Museu da ACL, contextualiza assim a referência: “Os estatutos da ACL requerem que os novos sócios correspondentes sejam propostos e a sua ade- são é votada para evitar que entrem na ACL indivíduos que não tenham a ciência como a sua principal actividade.” A proposta de adesão, e posteriores eleições como sócio efectivo de segunda e primeira classe suportam a tese de que não se tratava de um mero capitalista em busca de uma medalha de história natural.

Recuando no tempo, até 1882, percebe-se porquê: Carvalho Monteiro publicou então no “Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes de Lisboa”, um artigo descrevendo uma nova variedade de lepidóptero encontrada na serra da Estrela e dedicada a Mattozo Santos, chefe da secção zoológica da comissão científica que se lançara à descoberta da serra. Foi o achado mais entusiasmante da campanha e revelou a paixão de Carvalho Monteiro pelas borboletas. Aliás, já em 1880, o biólogo Paulino de Oliveira observava que “a sua colecção contém um grande número de espécies e é particularmente notável pelas espécies inéditas do Brasil e pela preparação irrepreensível dos exemplares”.

A obsessão por lepidópteros levou-o a reunir mais de seiscentas obras sobre entomologia, como notava “A Época” a 26 de Outubro de 1920.

“A Época”
26 de outubro de 1920, terça-feira (Há 104 anos)
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Ver ano
76 registros

Terá sido ele “o comprador estrangeiro” da colecção de Jean-Étienne Berce de borboletas paleárcticas de que se queixava a imprensa francesa em 1880. À data da sua morte, “A Época” revelava também que ele possuía a segunda maior colecção mundial de lepidópteros, só superada pela do barão Walter de Rothschild.

Coleccionava também conchas, tendo juntado mais de dez mil exemplares, mais tarde doados a Coimbra. E o amigo Sérgio de Braga recordava-o, em 1926, como “possuidor cuidadoso e dedicado da primeira colecção de orquídeas que existe em Portugal”. Apaixonado pela ópera, coleccionador de arte, de objectos arqueológicos, relógios e instrumentos musicais, bibliófilo incansável, Carvalho Monteiro tinha a mais vasta camoniana da sua época, tendo editado várias obras nas homenagens do tricentenário de Camões.

Distinguiu-se ainda pela filantropia. Esteve envolvido com o pai desde 1883 na fundação do Jardim Zoológico, do qual foi director executivo e presidente honorário em 1917. Participou também na fundação da Assistência Nacional aos Tuberculosos em 1899, apadrinhada pela rainha Dona Amélia. João Neto, director do Museu da Farmácia, explica que a associação foi um marco na luta contra a doença. “Foi a primeira vez que se usou a palavra ‘cruzada’ no contexto de uma guerra contra a doença. A sociedade organizou-se e reuniu fundos para ajudar os mais pobres.” Foi também a primeira vez que se pressentiu que, sem a cruzada, a doença poderia bater à porta de qualquer um, como sucedera em 1897 com Sousa Martins, seu colega na direcção do Zoológico.

Em 1893, a Quinta da Regaleira foi vendida em hasta pública e arrematada por Carvalho Monteiro, que lhe juntou nos dois anos seguintes outros terrenos, constituindo uma propriedade pentagonal, bem abastecida de água. A Regaleira que conhecemos é o resultado da reflexão de um homem maduro, que lhe dedicou mais de duas décadas e sabia bem o que pretendia.

O arquitecto Henri Lusseau desenhou os primeiros planos entre 1895 e 1896, mas a incapacidade de reinterpretar o estilo manuelino pretendido pelo proprietário levou à procura de outro intérprete. Carvalho Monteiro viria a encontrar em Luigi Manini, que fizera carreira como cenógrafo no Teatro La Scalla e mais tarde no São Carlos e nos principais teatros portugueses, o seu braço direito. Entre 1898 e 1911, expôs o seu misterioso programa iconológico e Manini desenhou, encomendou obras e supervisionou. Ao contrário do que já foi proposto, a documentação existente e a tradição oral da família descartam a hipótese de ter sido Manini o ideólogo solitário do projecto. De facto, nem no Palace Hotel do Buçaco nem nas suas obras restantes se constata uma continuidade com este discurso. O que pretendia Carvalho Monteiro na Quinta da Regaleira? Esta pergunta já foi respondida várias vezes com a sugestão de uma filiação de Carvalho Monteiro em sociedades iniciáticas. Nenhum documento conhecido suporta esta tese, mas ela infiltrou- -se no discurso popular (e talvez ajude a explicar a popularidade crescente deste espaço, que recebeu em 2019 mais de um milhão de visitantes).

Na verdade, a Regaleira pode ser interpretada como uma mansão filosofal, um território cénico, de carácter mítico, em correspondência com uma viagem iniciática que expressa as linhas-mestras do pensamento do seu ideólogo: a recuperação romântica dos Descobrimentos portugueses e da mitologia, patente na decoração neomanuelina e nas várias referências aos clássicos, a Camões e aos “Lusíadas”; a evocação da cavalaria espiritual e da missão da Ordem de Cristo, afirmando a tradição mítica lusa e o culto mariano; e, acima de tudo, a concepção do espaço como realidade ontológica, neste referenciando as origens do homem, a sua natureza e o seu destino e concretizando, numa nova cosmologia, o ideal de uma nova idade de ouro para a humanidade pela convergência da sabedoria, da harmonia e da abundância.

Em todos os recantos da Quinta da Regaleira, este programa simbólico conjuga-se com o que hoje sabemos do naturalista. Encontramo-lo na estufa, onde Carvalho Monteiro cultivava orquídeas e onde se prestou homenagem ao botânico Félix Brotero. Revemo-lo no portal dos guardiões, onde duas criaturas imaginárias seguram um búzio exibido em posição vertical. A Quinta da Regaleira é uma tela de filosofia natural. No topo do palácio, num terraço de acesso privado ao seu proprietário, figura um bestiário misterioso, composto por animais fantásticos, híbridos, representando a transmutabilidade da matéria e a transitoriedade de todas as coisas com conotações alquímicas.

Para um monárquico convicto, próximo da rainha D. Amélia e do rei D. Carlos (que foi portador em 1901 do “relógio mais complicado do mundo”, encomendado ao relojoeiro Louis Leroy), a implantação da República em 1910 terá sido um golpe. Sabe-se pouco sobre a sua última década de vida. As obras do Palácio da Regaleira terminaram em 1911 e, em 1912, Manini regressou a Crema. 1913 foi o annus horribilis do capitalista, detido juntamente com outros quatro homens por alegado envolvimento no “complot da Praia das Maçãs”, uma tentativa de homicídio de Afonso Costa. Acusado de dar guarida a um dos conspiradores, Carvalho Monteiro protestou, como notava “A Capital”, com uma “veemência extraordinária, que o leva a um estado de irritação verdadeiramente excepcional”. Seria libertado semanas depois, sem reconhecer culpa, mas admitindo, com orgulho, ter contribuído para a caravela de prata que um grupo de monárquicos oferecera como presente de casamento a D. Manuel no exílio. Pouco depois, no dia de Natal, a mulher morreu.

Na sequência de uma queda, Carvalho Monteiro viria a falecer a 24 de Outubro de 1920, às 11h55, como notou o “Diário de Notícias”, no seu quarto da adorada Quinta da Regaleira. Numa das setes medalhas de ouro que usava ao pescoço, está inscrito um dos lemas da sua vida: “Serpenteio, mas não me desvio.”


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