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Religião e sociedade
1990. Há 34 anos
parece-me importante: não apenas ele, o romeiro, mas também eu, o pesquisador, somosconformados pela simbologia cristã da Pàixão. É bem verdade que eu, à diferença dele, seide outras ordenações simbólicas, seja pela leitura ou por outras viagens, fato que nosdistingue, criando impasses e estfmulos especfficos à comunicação entre nós. Mas, chegando-me a ele, descubro em minha própria experiência ressonâncias profundas aos seus gestose às suas palavras. Somos parceiros, em suma, de uma mesma Paixão, e testemunhas deque ela comporta ml´íltiplas expressões. Não há entre nós um vazio. Temos do que conversar.Anteriormente às diferenças que nos distinguem, há referências comuns, que não nasceramnem desaparecerão conosco. Neste sentido, num plano anterior às possibilidades que cadaum de nós manipula vida afora, estamos em pé de igualdade. A pesquisa de campoaproximou-nos, gerando um encontro improvável que nos permitiu explorar estes laçoscomuns, e anteriores, que nos unem. Naturalmente, cada um fez isto a seu modo. Isto sedeu em 1983, seis anos passados. Ainda recentemente, recebi dele um telefonema, feito deum orelhão, a cobrar, convidando-me para fazermos juntos uma outra romaria. É possívelque tivesse algum interesse prático em mente ao fazer o convite; mas acredito também quea experiência de viajar com alguém tão diferente, e ainda assim tão próximo, tenha sidosignificativa para ele.É com embaraço, portanto, que me vejo forçado a omitir a sua verdadeiraidentidade. Troquei os nomes das pessoas e do lugar onde vivem, guardando no entanto asdistâncias originais. Há episódios fntimos que julguei necessário relatar, e na verdade nãoescrevi este texto para ele ou para os seus. O resultado desta pesquisa não está destinadoao sujeito pesquisado; não deve ser "devolvido". Destina-se a um outro p6blico, de classemédia intelectualizada, que geralmente só conhece os "pagadores de promessa" através dosfilmes e da imprensa.Mantive, contudo, o nome correto de Hera Ido Maués, colega antropólogo, que meacompanhou na pesquisa de campo, participou da coleta de dados e fez inúmeras sugestõesrelevantes. O texto final beneficiou-se ainda de comentários feitos pelos colegas CarlosBrandão, Maria Laura Viveiros de Castro, Oscar Calavia Saez, Pierre Sanchis e RiolandoAzzi, num proveitoso seminário realizado no Instituto de Estudos da Religião. Graças aeles, e ao apoio oferecido pelo Instituto Nacional do Folclore, pude incluir esta pesquisanos quadros de um estudo maior sobre os sentidos da "paixão brasileira". Havendo optadopor apresentar a pesquisa como quem conta uma história, preferi omitir as referênciasbibHográficas implfcitas no texto. Perde-se assim um gênero de informação relevante.Ganha-se, por outro lado, maior leveza na leitura. Não quis fazer aqui um exercfcio deerudição, embora reconheça que ela é indispensável em outros tipos de trabalho.

O ENCONTRO

Conheci Francisco da Costa Flores em Bom Jesus de Pirapora, na Semana Santade 1982. Trata-se de um santuário bem conhecido às margens do rio Tietê, nos arredoresda Grande São Paulo. O vilarejo formigava de gente, num dia ensolarado, cuja atração maior consistia de romeiros que chegavam arrastando cruzes de madeira. Todo ano, na Sexta-Feirada Paixão, chegam a Pirapora trezentas, quatrocentas, quinhentas cruzes.Reparei em FCF (abreviação que ele usa) porque não podia deixar de reparar. Erao dono de uma cruz enorme, acorrentada a um poste, à parte das demais, a uns trinta metrosda igreja. Achava-se rodeada de curiosos a puxar conversa sobre romarias. Acheguei-meao grupo, e foi então que comecei a conhecê-lo. A superioridade de FCF era evidente. Outrostrazem cruzes de 20, 40, SOkg somente, enquanto a dele, ao que dizia, pesava 130. Em geral,vêm em dois ou três, revezando-se no caminho, enquanto ele carregara só. O destaqueprovocava brincadeiras, e o herói do dia concedeu de bom grado tirar a corrente para queos colegas pudessem experimentar o peso, ou até mesmo tirar fotografia fingindo carregara maior cruz do ano.A conversa foi interrompida com a chegada da mulher, pelo ônibus, trazendo nocolo uma menina de uns quatro anos de idade. A entrada das duas, vestidas festivamente,pôs FCF em movimento. Pegou a filha num braço, levantou a cruz no ombro oposto, ecompletou a romaria, caminhando os 61timos metros até a porta da igreja. Para minhasurpresa, fez isto chorando. Um pessoal de televisão, que circulava em meio à multidão deromeiros, correu a pedir-lhe que repetisse a cena para que pudessem filmá-la, ao que eleassentiu. Naquela noite, já em São Paulo na casa de amigos, assisti FCF contar a suapromessa no Jornal Nacional da TV.Um outro episódio me intrigou pelo feixe de emoções que continha. Junto ao Cbico(como é geralmene chamado), estava o seu irmão, homem baixo e atarracado, de aparênciaruim. Era o companheiro de viagem, que fazia o percurso pedalando uma velha bicicleta,responsável ele pela água e o farnel. Num momento, já no banco da praça, o irmão brincoucom a menina, a mulher reclamou da brincadeira, o irmão insistiu e a mulher desabou umchoro bravo que só foi silenciado quando FCF levantou a mão, num gesto próprio a quemsabe bater em rosto de mulher. Foi apenas um relance, mas a cena ficou na memória.De volta à frente da igreja, onde as cruzes se amontoavam, FCF pegou a sua e searrastou ainda até a sala dos milagres, terminando de vez com o prometido. Fomos então,ele próprio, o irmão, eu, mais meia d6zia de promesseiros, a um bar da esquina festejar.Animados por várias rodadas de mé (cada uma ofertada aos demais por alguém do grupo),proseamos bastante e cantamos descontrafdos no estilo caipira das modas de viola. Anoteiuma das canções, que chamavam Hino do Romeiro:Com 10 dias de viagemSem esperança perderNo alto de um espigãoEu vi o sino gemerEu vi a linda paisagemQue nunca hei de esquecerA matriz de PiraporaNa margem do rio TietêAté a porta da igrejaO meu carro nos conduzLevei minha mãe doenteNo altar cheio de luzAli mesmo ajoelheiFazendo o sinal-da-cruzBeijei a imagem sagradaDo abençoado JesusFoi a cura milagrosaDesceu ali naquela horaMinha mãe saiu andandoDaquela igreja pra foraFoi o milagre da féFalo por Nossa SenhoraBendito seja pra sempreBom Jesus de PiraporaReligião e Sociedade 15/2-3 1990Foi neste clima festivo que surgiu a idéia de fazermos, juntos, a romaria do anoseguinte. Marcarramos um encontro na estrada, onde FCF, de Jundiar, esperaria pelosdemais, que vinham de Piracicaba, bem mais distante (uns 200 km de Pirapora). NatálioRubia, piracicabano, um senhor de mais idade, convidou-me pessoalmente para ajudá-lo acarregar a sua cruz. E assim ficamos.A PROMESSA"A promessa primeira que eu paguei foi pro meu fibo (que morreu, Deus nãoquis ... ). A segunda foi pra minha mãe, set.e cruzes. Levei pra essa menina. Leveioutra de agradecimento, para completar a décima." (FCF)O principal de uma promessa é que seja cumprida. Foi com este sentido que FCFexpressou o seu contentamento ao me ver chegar em sua casa meses passados do nossoencontro em Pirapora. Eu havia procurado sem sucesso os piracicabanos, e fui atrás doFrancisco. Minhas anotações do seu endereço estavam um tanto confusas, mas o garçomdo restaurante onde almocei ao chegar em Jundiaf soube me informar, pelo assunto deromaria. Ouvira falar, sim, do Chico da Cruz, morador de um bairro de periferia chamadoVila São Bartolomeu. No bairro, o mesmo diálogo com o dono de um bar, que me indicoua rua, de terra batida; e da rua à casa, pelos vizinhos.Chico louvou a minha conduta, vir de tão longe, conforme o prometido, e malhouo pessoal de Piracicaba, companheiros só da boca pra fora. Não deram notfcias, nemmandaram cópia das fotos que tiraram da cruz. "Um homem, pra ser chamado assim, temque cumprir. Ele se esforça, mas cumpre. Se falar ´eu vou´, ele vai!( ... ) As minhas eu cumprias dez. Sempre pedi a Deus que nunca deixasse pros meus irmãos, porque eu queria terminaressa promessa."A ênfase na palavra empenhada faz pensar nos códigos de honra mediterrâneosestudados por Pitt Rívers. Roberto da Matta os tem explorado no contexto da culturabrasileira. Matta diria, creio eu, que esta "palavra sagrada" é sinaJ de um vínculo de lealdade que deve prevalecer nas relações que têm valor; ou, ainda, num nfvel mais abstrato, quepara gente como FCF são as relações que têm valor. Não se pensa ele como um sujeitomoral suficiente em sua individualidade; mas como um alguém transpassado por uma teiaintrincada de laços pessoais, a começar pelos familiares. Ele nasce assim, carregado dedependências. Com efeito, percorreu os dez primeiros anos da vida adulta de homem casadoempenhando-se ritualmente pela sorte da mãe e dos filhos. Encontrei-o nos momentos finaisda longa promessa, e podia me dizer que, com certeza, havia encontrado nele um homemde palavra honrada. Acompanhando-o passo a passo numa romaria, vim a apreender algomais. Vi de perto a dificuldade de manter a promessa, sutileza propfcia à aproximação deum detalhe fundamental, muitas vezes esquecido nos livros de sociologia: a promessa nãoé dirigida a um ou outro membro da famflia, a uma ou outra relação deste mundo, mas aoSanto, ao Bom Jesus.A CRUZA promessa original previa uma progressão que foi cumprida: começar devagar,com uma cruz de tamanho médio, e aumentá-la sucessivamente. A primeira pesou uns trintaquilos, e as seguintes acrescentaram dez quilos a cada ano. A décima e liltima da promessaoriginal pesava uns cento e vinte. Esta nossa, a décima primeira de FCF, seria ainda maior.´´Tem uns cento e quarenta", asseverou. Na verdade, é diffcil dizer ao certo pois nãodispúnhamos de uma balança capaz de pesá-la, e os números de FCF variavam conformeo sentido que quisesse dar à conversa. Comprei o material com ele (eu pagando) numa visitaanterior, mas ele acrescentou mais tarde outro pedaço para fazer uma emenda e completarsete metros de extensão do corpo da cruz. Os braços ficaram com três metros, um e meiopara cada lado. "Justinha para o seu tamanho", disse-me ele num sorriso. Eram caibros de16 por 6cm, de madeira verde.Compramos ainda parafusos, tinta preta, branca e amarela, mandamos fazerrodinhas de ferro (item mais caro) para atarrachar em um pino atravessado no pé da cruz.As rodinhas facilitariam o movimento na estrada, sendo devidamente retiradas na safda ena chegada da viagem. A tinta preta não era sinal de luto, mas simplesmente uma base pararealçar as letras escritas em branco ou amarelo. Escrever em cima do verniz ou da madeiranão faz tanto destaque. "A pessoa dá de cara com uma cruz preta na estrada, toda escrita,bem bonita ... Tem mais aparência!" O branco realça à noite, sob a luz dos faróis, o amarelo"faz sombra" e é melhor para a luz do dia. A parte traseira dos braços foi decorada comletras gratidas, formato de imprensa, desenhadas por um amigo pintor. Do lado esquerdo,o trajeto a percorrer, "Jundiaf a Pirapora", e o dia da safda. No outro braço, ainda na partetraseira, FCF inscreveu uma frase edificante, como costuma fazer todos os anos. Escolheupara a nossa cruz os dizeres: "Fraternidade sim, violência não!" Era o tema da Campanhada Fraternidade da CNBB para 1983, que FCF ouviu pronunciado pelo "João de Deus" natelevisão. Gostou e botou. A primeira idéia foi usar uma frase sugerida pelo amigo pintor:"Se Jesus morreu de braços abertos, por que o p[Página 100]

Depois de bem arrumada, com os dizeres, o colorido das fitas, as chapinhasrefletoras, o som, o crucifixo e tudo mais, formou-se um conjunto semelhante ao visual dos caminhões que circulam pelas estradas brasileiras. FCF, é evidente, afeiçoou-se à sua cruz:inscreveu nela sinais de sua vida fntima, deu-l.he um tratamento estético para que o todoficasse vistoso, e como um Atlas caipira do cristianismo ibero-brasileiro, botou o seu mundonas costas, e partiu em romaria.

A PARTIDA

FCF estimava três dias de caminhada para os cinqUenta e poucos quilOmetros deJundia{ a Pirapora. Pintou, portanto, na cruz a data de sarda correspondente à terça-feira,conta justa para chegar sexta bem cedo. Combinou sair na segunda, contudo, para dar umafolga no caminho; mas não agüentou a espera e nos fez partir já na madrugada de sábadopara domingo.Fiquei confuso com a manipulação das datas e insisti em conversar a respeito.Aflnal, escreveu na cruz, está escrito, é sagrado. Além do mais, o próprio Chico sinalizouo embaraço cobrindo a data de sa{da com um plástico, que só veio a retirar bem adiante, naquarta-feira, quando a seqüência de datas na cruz tomara-se plaus{vel. Truque curioso,como se quisesse tapear o Santo. "Não tem problema", respondeu. "O importante é chegarna sexta-feira. É a data de chegada que não pode falhar. A safda não tem importância." Porque, então, escrevê-la assim, sabendo que tem de escondê-la? "Porque, ao certo, são trêsdias de caminhada ... "A explicação não me convenceu (só mais tarde perceberia o sentido maior,surpreendente, daquele plástico a encobrir os dias exatos da romaria), mas bastou por agora,e me fez refletir sobre uma outra iaéia. A tapeação, no caso, não prejudicaria o relacionamento do Chico com o Bom Jesus, desde que a cruz fosse entregue na sexta, conforme oprometido. A mentira fora reduzida a uma alteração no modo de fazer o que ,devia ser feito,uma variação ritual que não abalava a validade do rito. A chegada, sim, era sagrada, mas asa{da ficava por conta do próprio Chico, que tinha as suas razões para mexer com ela, razõesque, importando a ele, não importavam ao Santo.O racioc{nio é razoável, mas parece coisa de pessoal de transporte (importa é quea encomenda esteja em seu destino no dia combinado) e pouco tem a ver com a religiosidademais nossa conhecida. Para nós, pesquisadores de classe média, afetados pela sensibilidade"moderna", a religião identifica-se com a busca de uma transparência da consciência diantede si mesma, na presença de Deus. A fé puritana e também a postura moral que chamamos"esclarecida" valorizam a interioridade da consciência, a relação auto-referida, de si a si acada passo. Não há nelas cabimento para a tapeação na passagem do profano ao sagrado.A própria expressão "passagem" não é adequada aqui, pois, supõe-se, a consciência nuncaestá afastada de si mesma e não tem como distanciar-se do olhar divino. A rigor, a própriadistinção entre "profano" e "sagrado" não tem justificativa neste contexto. O crentemoderno está em peregrinação a todo dia e a toda noite, seja em casa, no trabalho, na ruaou na estrada. Sua sina é "ser honesto" consigo mesmo, e seu drama a dificuldade de sercomo deve. O problema moral está no cerne de ua religiosidade e de sua consciência. [Página 101]

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