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História da Literatura Brasileira, de José Veríssimo (txt)
11 de junho de 1915, sexta-feira. Há 109 anos
Muitos dos escritores brasileiros, tanto do período colonial como do nacional, conquanto sem qualificações propriamente literárias, tiveram todavia uma influência qualquer em a nossa cultura, a fomentaram ou de algum modo a revelam. Bem mereceram, pois, da nossa literatura. Erro fora não os admitisse sequer como subsidiários, a história dessa literatura. É também principalmente como tais que merecem consideradas obras, aliás por outros títulos notáveis, como a de Gabriel Soares ou os Diálogos das Grandezas do Brasil. Os portugueses que no Brasil escreveram, embora do Brasil e de cousas brasileiras, não pertencem à nossa literatura nacional, e só abusivamente pode a história destas ocupar-se deles. O mesmo sucede com outros estrangeiros que aqui fizeram literatura como o hispano-americano Santiago Nunes Ribeiro, o espanhol Pascoal, ou os franceses Emile Adet e Louis Bourgain. Aqueles pelo caráter e estilo de suas letras eram, como os mesmos brasileiros natos, portugueses, e como o eram igualmente de nascimento e forçosamente de sentimento – que este se não naturaliza – como quaisquer outros estrangeiros, não cabem nesta história. No seu primeiro período ela é a dos escritores portugueses nascidos no Brasil, no segundo dos autores brasileiros de nascimento e atividade literária. Os portugueses que para cá vieram fazer literatura após a Independência, Castilhos, Zaluares, Novais e outros, nem pela nacionalidade ou sentimento, nem pela língua ou estilo, não pertencem à nossa literatura, onde legitimamente não se lhes abre lugar. São por todas as suas feições portugueses. Assim, os brasileiros que, alheando-se inteiramente do Brasil, em Portugal exerceram toda a sua atividade literária, como o infeliz e engenhoso Antônio José e o preclaro Alexandre de Gusmão, também não cabem nela. Tudo autoriza a crer que Antônio José e Alexandre de Gusmão não teriam sido literariamente o que foram se houvessem ficado no Brasil. Foi, pois, Portugal, a sua pátria literária, como o Brasil foi a pátria literária de Gonzaga.

...Entretanto no tempo de Vieira, a maior parte do século XVII, já no Brasil havia manifestações literárias no medíocre poema de Bento Teixeira (1601) e nos poemas e prosas ainda então inéditas mas que circulariam em cópias ou seriam conhecidas de ouvido, de seu próprio irmão Bernardo Vieira Ravasco, do padre Antônio de Sá, pregador, de Eusébio de Matos e de seu irmão Gergório de Matos, o famoso satírico, de Botelho de Oliveira, sem falar nos que incógnitos escreviam relações, notícias e crônicas da terra, um Gabriel Soares (1587), um Frei Vicente do Salvador, cuja obra é de 1627, o ignorado autor dos Diálogos das Grandezas do Brasil e outros de que há notícia.

Do século XVI escrito no Brasil, se não por brasileiro nato, por brasileiro adotivo, nacionalizado por longa residência no país e enraizamento nele por família aqui constituída e bens aqui adquiridos, só nos resta um livro, o Tratado descritivo do Brasil, por Gabriel Soares de Sousa, terminado em 1587. Nem pelo estímulo que o originou, nem pelo seu propósito, nem pelo estilo é o livro de Gabriel Soares obra literária. Era, como diríamos hoje, um memorial de concessão apresentado ao Governo, como justificativa dos favores que para a sua empresa de exploração do país lhe pedia o autor. A obra, porém, lhe excedeu o propósito. Deu a este memorial desusada extensão e uma amplitude que o fez abranger a história e a geografia, no seu mais largo sentido, da grande colônia americana então sob o domínio espanhol. A sinceridade da sua longa, minuciosa e exata informação não chegam a prejudicar-lhe os gabos e encarecimentos da terra, que no forasteiro aclimado revêem uma viva e tocante afeição ao seu exótico país de adoção, onde passara da pobreza à abastança, a que consagrara o melhor da sua existência e atividade, onde amara e fora amado, fizera família e iria morrer na busca aventurosa e dura das suas riquezas nativas. Podíamos portanto adotá-lo por nosso se acaso este simpático feitio de sua obra não revisse também o propósito de empreiteiro de facilitar-se a mercê impetrada, justificando-a sobejamente com a notícia interesseira da terra que se propunha a explorar. Como não era um letrado e a sua "tenção, conforme declara, não foi escrever história que deleitasse com estilo e boa linguagem", e não esperava "tirar louvor desta escritura", saiu-lhe a obra, embora rude de feitura e pouco castigada de linguagem, menos eivada dos vícios literários do tempo, e, por virtude do próprio assunto, muito mais interessante e proveitosa ainda hoje do que a maior parte das que então mais classicamente se escreviam, sermonários, vidas de santos, crônicas de reis, de príncipes e magnates, livros de devoção e milagrices.

Nunca publicada antes que o fizesse sem ainda lhe saber o autor, em 1825, a Academia Real das Ciências de Lisboa,21 a obra de Gabriel Soares, sem embargo de inédita, não passou desapercebida aos curiosos do seu objeto, imediatos ou posteriores ao inteligente e laborioso reinol. Se a não compulsou o nosso primeiro cronista nacional, Frei Vicente do Salvador, conheceram-na e versaram-na o clássico autor dos Diálogos de vária história, Pedro de Mariz, Jaboatão, o perluxo cronista franciscano, Simão de Vasconcelos, o não menos difuso e não menos gongórico cronista jesuíta, o bom autor da Corografia brasileira, Aires de Casal, e depois, mas ainda em antes dela impressa, outros historiadores e noticiadores do Brasil, Roberto Southey, Ferdinand Denis, Martius. As numerosas cópias manuscritas (Varnhagen dá notícia de vinte) que sem embargo do seu volume (de mais de trezentas páginas impressas in 8º) desta obra se fizeram, indicam que se permaneceu inédita não foi porque a houvessem por desinteressante ou somenos. Somente o suspicaz ciúme com que a metrópole evitava a divulgação das suas colônias pode explicar assim ter permanecido obra de tanta valia. Gabriel Soares de Sousa, nascido em Portugal pelos anos de 1540, veio para o Brasil pelos de 1565 a 1569. Na Bahia estabeleceu-se como colono agrícola. Ali casou e prosperou a ponto de nos dezessete anos de estada se fazer senhor de um engenho de açúcar, e abastado, como do seu testamento se depreende. Ganhando com a fortuna posição, foi dos homens bons da terra e vereador da Câmara do Salvador. Um irmão seu que, parece, o precedera no Brasil havia feito explorações no sertão de São Francisco, onde presumira haver descoberto minas preciosas. Falecido ele, quis Gabriel Soares prosseguir as suas explorações e descobrimentos. Com este propósito passou à Europa em 1584, a fim de solicitar da Corte da Madri autorização e favores para o seu empreendimento de procura e exploração de tais minas. Por justificar os seus projetos e requerimentos, e angariar-se a boa vontade dos que podiam fazer-lhe as graças pedidas, nomeadamente do Ministro D. Cristóvão de Moura, redigiu nos quatro anos de 1584 a 1587 o longo memorial, como ele próprio lhe chamou, que conservado inédito até o século passado, foi nele publicado sob títulos diferentes, o qual constitui uma verdadeira enciclopédia do Brasil à data da sua composição.

Gabriel Soares, sujeito de bom nascimento se não fidalgo de linhagem, suficientemente instruído, sobreinteligente, era curioso de observar e saber, e excelente observador como revela o seu livro. Embora determinado por uma necessidade de momento, não foi este composto de improviso e de memória. Para o redigir serviu-se, como declara, das "muitas lembranças por escrito" que nos dezessete anos da sua residência no Brasil fez do que lhe pareceu digno de nota. Obtidas as concessões e favores requeridos, nomeado capitão-mor e governador da conquista que fizesse e das minas que descobrisse, partiu para o Brasil em 1591, com uma expedição de trezentos e sessenta colonos e quatro frades. Malogrou-se-lhe completamente a empresa, pois não só naufragou nas costas de Sergipe mas depois veio, com o resto da expedição que conseguira salvar do naufrágio e reconstituíra na Bahia, a perecer nos sertões pelos quais se internara. Seus ossos, mais tarde trazidos para a Bahia, foram e se acham sepultados na capela-mor da igreja do mosteiro de S. Bento, tendo sobre a lápide que os recobre o epitáfio: "Aqui jaz um pecador" segundo o disposto no seu testamento.22 Deste documento induz-se que era homem abastado, devoto, nimiamente cuidadoso da salvação da sua alma, mediante esmolas, obras pias, missas e quejandos recursos que aos católicos se deparam para o conseguir.

Não é propriamente a obra de Gabriel Soares literária, nem pela inspiração, nem pelo propósito, nem pelo estilo. Só o é no sentido, por assim dizer material, da palavra literatura. O estilo é, como pertinentemente mostrou Varnhagen, aliás achando-lhe encanto que lhe não conseguimos descobrir rude, primitivo e pouco castigado, mas em suma menos viciado dos defeitos dos somenos escritores contemporâneos, mais desartificioso do que o começavam a usar os seus coevos, como de homem que não fazia literatura e não cuidava de imitar os que a faziam.

É grande, porém, o mérito especial dessa obra. Varnhagen se o encareceu não o exagerou demasiado escrevendo, ele que mais do que ninguém a estudou e conheceu: "Como corógrafo o mesmo é seguir o roteiro de Soares que o de Pimentel ou de Roussin; em topografia ninguém melhor do que ele se ocupou da Bahia; como fitólogo faltam-lhe naturalmente os princípios da ciência botânica; mas Dioscórides ou Plínio não explicam melhor as plantas do velho mundo que Soares as do novo, que desejava fazer conhecidas. A obra contemporânea que o jesuíta José de Acosta publicou em Sevilha em 1590, com o título de História natural e moral das Índias e que tanta celebridade chegou a adquirir, bem que pela forma e assuntos se possa comparar à de Soares, é-lhe muito inferior quanto à originalidade e cópia de doutrina. O mesmo dizemos das de Francisco Lopes de Câmara e de Gonçalo Fernandez de Oviedo. O grande Azara, com o talento natural que todos lhe reconhecem, não tratou instintivamente, no fim do século passado, da zoologia austro-americana melhor que o seu predecessor português; e numa etnografia geral de povos bárbaros, nenhumas páginas poderão ter mais cabida pelo que respeita ao Brasil, o que nos legou o senhor do engenho das vizinhanças de Jequiriçá. Causa pasmo como a atenção de um só homem pôde ocupar-se em tantas cousas "que juntas se vêem raramente", como as que se contêm na sua obra, que trata a um tempo, em relação ao Brasil, de geografia, de história, de topografia, de hidrografia, de agricultura entretrópica, de horticultura brasileira, de matéria médica indígena em todos os seus ramos e até de mineralogia".23 Não é excessivo este juízo, e quem o emitia tinha competência para o fazer.

Um outro português, o padre Jesuíta Fernão Cardim, que também viveu no Brasil, deixou dois escritos de pouco tomo, pelos quais tem sido, a meu ver impertinentemente, incluído na história da nossa literatura como um dos seus primitivos escritores. Menores são ainda que os de Gabriel Soares os seus títulos a pertencer à nossa literatura. O a todos os respeitos mais considerável e melhor dos seus dois escritos são duas cartas que desde o Brasil endereçou ao Provincial da Companhia em Portugal, recontando-lhe, miudamente, e de modo verdadeiramente interessante, uma viagem de inspeção jesuítica por algumas de nossas capitanias. Varnhagen, que as descobriu, publicou-as em 1847 com o título factício de Narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuítica pela Bahia, Ilhéus, Porto Seguro, Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro, etc., desde o ano de 1583 ao de 1590.24 Embora documento interessantíssimo para o estudo das missões jesuíticas e da mesma vida colonial no primeiro século, não tem a obra de Fernão Cardim, se obra se lhe pode chamar, o interesse bem mais geral, a importância e a valia da de Gabriel Soares. A sua inclusão na nossa literatura é tão legítima como o seria a de toda a correspondência jesuítica daqui desde Nóbrega até o padre Antônio Vieira, e ainda além. No desenvolvimento da nossa literatura não teve esta de Fernão Cardim sequer a parte que é lícito atribuir à de Gabriel Soares, pelo que desta aproveitaram os posteriores autores brasileiros.

Ignora-se-lhe ainda hoje o autor. Ao invés do que primeiramente supôs Varnhagen, que o atribuiu a brasileiro, nomeadamente a Bento Teixeira, o poeta da Prosopopéia, deve de tê-lo escrito em português. Mas um português, como tantos aqui houve, e dos quais é Gabriel Soares ótimo exemplar, naturalizado por longo estabelecimento na terra, afeiçoado a ela, identificado com ela, a ponto de tomar-lhe calorosamente a defesa contra um patrício recém-chegado e de exagerar-lhe as excelências como um zeloso patriota. Quem quer que fosse, era homem instruído, grande conhecedor do Brasil, simpaticamente curioso dos seus aspectos naturais e sociais e de todas as exóticas feições da nova terra. Instruído, esclarecido e judicioso, as suas muitas observações sobre a administração, os hábitos, a economia e mais faces do país, são geralmente bem feitas e acertadas. Algumas surpreendem-nos pela agudeza e perspicácia. Tais são, em 1618, apenas passado um século do descobrimento e não acabado ainda o da colonização, os seus reparos da indolência, indiferença e índole afidalgada dos moradores do Brasil que tudo fiavam do escravo, escusando-se ao trabalho. Mais notável é ainda que tenha desde então verificado a influência civilizadora da América na Europa, ou ao menos no europeu, para cá imigrado e aqui tornado, graças à riqueza adquirida e à sua indistinção de classes, de rústico em policiado. Realmente a parte da América na civilização, na polícia, como diziam os nossos clássicos, e escreve o autor dos Diálogos das grandezas, é muito maior do que se não pensa. São milhões os europeus que tendo para ela vindo de todo broncos, grosseiramente trajados, sem nenhuns hábitos de asseio, conforto ou civilidade, e com as manhas inerentes à sua miserável posição na mãe pátria, logram com a fortuna crescer de situação e emparelhar com as melhores classes americanas. Destas tomam estilos de vida, imitadas por elas das melhores da Europa, das quais acolá os preconceitos de casta, aqui desconhecidos, os traziam afastados. A transformação começada pelo que podemos chamar o hábito externo se completa pelo convívio dessas classes, cujo comércio lhes é facilitado pela fortuna e posição aqui facilmente adquiridas. Muitíssimos além desta educação indireta, a fazem formalmente freqüentando as nossas escolas ou particularmente tomando mestres, o que lhes seria muito mais difícil nos seus países de origem. E a América restitui à Europa desbastados da sua grosseria originária, limpos, no rigor da expressão, civilizados, polidos, com o melhor feitio físico e social, milhões de sujeitos que lhe vêm boçais e crassos. Devolve-lhe cavalheiro quem lhe chegou labrego. É admirável que este fato interessantíssimo não tenha escapado ao perspicaz observador dos Diálogos das grandezas, que, notando-o, do mesmo passo o atesta aqui desde o começo do século XVII. "O Brasil é praça do mundo, assenta-se ele, se não fazemos agravo a algum reino ou cidade em lhe darmos tal nome, e juntamente academia pública, onde se aprende com muita facilidade toda a polícia, bom modo de falar, honra dos termos de cortesia, saber bem negociar e outros atributos desta qualidade". E como seu interlocutor lhe retorquisse que não devia de ser assim, e antes pelo contrário, pois o Brasil se povoara primeiramente com "degradados e gente de mau vier" e por conseguinte pouco político, pois carecendo de nobreza lhe faltava necessariamente a polícia, Brandônio, pseudônimo com que se disfarça o autor, retruca-lhe: "Nisso não há dúvida, mas deveis saber que esses povoadores, que primeiramente vieram povoar o Brasil, a poucos lanços pela largueza da terra, deram em ser ricos, e com a riqueza foram largando de si a ruim natureza, de que as necessidades e pobrezas que padeciam no Reino os faziam usar, e os filhos de tais já entronizados com a mesma riqueza e governo da terra despiram a pele velha, como cobra, usando em tudo de honradíssimos termos com se ajuntarem a isso o haverem vindo depois a este Estado muitos homens nobilíssimos e fidalgas, os quais casaram nele e se liaram em parentesco com os da terra, em forma que se há feito entre todos uma mistura de sangue assaz nobres. Então como neste Brasil concorrem de todas as partes diversas condições de gente a comerciar, e este comércio o tratam com os naturais da terra, que geralmente são dotados de muita habilidade, ou por natureza do clima, ou do bom céu de que gozam, tomam dos estrangeiros tudo o que acham bom, de que fazem excelente conserva para a seu tempo usarem dela."

Como ninguém melhor que Varnhagen conheceu o Tratado descritivo do Brasil de Gabriel Soares, ninguém melhor que o sr. Capistrano de Abreu conhece a História do Brasil de Frei Vicente do Salvador, cujo foi se não o revelador, glória que cabe também a Varnhagen, o divulgador a capacíssimo editor. Com igual autoridade ao seu ciente predecessor na historiografia brasileira, julga assim o sr. Capistrano de Abreu a obra do frade baiano: "Sua história prende-se antes ao século XVII que ao século XVI, neste com as dificuldades das comunicações, com a fragmentação do território em capitanias e das capitanias em vilas, dominava o espírito municipal: brasileiro era o nome de uma profissão; quem nascia no Brasil, se não ficava infamado pelos diversos elementos de seu sangue, ficava-o pelo simples fato de aqui ter nascido – um mazombo, se de algum corpo se reconheciam membros, não estava aqui mas no ultramar: portugueses diziam-se os que o eram e os que o não eram. Frei Vicente do Salvador representa a reação contra a tendência dominante: Brasil significa para ele mais que expressão geográfica, expressão histórica e social. O século XVII é a germinação desta idéia como o século XVIII é a maturação.

Dos mesmos méritos que do seu ponto de vista de historiador lhe verifica o sr. Capistrano de Abreu, pode concluir a crítica literária para lhe avaliar os quilates nesta espécie. É um livro que poderíamos chamar de clássico se não nos agarrássemos à estreita concepção gramatical e retórica que o vocábulo tomou em Portugal. A sua língua correta, expressiva e até às vezes colorida, mais porventura do que o costuma ser a dos escritores seus contemporâneos, tem sobre a destes a superioridade da singeleza e da naturalidade, virtudes neles raras. E poderíamos acrescentar da familiaridade, como o mostram o já aludido simile da exploração dos portugueses limitada à costa com o arranhar das praias pelos caranguejos, e que tais, tirados das novidades que à sua pena inteligente ofereciam os aspectos inteiramente inéditos do país que historiava e descrevia. É muito mais agradável de ler que Gabriel Soares e para nós brasileiros ao menos do que muitos dos chamados clássicos portugueses, cronistas como ele. Tem espírito, tem chiste, quase poderíamos dizer que às vezes tem até humour. Há sobretudo nele uma desenvoltura de pensar e de dizer que aumentam o sabor literário à sua História. Sirvam de exemplo estas suas reflexões sobre o nome do Brasil: É porventura por isso (refere-se à troca do nome de Terra de Santa Cruz pelo de Brasil), ainda que ao nome de Brasil ajuntarem o de estado e lhe chamem estado do Brasil, ficou ele tão pouco estável, que, com não haver hoje cem anos, quando isto escrevo, que se começou a povoar, já se hão despovoado alguns lugares, e sendo a terra tão grande e fértil, como adiante veremos, nem por isso vai em aumento, antes em diminuição.

A prosa brasileira assim tão dignamente estreada não se continuou pelo resto do século. À copiosa produção poética desse momento de modo algum correspondem escritos em prosa, que não sejam papéis e documentos de administração ou de informação do país, já oficiais, já particulares, estes oriundos na maior parte das ordens religiosas, maiormente da Companhia de Jesus. Esses mesmos permaneceram inéditos, ou são apenas de notícia conhecidos. Nenhum foi reduzido a livro. Informa o bibliógrafo português Barbosa Machado, escrevendo aliás um século depois, que um dos poetas dessa época, que também foi funcionário real e militara pela metrópole na colônia, Bernardo Vieira Ravasco, irmão do padre Antônio Vieira, deixara manuscrita uma Descrição topográfica, eclesiástica, civil e natural do Estado do Brasil. Esta obra não veio jamais a lume e ninguém a conhece. A julgar pelo título seria uma repetição no século XVII do Tratado descritivo do Brasil, de Gabriel Soares, do século XVI, com a diferença de ser feita por brasileiro, porventura mais completa e com certeza piorada pela presunção literária e pelo estilo gongórico do autor, que era o da época.

Poder-se-ia incluir aqui, e não deixaram de fazê-lo os historiadores da nossa literatura, um outro brasileiro, o padre Francisco de Souza, natural da ilha de Itaparica, na Bahia, onde nasceu em 1628, falecido em Goa, na Índia portuguesa, em 1713. Em Lisboa publicou ele em 1710 o seu grosso livro Oriente conquistado a Jesus Cristo pelos padres da Companhia de Jesus na província de Goa, notável exemplar da historiografia e da linguagem e estilo do tempo. Tendo vivido mais de 80 anos, dos quais a máxima parte em Portugal e na Ásia, e escrito de cousas de todo estranhas ao Brasil e segundo o espírito e a maneira portuguesa, esse nosso patrício apenas o é pelo acidente do nascimento. Literariamente ainda nos pertence menos que Gabriel Soares ou o autor dos Diálogos das grandezas.

O primeiro escrito considerável de Varnhagen, já da sólida erudição de que ele seria um dos raros exemplos nas nossas letras, foram as suas Reflexões críticas sobre a obra de Gabriel Soares, publicadas no tomo V da "Coleção de notícias para a história e geografia das nações ultramarinas" pela Academia Real das Ciências de Lisboa (1836). Começando a sua fecunda iniciativa da rebusca e publicação de monumentos interessantes para a nossa história geral, dá, em 1839, à luz, também em Lisboa, o Diário da navegação, de Pêro Lopes.

... Pelo rigoroso e acurado da sua investigação e estudo e dos seus resultados, pela novidade das suas notícias, pelo inédito e seguro da sua informação, pelo número e justeza de algumas de suas idéias gerais, pela largueza de sua vista, esta obra de Varnhagen lançava os fundamentos, e o futuro provou que definitivos, da história da nossa literatura. Não valem contra este conceito a precedência meramente cronológica de alguns tímidos e deficientíssimos ensaios de Cunha Barbosa, de Pereira da Silva, de Norberto, de Magalhães e outros, que apenas repetiram as conhecidas notícias dos bibliógrafos e memorialistas portugueses, sem lhe acrescentar nada de novo, e ainda errando o que já andava sabido. Neste investigar dos nossos primórdios literários, continuado na sua História geral do Brasil, onde em vários passos se ocupa da nossa evolução literária, e em papéis e memórias diversas publicadas em periódicos e revistas, descobriu, noticiou, editou e fez editar Varnhagem alguns preciosos escritos. Tais foram os Diálogos das grandezas do Brasil, de Gabriel Soares, a Narrativa epistolar, de Cardim, a Prosopopéia, de Bento Teixeira, a História do Brasil, de Fr. Vicente do Salvador, sem contar quantidade de espécies novas para a vida e obra de outros escritores do período colonial.

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