' A ESTRADA PARA ALCÁCER QUIBIR. Universidade Nova de Lisboa. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Mestrado em História do Império Português (data da consulta) - 04/11/2024 de ( registros) Wildcard SSL Certificates
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A ESTRADA PARA ALCÁCER QUIBIR. Universidade Nova de Lisboa. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Mestrado em História do Império Português (data da consulta)
4 de novembro de 2024, segunda-feira.
vizinho espanhol. É também sabido que a competição pelo domínio dos mares vinha em crescendo e que um enfraquecimento do poder político e militar português facilitaria a vida aos nossos competidores. Finalmente, é igualmente conhecido o facto de a política do Rei não ser consensualmente bem acolhida no país, particularmente por aqueles cujos interesses ela abertamente afrontava. Não faltavam, portanto, inimigos que muito beneficiariam (ou acreditavam poder beneficiar) com um desaparecimento de D.Sebastião. Contudo:

- O relacionamento entre D. Sebastião e o seu homólogo espanhol parecia cordial, quase amigável e a correspondência entre ambos mostra uma postura quase subserviente do português relativamente ao espanhol – a atitude aparentemente protectora e amistosa do rei vizinho era mais a de um chefe de família preocupado com o sucesso e felicidade dos descendentes, que a de um chefe de Estado, que só por acaso era tio do chefe do cobiçado Estado-vizinho. Terá sido Filipe II intencionalmente dissimulado ao ponto de trair o “amigo” 8 e sobrinho português para a concretização da ambição da reunião das coroas portuguesa e castelhana numa única coroa ibérica já feita à medida da sua cabeça?

- Os grandes competidores dos marinheiros portugueses poderiam esperar um real enfraquecimento da nossa capacidade militar se o rei desaparecesse e Portugal caísse sob a dominação espanhola? Seria possível que ignorassem esta certeza (da união política numa eventualidade assim) e acreditassem numa tão improvável relação causa-efeito ao ponto de conspirarem contra Portugal conluiados com osmarroquinos?

- E os ex-privilegiados, os prejudicados pela governação sebástica, seriam interesseiros ao ponto de trair o seu rei? Por vingança? Pela esperança de recuperar os privilégios perdidos?

Uma coisa é certa: muitos dos relatos mais repetidos têm sido paulatina e metodicamente negados com o aprofundar dos estudos. O rei D. Sebastião tinha sido educado e industriado nas subtilezas da política internacional, nas questões sociais e nos segredos da governança do país, na dimensão e importância do império e nos segredos da ciência militar – a sua pouca idade podia impor-lhe as limitações resultantes da falta de experiência, mas essas eram em boa parte compensadas por uma formação académica e científica de eleição e pelo conselho de homens experimentados nos meandros da Corte, nos conveses das naus e nas praças de África e do Oriente.

Assim e olhando ao trágico fim que o rei conheceu e às dramáticas consequências que daí advieram para Portugal tem-se que a questão chave ao falar de D. Sebastião (isolando-o da batalha em si) é: foi o rei permeável a grupos de interesse? Houve incompetência militar do rei, foi adversidade pura e dura, ou a realidade foi outra nunca antes mencionada?
I. 2. Objectivo do estudo

Olhando aos documentos hoje conhecidos sobre toda a sua acção, a perspectiva tradicional debruçada sobre as consequências de uma acção militar antes de acautelada a questão da sucessão é tão redutora quanto injusta para a figura de D. Sebastião. Evidentemente que o Rei foi imprudente ao descurar a sucessão – mas quando se é jovem, acredita-se sempre na eternização da própria existência, ou pelo menos a perspectiva da morte é sempre vista como algo longínquo: nunca se pondera a possibilidade de acidentes, o receio de alguma fatalidade é sempre visto como coisa de velhos já desprovidos de energia, é-se naturalmente aventureiro e impetuoso. Além disso, a necessidade de um rei imberbe se impor ao respeito dos seus vassalos, em particular aos mais idosos e experientes, é algo que deve ser tido em conta com muita seriedade e a possibilidade de ele se pretender afirmar no universo da Corte pela via dos feitos de armas é assaz plausivel.

Depois, as expectativas para a campanha onde se perdeu eram tão optimistas aos olhos do rei (e não só, por mais que a historiografia teime em apenas sublinhar e repetir as vozes da prudência) que ele tem como único acto em que denuncia ter [p. 18 e 19]

Sublinhe-se que até o próprio facto de o Secretário ter sentido a necessidade de prestar juramento sobre todas as suas afirmações merece suspeitas. Embora o juramento fosse uma prática usual na época, como vínculo da palavra de um homem, ele era exigido em determinadas circunstâncias e como um formalismo a que o próprio era obrigado; aqui, terá sido o próprio a adoptá-lo para lá de qualquer exigência que lhe tivessem imposto, assim como uma necessidade de adicionar credibilidade a actos e palavras que só faz sentido quando se tem a consciência pesada relativamente ao que se está a fazer.

Sabendo que estamos a falar de um tempo que não excedeu 5 dias (D. João III morre no dia 11 e esta cerimónia tem lugar no dia 16), sabendo que o Secretário não delegaria este tipo de assuntos, sabendo que ele teria muitos outros trabalhos a efectuar no decurso destes dias (como o preparar e participar nas reuniões já descritas, mais o convocar atempadamente dezenas de dignitários para todas estas realizações), é legítimo questionar quando é que o secretário pensou e redigiu um regimento detalhado ao pormenor para uma coroação imprevista: teria tudo isto sido previsto antes? Estaria tudo planeado?

Naturalmente que a festividade pretendida seria pouco propensa ao júbilo normalmente associado a festejos, em vista da proximidade do passamento de D. João III, mas também dificilmente se pode descartar um pensamento como o aqui exposto.

Sendo certo que tal pensamento ocorreria com mais facilidade a quem via em D. Catarina uma partidária de Espanha, não é menos certo que mesmo os seus adeptos teriam dificuldade em desculpar a sua ausência na cerimónia da coroação.

Tem-se, portanto, como garantido, que D. João III morre repentinamente eque D. Catarina, secretariada por Pêro de Alcáçova Carneiro, ascende à regência do reino de Portugal, ainda que sob alguma contestação, aberta ou dissimulada. Neste quadro, D. Sebastião é coroado e aclamado Rei, na tenra idade de 3 anos e meio. Seu tio-avô, o Cardeal D. Henrique, aceita um papel coadjuvante da rainha-regente, mesmo sem saber dos limites legais que à mesma eram impostos (como se viu, não o foram) e portanto, com ainda maior indefinição quanto aos poderes que lhe competiriam.

Fica por provar a autenticidade de um documento invocado e lido, que serviucomo base para a aceitação dos papéis atribuídos ou reivindicados para cada um dos actores que compuseram o elenco desta peça, representando papéis principais, de um lado, a própria rainha, o “seu” secretário Pêro de Alcáçova Carneiro, D. Julião de Alva (bispo de Portalegre), o ex-governador da Índia Martim Afonso de Sousa e Jorge da Silva, e, do outro lado, o cardeal D. Henrique, e alguns fidalgos mais próximos como Lourenço de Távora, Álvaro de Castro e João Pereira Dantas. D. Sebastião, ainda que protagonista e centro do acto, mais não foi do que um mero figurante face aos constantes jogos de influência que o rei de Castela orquestrava nos bastidores.

Ficam por provar os interesses que se jogaram (se é que jogaram) e a forma como esses pretendiam projectar-se no futuro.

Premonitório, “… dois dias após o acto de aclamação de D. Sebastião e terminada a quebra dos escudos, manifestação integrante do cerimonial de luto pela morte de D. João III, Simão Gonçalves, corregedor da Corte, clamava em voz alta pelos corredores do paço que o Príncipe de Castela ainda havia de ser rei de Portugal, pois D. Sebastião “comia por mão dos castelhanos”…34

III. 3. O crescimento e a educação

Com a morte do avô paterno, em 1557, o príncipe é aclamado rei na tenraidade de 3 anos, pelo que o reino fica sob a regência da avó, tida como uma insidiosa partidária de Espanha. Desde logo, estava a regência em disputa entre ela e o cunhado – o cardeal D. Henrique – e não faltam registos da capacidade manipuladora de D. Catarina, da sua habilidade e tacto políticos. Não é certo que ela procurasse a unificação ibérica sob a coroa espanhola como um fim em si mesmo, mas tudo leva a crer que ela (no mínimo) olharia essa possibilidade como a menos nefasta das consequências para qualquer vicissitude. Nos bastidores da regência e da corte, eram discutidos quemseriam os educadores da criança, o modelo de educação, a nomeação do confessor e a proposta de vários nomes (sempre) vindos de Espanha para estas funções dificultam qualquer crença na boa-fé da regente em todo este processo.

Neste contexto, a corte portuguesa estava dividia entre dois partidos: [Páginas 41 e 42]

Sim: D. Sebastião, por obcecado que pudesse ter sido com a sua ânsia por feitos militares, foi um Rei interessado pelo seu povo, ao qual devotava dedicação e cuidado.

No campo das relações internacionais, o Rei procurou sobretudo apoios para a manutenção do Império e a correspondência descrita mostra que dedicava particular atenção (sem uma particular ordem de prioridade) ao esforço diplomático junto dos seguintes:

- Inglaterra – o aliado indispensável, cuja hostilidade, se levantada, faria perigar o Império; já assim, sendo aliada, a Inglaterra ia exprimindo a sua relutância em reconhecer o Tratado de Tordesilhas que lhe tornava o resto do mundo inacessível, cuja validade internacional assentava na autoridade papal. Tendo a Inglaterra entrado em rotura com a Santa Sé, sentia-se automaticamente desobrigada de reconhecer o que quer que fosse emanado da autoridade papal. Além disso, caso as relações com Espanha voltassem ao plano da conflitualidade militar, o país iria precisar novamentedo apoio inglês.

- Santa Sé – não obstante o alastrar dos movimentos contestatários, o Papa era ainda a grande autoridade internacional para muitos países europeus e Portugal dependia da anuência papal para o reconhecimento da sua autoridade sobre os territórios alémmar cuja posse reivindicava. Por outro lado, a constante invocação do esforço evangelizador também tinha como fim a angariação do apelo diplomático da Igreja junto de outras nações cristãs para que ajudassem Portugal (militarmente, materialmente, financeiramente, o que fosse), no fundo, a darem o seu contributo para o sucesso da missão evangélica que o país se dizia ter abraçado.

- Casa de Áustria – nada indica que pudesse haver alguma desconfiança da parte de D. Sebastião em relação ao tio. Contudo, o facto de não se encontrarem provas materiais de algum sentimento dessa natureza, não permite automaticamente assumir que ele não existisse, ainda que em menor grau: seguramente não faltaram avisos dos conselheiros de Estado sobre os perigos potenciais associados ao vizinho espanhol.

Independentemente disso, e conhecedor da história pátria em geral e da da suadinastia em particular, o Rei sabia que não poderia descurar as boas relações comFilipe II: Desde logo, estava sempre presente o receio de um conflito entre ambos os países e o reino português, cujos braços de armas estavam, sobretudo, dispersos pelos mares, não estava em condições de defender a sua fronteira terrestre. Depois, mesmo que sem acalentar grande esperança, ainda havia a possibilidade de uma parceria na campanha do Norte de África – D. Sebastião sabia da oposição espanhola a esta sua pretensão, mas apesar dela, o tio tinha-lhe prometido apoio militar através da cedência de um contingente de 2000 homens (nunca os enviou para Portugal e foram as sucessivas manobras dilatórias que terão desenganado D. Sebastião quanto à boa vontade do seu congénere, mas a verdade é que o rei português não parou de insistir junto de Madrid para que esse reforço militar lhe fosse cedido). E claro, havia ainda a questão da disputa dos mares e das Américas: o Tratado de Tordesilhas estava firme entre os dois, mas só assim se manteria enquanto as relações entre ambos se mantivessem amistosas, tal como os lucros do comércio com a China e Japão dependiam fortemente da não intromissão de competidores espanhóis e nesta matéria, registe-se a cooperação de Filipe II (de Castela) que mesmo depois da unificação “o governo de Madrid aceitou geralmente a reivindicação feita pelos portugueses de que o Japão se situava dentro da sua esfera de influência (tal como fora demarcada no Tratado de Tordesilhas, em 1494) e de que o comércio japonês devia ser monopolizado por Macau e não por Manila”49.

- França – nomeadamente para questões matrimoniais relativamente ao projecto de casamento com Margarida de Valois de que se falará adiante

- Principados italianos

D. Sebastião manteve contactos com outros actores internacionais, mas julga-se que nenhum com o peso e importância dos citados, tirando talvez a correspondência com Mohammed Al Moutaouakil50, o qual terá solicitado o apoio do Rei português contra Abdelmalek (o Mulei Maluko) e Ahmed Al Mansour – mais que pelo volume ou forma, esta correspondência é importante pelo conteúdo: uma autoridade marroquina (ou pretendente a autoridade) pede ajuda militar ao rei português!

A finalizar este capítulo, há que citar as diligências em torno do hipotético casamento. Sobre este, os documentos disponíveis prestam-se a leituras diversas no que respeita às verdadeiras intenções do rei. Não falta quem o acuse de misoginia (para não dizer pior) ou de manobras dilatórias para adiar algo que muitos queriam: um rei casado [Páginas 50 e 51]

em relações internacionais e nos meandros nebulosos em que as mesmas sedesenvolvem.

Independentemente do reforço espanhol (ou da ausência deste), D. Sebastião contrata mercenários alemães e italianos, ainda que não tenham sido conseguidos os efectivos desejados (pretendia o rei a contratação de 3000 de cada uma destas nacionalidades; mais tarde dará ordens para se conseguir o concurso de mais 2000 soldados espanhois) e no capítulo da logística, mandara o rei adquirir munições em Espanha e pólvora em Itália.

Já próximo do desfecho deste capítulo da história, mostra-se o rei preocupado com o segredo da operação, enviando ao embaixador em Madrid indicações para que este solicitasse a Filipe II “o encerramento dos portos de Peñon e Melilha a fim de por ali não passarem notícias para Molei Moluco” 85 – também aqui, não consta que o monarca espanhol tenha dado algum passo no sentido de satisfazer as pretensões do sobrinho. Não é certo que a medida fosse eficaz (do ponto de vista da finalidade – negar informações ao inimigo), mas é mais um indicador da postura do rei vizinho relativamente ao auxílio à aventura do rei português.

E no capítulo das informações, é sabido que o rei mantinha constante a pressão de pesquisa86. Também não se tem por certo que as fontes fossem as mais fiáveis, mas o que importa – para efeitos da presente tese – era o que chegava aos olhos e aos ouvidos de D. Sebastião, e que essas informações o encorajavam a desenhar o mais favorável dos cenários. Tudo apontava para um inimigo desgastado e disperso, e as notícias da impossibilidade de ser reforçado só animavam ainda mais um rei cada vez mais propenso a acreditar numa campanha fácil.

Reúne o rei uma frota das maiores até então vistas87 para o embarque da força combatente e do apoio logístico entendido como necessário (mais um sinal de que a expedição não era um acto de um qualquer tresloucado, mas sim de alguém que

85 In Itinerários de D. Sebastião (Vol II, Pag 211 – entrada datade de 1Mai1578) [p. 83]

Juntemos a isso o nome local do sítio que na época conheceu a batalha: Tamda100, que é, ainda que autêntico, raramente utilizado. As causas para esta dualidade de análise encontramo-las em diferentesfactores:

A – A influência dos escritos e circunstâncias que acompanharam e seguiram a batalha até aos nossos dias: os marroquinos (os antigos cronistas e os historiadores tradicionais) consideraram a batalha como um milagre, uma grande vitória santa contra o inimigo infiel. Eles deram-lhe um cariz religioso, e o Estado Saadida soube aproveitar para consolidar a sua posição contra os seus inimigos a nível local e internacional101.

Os cronistas marroquinos atribuíram milagres “karamats102” a esta batalha103 que eles comparam à grande batalha de “Ghazouat Badr” da época do profeta104. O espírito religioso dominava, portanto, os escritos pois os marroquinos consideravam esta batalha como uma continuidade das guerras que opunham muçulmanos a cristãos durante séculos.

A batalha, por conseguinte, pôs fim a este perigo que ameaçava, não só a sua existência, mas sobretudo a sua religião. Encontramos os ecos deste pensar mesmo em escritos contemporâneos e recentes. Os investigadores portugueses negligenciaram este espírito que animava os marroquinos à época desta batalha.

Abdelmaleque não conseguiu acabar com Almoutawakil depois de mais de 24 batalhas. Entretanto, desde que este pedira ajuda aos cristãos, e depois da vinda do rei de Portugal, em pessoa, a Marrocos, com um exército enorme, ele pode reunir a seu lado todos os marroquinos.

Estes últimos sentiram que não se tratava apenas de um conflito entre pretendentes ao trono, mas do destino de toda uma nação. Aliás, a noção de nação e nacionalismo era frequentemente ligada à pertença ao país do Islão e à religião muçulmana, e dirigida contra os cristãos, que eram os ocupantes (espanhois, portugueses, franceses). Recordemos que Marrocos nunca conheceu ocupação turca. Sidi Moussa, um marroquino que vivia em Portugal no séc. XVI, bem tinha aconselhado o rei Sebastião para não vir em pessoa a Marrocos.

Isso daria a impressão de uma vinda para ocupar o país e influenciaria as gentes para se porem ao lado de Abdelmalkeque. Segundo ele, bastaria enviar um comandante português com quatro ou cinco mil soldados para vencer a campanha. Sabendo que Marrocos é muito vasto e sub-povoado, e para o ocupar nem duas torrentes de homens e de dinheiro não chegariam…105.

Mas este espírito e esta forma de ver a batalha dominavam também os estudos e escritos contemporâneos, sobretudo durante o protectorado francês e mesmo depois da independência. Isto traduziu-se no facto de que ela fora dominada por uma atmosfera de patriotismo contra o ocupante que necessitava do recurso ao passado para recolher os trunfos positivos que ajudavam a encorajar a resitência em proveito do movimento nacionalista marroquino. O efeito deste sentimento nacional-religioso ficou bem depois da independência 106.

A influência deste aspecto nacional-religioso, impede certos investigadores de estudar os factos históricos com uma visão neutra e científica. Assim que Almoutawakil pede o apoio de uma potência vizinha “estrangeira” ele cometeu um acto que podemos classificar como político. No entanto as circunstâncias então existentes traduziram este acto como sendo uma grande traição. Aliás, ainda é assim considerado. No entanto nós sabemos que a história conheceu vários casos deste género107.

A atmosfera religiosa que reinava e que acompanhou os preparativos contra a campanha portuguesa é um factor muito importante. No entanto a maioria dos historiadores portugueses ignoraram-no. Os movimentos sufis, os Ulemas, animaram os espirítos. Os estudos portugueses não falam, por exemplo, da carta dirigida a Almoutawakil. Esta era uma resposta à sua carta, que justificou o recurso à ajuda portuguesa.

Uma carta que discute o problema da sucessão ao trono Saadida e que prova que todos os componentes do Estado e da sociedade marroquina tomaram o partido de Abdelmalek. Sobretudo depois que Almoutawakil pediu a ajuda dos portugueses “cristãos” contra os muçulmanos. A carta fala também dos preparativos materiais e morais: as bandeiras postas no centro da grande mesquita Al Quaraouiyne, os recitadores do Corão que recitaram o Corão 100 vezes e o livro de “Boukhari” que contém as Haddiths do profeta, e “tahlil e takbir”: as orações e as invocações, etc.108

Alguns investigadores marroquinos consideraram esta atmosfera de animação religiosa como um factor importante para explicar a tenacidade da resitência marroquina à época. No entanto, esta mesma atmosfera influenciou outros investigadores menos profissionais a insistir na glória, no heroísmo, no sentimento nacionalista e religioso…Então por vezes inflacciionam os feitos e o número de soldados portugueses e minimisam o número de soldados marroquinos.

B – Do lado português, certos historiadores consideraram esta batalha como uma catástrofe que demoliu um sonho gigantesco: o império português e as suas glórias. Ela foi igualmente considerada como um acidente que surpreendeu todo o mundo, sem excepção. Assim, a maioria dos estudos sobre esta batalha foram caracterizados pela lógica da justificação e pela procura de pretextos. Também a batalha é o fruto da aventura de um jovem rei inepto, a quem falta experiência…Podemos citar como exemplo a página web “O portal da história” onde encontramos as seguintes frases sobre D. Sebastião:

… Nunca ouviu conselhos de ninguém, e entregue ao sonho anacrónico de sujeitar a si toda a Berbéria a trazer à sua soberania a venerada Palestina, nunca se interessou pelo povo, nunca reuniu cortes nem visitou o país, só pensando em recrutar um exército e arma-lo, pedindo auxílio a estados estrangeiros, contraindo empréstimos e arruinando os cofres do reino, tendo o único fito de ir a África combater os mouros. Chefe de um numeroso exército, na sua maioria aventureiros e miseráveis, parte para África em Junho de 1578; chega perto de Alcácer-Quibir a 3 de Agosto e a 4 o exército português esfomeado e estafado pela marcha e pelo calor e dirigido por um rei incapaz, foi completamente destroçado, figurando o rei entre os mortos…” 109.

Estas amostras de frases provam que são atribuídos a D. Sebastião muitos defeitos e toda a responsabilidade pela derrota e pela decadência do império português. Contudo, existem outras razões que explicam o declínio do império. É preciso rebuscar para trás, aos anos de 1521 e 1522 e rever alguns feitos, julgamentos e preconceitos:

- O império português conhecera dificuldades económicas e políticas, e sinais de fragilidade que remontam a 1521, ao tempo de D. João III110. A população portuguesa tinha igualmente passado por um abaixamento demográfico considerável devido aos portugueses que emigraram para o Brasil e Índia em busca de riquezas, e que não regressavam. De facto, regressava uma em cada dez pessoas. Portanto, Portugal perdera, durante o Séc. XVI, 50% dos seus habitantes o que causou danos consideráveis à agricultura e obrigou o país a importar escravos da África negra111. É preciso ainda adicionar a isto a grande peste que atingiu Portugal em 1569 112… Por consequência não seria por si só a responsável pelo declínio do império.

- Terá sido a batalha uma aventura mal estudada? De facto, aqueles que afirmaram isso apresentaram um julgamento posterior com base no resultado da batalha e que quadra perfeitamente com o número insuficiente de soldados e do efectivo do exército português. [Páginas 115, 116, 117 e 118]

Antes desta batalha, os dois irmãos Abdelmalek e Ahmed tinham combatidovárias outras (24, segundo as fontes marroquinas113) contra o sobrinho MohammedAlmotaouakil, eles esgotarama sua força bem como o seu potencial humano e material.A Espanha e Portugal seguiam a situação atentamente e conheciam bem a deterioraçãoda situação geral em Marrocos devido às guerras intestinas. E se o rei de Espanha nãoparticipara directamente foi por estar preocupado com os problemas mediterrânicos. Eno entanto ele tinha enviado uma ajuda militar e soldados. Sabe-se também que o reiSebastião se tinha preparado bem para a batalha e que muitos voluntários nelaparticiparam, isto ainda antes de Mohammed Motawakil lhe pedir ajuda.Os portugueses constataram que as circunstâncias eram favoráveis paraconseguir benefícios em Marrocos e aproveitar a situação deplorável para talvez atingirFez, a capital. Foi por esta razão que investiram todo o seu peso e meios nesta guerra114.A história não se presta a suposições mas sabe-se que a leitura deste acontecimento teriasido diferente se Portugal tivesse vencido a batalha. Neste momento ninguém falaria daincompetência do rei Sebastião, ou do aventureirismo e da sua falta de experiência. Senós estabelecêssemos as nossas análises antes da batalha, isso permitir-nos-ia observarque a situação em Marrocos era favorável a uma intervenção militar, vistas asconsequências da guerra interna que tinham enfraquecido os dois campos em luta pelopoder. A lógica e o contexto da época permitiam uma tal intervenção. Podemos resumirtudo a que a ideia era boa mas a execução foi má.- É verdade que o regresso à política expansionista de D. Manuel não estavabem justificado, sobretudo em vista do fim trágico da aventura de D. Sebastião. Masisso não impede de constatar que a campanha de África era realizável, ou seja, razoável.Dizer que ela era o fruto de aventureirismo de um jovem rei com falta de experiência eque avaliou mal não explica todo o problema. A batalha por si só não foi responsávelpela queda do império. Isso explica-se pelo facto de que uma batalha, sobretudo com onúmero de soldados que participaram segundo as fontes portuguesas e que sedesenrolou longe do território português não podia acarretar tais consequências. O [p. 119]

não têm os meios para ler e estudar as fontes marroquinas e os estudos em língua árabe.

De igual modo os marroquinos não têm os meios para ler e acompanhar tudo o que produzem os historiadores portugueses, o que explica a negligência de uns relativamente aos trabalhos dos outros. Ora o contrário daria a estes estudos uma visão mais alargada e completa porque existem pormenores que encontramos entre os historiadores e cronistas marroquinos que não encontramos entre os portugueses e vice versa. Como por exemplo a troca de correspondência entre os dois reis: Abdelmalek e Sebastião, o número de mortos e cativos, a importância dos restos mortais, o tráfico, o corpo de Sebastião. O que demonstra a importância que deve ser dada aos esforços de um pequeno número de historiadores em matéria de tradução.

II – Não está tudo dito e ainda há muito por fazer

Vistos os comentários precedentes, constatamos que malgrado a quantidade e qualidade dos estudos efectuados, sobretudo da parte de historiadores portugueses, muitos dos detalhes e factos continuam discutíveis ou incorrectos, ou seja, incompletos. Estes factos merecem de uma parte e outra mais atenção e pesquisa. Cito, de forma abreviada, alguns exemplos:

- a morte de Sebastião: as fontes marroquinas falam de uma delegação portuguesa que veio pedir o corpo ao Sultão Al Mansour118. Este tinha-lhes entregue o corpo sem contrapartidas, como demonstração de amizade. Sabemos que a busca do corpo levou mais de 3 dias por 3 equipas de 10 pessoas cada119.No entanto há fontes que contam o sepultar do corpo em Portugal em 1582120, enquanto outros duvidam veementemente do destino do corpo. Deve assinalar-se que igual dúvida se coloca para AlMoutawakil assumindo que não se sabe exactamente o que aconteceu ao seu corpo depois de umpercurso por várias povoações marroquinas. E também para Abdelmalek, existe hoje um pequeno tumulo no sítio da batalha mas fontes escritas contam que o corpo foi transportado para Fez. Os detalhes sobre o significado de “sebastianismo” são comparáveis ao mahdismo em Marrocos?

- As estatísticas e o número de soldados e participantes nos dois lados: são números que aumentam ou diminuem de acordo com os campos, não mencionando que ninguém fezum esforço para, ao menos, rejeitar os números exorbitantes. Há vezes em que se fala de 14.000 participantes e 18.000 mortos! Sem um estudo do terreno para definir o sítio exacto e as posições. Nem mesmo a superfície para saber se ela seria capaz de suportar as presumíveis quantidades de homens, tendas, carroças, cavalos e canhões, etc. Quantos foram mortos, feridos, prisioneiros, fugidos… A ponte que os marroquinos demoliram, o rio de Oued El Makhazen, a sua profundidade nesse tempo e agora.

- A relação entre esta batalha com a glória e prosperidade do estado marroquino: os cronistas marroquinos atribuem o apogeu da dinastia saadida à vitória em El Ksar El Kebir. Materialmente não se consegue ver a relação porque Marrocos viveu momentos penosos por causa dos acontecimentos que precederam a batalha: uma série de guerras, mais de vinte batalhas, guerras que exauriram os recursos financeiros e humanos, com perdas consideráveis.

As fontes marroquinas afirmam que o sultão Ahmed El Mansour começou o seu reinado com uma tesouraria vazia, sem ouro nem prata. O negócio dos cativos e dos despojos trazia, sem dúvida, recursos importantes mas insuficientes em face da atrocidade das guerras e do volume enorme das pestes. As consequências negativas para a economia do país e a sua estabilidade eram sem dúvida importantes e foi preciso mais que uma decénio para se sentir o fruto de todos os esforços, sobretudo após a conquista do Sudão. Além disso o país passou por anos de escassez e por epidemias que sobrecarregaram os aspectos negativos desta situação. 121

- Os preparativos de ambos os lados, o número de participantes do lado marroquino e o do português e de fora dos dois países, o papel dos turcos, dos espanhóis e da igreja no conflito, e o volume da ajuda que eles deram.

- Os pormenores respeitantes aos movimentos de cada um dos exércitos: os planos e estratégias seguidos por cada um deles, a presumível troca de correspondência entre eles. As cartas trocadas, sobretudo, por Abdelmaleque e Sebastião e o rei de Espanha. O local exacto da batalha, o desenrolar, as causas reais para a derrota (estritamente técnicas), quanto tempo durou…

Um grande obstáculo impede os investigadores de completar o seu dever que é a ausência de estudos comparados. Nós temos uma história comum, mas duas histórias escritas. Por causa da servidão linguística atrás citada, os portugueses não puderam ler o que está escrito em árabe sobre a batalha e sobre as relações bilaterais. Os marroquinos tampouco conseguiram ler tudo quanto está escrito em português do lado dos seus homólogos. Isto explica a falta de estudos comparativos que são necessários para completar os esforços desenvolvidos pelos investigadores dos dois países. Sem esquecer o que foi escrito por historiadores de outros países como a Espanha, França, Inglaterra e países árabes. [p. 121, 122 e 123]

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