O Avesso da Costura: uma análise dos escritos de Gabriel Soares de Sousa (c.1540-1591). Gabriela Soares de Azevedo
2015. Há 9 anos
bem antes de se tornar o “pai da história do Brasil”.8Já o terceiro escrito de Gabriel Soares, osCapítulos contra os padres da Companhia de Jesus, 9só foi descoberto em meados do séculoXX e, apesar de se distinguir não só dos demais escritos do colono português como dequalquer outro produzido na América portuguesa em seu primeiro século, permanece poucoconhecido e explorado.
1.1 Os ossos não falam
Quem visita hoje a cidade de Salvador costuma percorrer a Travessa do Gabriel,descer a Ladeira com seu nome, próxima ao Largo dos Aflitos, e chegar ao agradável Solar doUnhão, em plena Avenida do Contorno, sede à beira-mar do Museu de Arte Moderna daBahia. Pode ali conhecer o belo centro cultural, aproveitar os seus eventos e almoçar em seurestaurante localizado na antiga senzala. O conjunto arquitetônico, tombado na década de1940, se encontra em terras históricas inicialmente pertencentes ao senhor de engenhosGabriel Soares de Sousa, doadas por ele aos monges beneditinos no ano de 1584.Os testemunhos sobre o local no tempo de Gabriel Soares são escassos e poucoconfiáveis mas, segundo os registros do atual Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico eArtístico Nacional), o sítio do Solar do Unhão ou da Quinta do Unhão abrigava um complexosemelhante aos dos engenhos de açúcar situados fora da cidade, com casa-grande, capela, senzala, armazéns e um cais com a função de receber e exportar a produção da região dorecôncavo. O solar em si, em alvenaria de pedra, é uma construção posterior à posse docolono português, iniciada no século XVII e ampliada já no século XIX. As terras com asconstruções originais foram vendidas pelos religiosos de São Bento ao desembargador PedroUnhão Castelo Branco por volta de 1690, e em 1700 foram adquiridas por José Pires deCarvalho e Albuquerque, o velho, e depois passadas aos seus descendentes, senhores da Casada Torre de Garcia D’Ávila. O espaço teve sua fase áurea de embelezamento no século XVIIIe funcionou ao longo do tempo como fazenda, engenho, fábrica de rapé, trapiche, armazém equartel, durante a Segunda Guerra Mundial. Ainda em seu histórico teria servido comohospedagem para a família Real portuguesa em seu primeiro desembarque na cidade de SãoSalvador, em 24 de janeiro de 1808.10Se o visitante seguir no sentido contrário, na esquina da Rua Augusto França com aTravessa do Gabriel passará sem perceber pela Fonte do Gabriel. Construída em alvenariacom pedra a partir de galerias subterrâneas abaixo do nível da rua, a fonte se encontra hojeoculta por vários muros, mas já foi referência para o abastecimento da cidade, parada para osanimais, lugar para lavar a roupa, beber a água fresca, além de promover as sociabilidadescomuns a estes pontos de encontro diários. Seguindo a pé no sentido leste-oeste, podeprosseguir pela Avenida Sete de Setembro e cruzar com um monge descalço caminhandosolenemente em direção à Arquiabadia de São Sebastião da Bahia, a primeira do NovoMundo, conhecida como Mosteiro de São Bento. Todavia, o flaneur não identificará entre asdiversas pedras tumulares dos benfeitores do mosteiro, que cobrem o chão sagrado da Igreja,aquela referente a Gabriel Soares com a inscrição Aqui jaz um pecador. A lápide, no entanto,existe. Foi reproduzida modernamente e alocada no claustro do Mosteiro, longe dos olhos dosleigos. De toda a forma, é possível reconhecer neste trajeto a notória grandeza das posses doportuguês Gabriel Soares e seus remotos sinais na lembrança da formação da cidade.Nem os ossos nem o letreiro da lápide contam por si só a história deste engenhososenhor de muitas terras na Bahia. É preciso juntar os vestígios e os rastros para reconstruirseus percursos e identificar os significados tanto das suas ações quanto do seu legado escrito.O paradigma indiciário, método epistemológico posto em evidência pelo historiador italiano Carlo Ginzburg, subsidia esta pesquisa que busca recuperar os passos de Soares em seu tempoe as camadas de interpretação sobrepostas aos seus escritos.11 [p. 21, 22]
O Mosteiro de São Bento foi o primeiro fundado pela Ordem de São Bento nas Américas. Em 1582 chegaram a Salvador, vindos da Abadia de São Martinho de Tibães, no distrito de Braga, Portugal, os primeiros nove monges fundadores. No Dietário do Mosteiro de São Bento da Bahia, livro que registra cronológica e brevemente a vida e a morte de cada monge que viveu no mosteiro entre 1582 e 1815, lido diariamente durante as refeições da noite até os dias atuais, surge a primeira referência da relação estreita entre Soares de Sousa e os herdeiros da tradição monástica que remonta ao século VI. O Dietário mais antigo, que obteve recentemente uma edição diplomática, narra a história da ordem através dos seus membros e traz informações dos primeiros tempos da sua fundação no Brasil. Após a decisão de implementação da ordem nesta quarta parte do mundo, o frei Pedro de São Bento chegou de Lisboa com a incumbência de apresentar ao Senado da Câmara de Salvador, em 1580, uma carta manifestando o desejo da fundação de um mosteiro naquela cidade. Entre os camaristas presentes àquela primeira leitura e reconhecidos posteriormente sob o título de “primeiros benfeitores” por terem concedido, na sua alçada, a licença para a criação do mosteiro, se encontravam João Velho Galvão, Antonio da Costa, Gabriel Soares de Sousa, Fernando Vaz e Antonio Fernandes Pantoja.12
1.2 Um passado para o Brasil
Nada de cidades esplendorosas e reluzentes, nada de templos suntuosos, pirâmides,canais de água, terraços, praças, jardins, tetos planos, torres, ruas largas ou estradas. Nenhumdaqueles monumentos arquitetônicos e desafios à engenharia que maravilharam osconquistadores espanhóis aparecem nos relatos quinhentistas portugueses. Também nada de [p. 23]
publicação. Mas sem dúvida alguma é possível reconhecer atrativos literários em seudiscurso: uma capacidade descritiva e persuasiva capaz de conquistar leitores especialistas ounão. As regras e fórmulas retóricas próprias do gênero histórico de então bem como daepistolografia mantêm ainda um forte poder de sedução.
1.4 Um breve contexto da escrita de Gabriel Soares de Sousa
A aclamação de Felipe II na Bahia se deu tardiamente, em 25 de maio de 1582, por indicação de uma CédulaReal vinda da corte, de 16 de novembro de 1581, apresentada na Câmara de Salvador, em 19 de maio de1582, onde constam as assinaturas de Gabriel Soares, Antonio da Costa e Fernão Vaz como vereadores,Francisco Fernandes Pantoja, o juiz ordinário; João Ribeiro, procurador da cidade, e escrivão da câmara JoãoPereira. VARNHAGEN, F.A. História Geral do Brasil. Ed. crítica de Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia,3.ed. São Paulo: Melhoramentos, 1975. p. 367. Nota 25. Tomo I.
Após dezessete anos vivendo na América portuguesa, transitando entre o centro administrativo, Salvador, onde atuara como camarista20, e o Recôncavo, onde possuía terras, circulando nas áreas de Jaguaripe, São Gonçalo e Nazaré, o colono português Gabriel Soares de Sousa retornou à corte. Seu destino era a Espanha, como declara em seu testamento lavrado em 10 de agosto de 1584, na Bahia. Embarcou a seguir numa grande nau carregada de açúcar que só ancorou em Pernambuco, parada de abastecimento de água e víveres, graças ao conhecimento e à orientação do navegador Pedro Sarmiento de Gamboa.
Pedro Sarmiento, vindo do Rio de Janeiro numa embarcação carregada com milquintais de pau-brasil para buscar lenha, mantimentos e roupas para uma viagem de retorno aoEstreito de Magalhães, foi obrigado a lançar mais de trezentos quintais de mercadoria ao marpor falta de fundo. Sem outro piloto que se atrevesse, sondou os fundos num batel e, acenandocom uma bandeira, permitiu que a sua nau adentrasse sem perigo. Atrás dela vinha aquela emque se encontrava Gabriel Soares.O matemático, astrólogo e humanista espanhol Pedro Sarmiento registrou em seurelato das suas venturas ao extremo sul do continente a chegada de Gabriel Soares ao porto dePernambuco, em setembro de 1584, e a presença do senhor de engenhos no Palácio eMonastério Real El Escorial, em São Lorenzo, cinco anos depois, em 1589, na mesma ocasiãoem que apresentava sua Sumária Relación ao monarca dos Áustrias.21 [p. 28]
Estas informações contribuem para a identificação dos trânsitos pouco conhecidos de Soares. Certamente desembarcou primeiramente em Lisboa, destino final da urca carregada de açúcar na qual ingressara em Salvador em fins de agosto de 1584. Provavelmente por lá circulou e se hospedou por algum tempo, pois, além de declarar em seu testamento que possuía duas irmãs em Lisboa, uma carta do Cardeal Alberto, vice-rei de Portugal, endereçada ao seu tio Felipe II, de 12 de julho de 1587, confirma o comparecimento de Gabriel Soares em Lisboa.
A carta de D. Alberto trata das questões sucessórias do reino, da conveniência de queo monarca visitasse pessoalmente as fortalezas do Brasil, o que nunca ocorreu, da necessidade de fortificar o Rio de Janeiro e a Bahia, e sugere que os soldados da armada de Diogo Flores Valdez deveriam permanecer no Brasil averiguando informações sobre minas de ouro encontradas na capitania de São Vicente. Sobre este tema em particular, o vice-rei informa que Gabriel Soares de Sousa havia ido àquele reino a dar notícias destas minas e que seguiria “a esta corte de Madri para vossa majestade mandar proceder nesta matéria como outras por seu serviço”. 22 Este pequeno trecho é de suma importância por constituir um raro registro das rotas de Soares de Sousa na corte, confirmar a possibilidade do colonizador ter apresentado seus textos em Castela, ainda no ano de 1587, e registrar o tema central das minas como o objetivo de toda a sua peregrinação. O documento do Cardeal Alberto, um registro do processo de envio das informações sobre o Brasil a Madri, ainda apresenta notícias sobre o comércio do Brasil com Buenos Aires realizado pelo Bispo de Tucumán, Francisco de Vitória, e da abertura de uma rota de comércio entre o Rio de Janeiro e o rio da Prata, uma questão que se revelará problemática posteriormente.
Tanto o texto do Tratado quanto aqueles dos Capítulos foram encaminhados a D.Cristóvão de Moura, um dos mais importantes e emblemáticos personagens do períodofilipino, presente junto ao monarca Felipe II desde antes de sua ascensão ao trono portuguêsaté seus últimos dias de agonia no leito real no Palácio El Escorial, em setembro de 1598. Ofidalgo português a serviço de Castela, após servir como embaixador de Felipe II de Espanha [p. 29]
1.9 Aventuras de uma pesquisaAventuras não são geralmente associadas a bibliotecas e arquivos, templos da quietudee da mansidão. Mas rastrear Gabriel Soares se mostrou uma aventura emocionante, árdua emuitas vezes ingrata.Iniciada no Rio de Janeiro, com estada em São Salvador, na Bahia, e finalmente comum percurso por várias cidades de Portugal e da Espanha, a empreitada em busca de GabrielSoares de Sousa teve como objetivo acrescentar algo a sua resumida biografia e,principalmente, investigar o paradeiro original dos Capítulos contra os Padres da Companhiade Jesus no Brasil. Localizado e publicado pelo historiador inaciano Serafim Soares Leite, apartir de uma cópia pertencente ao Arquivo Geral da Sociedade de Jesus em Roma, pensou-seque seria provável encontrá-lo principalmente em algum arquivo ibérico, uma vez que não sesabe de nenhuma investigação anterior neste sentido.Em Portugal, meu primeiro destino foi o Arquivo Nacional da Torre do Tombo,referência para os historiadores do Brasil colônia. Procurei sem êxito, nos registros denascimento, casamento e óbito das freguesias lusitanas, informações sobre as suas duas irmãscitadas no testamento de Gabriel Soares como residentes em Lisboa por volta de 1584. NaChancelaria Régia de Felipe I de Portugal, Felipe II da Espanha, onde se encontram os nomesdaqueles a quem foram feitas mercês desde o ano de 1581 até 1598, confirmei a nãoexistência de referências às mercês concedidas a Gabriel Soares. Consta uma parte daquelasrecebidas posteriormente por D. Francisco de Sousa, seu sucessor nesta matéria, bem como acarta de nomeação deste como Governador-geral do Brasil. A Torre do Tombo possui umaúnica cópia do Tratado, por certo consultada pessoalmente por F. A. de Varnhagen,69 mas atéentão o Tratado descritivo não se configurava um interesse maior dentro dos propósitos dapesquisa, direcionada aos Capítulos.Na Biblioteca Nacional de Portugal me dirigi para as obras relativas a Gabriel Soaresde Sousa só disponíveis para a consulta física ali. Uma cópia manuscrita do Tratadomicrofilmada, a edição rara dos Capítulos na Separata do vol.II da Ethnos, Revista doInstituto Português de Arqueologia, Historia e Etnografia, de 1941, a dissertação de mestrado No vértice comunicativo da modernidade com a Notícia do Brasil de Gabriel Soares deSousa, de José Alfredo Teixeira Leiria, e artigos diversos do padre jesuíta Serafim Leite. Asobras e artigos de Serafim Leite cabem nesta relação não exatamente por suaindisponibilidade no Brasil, mas por serem ali facilmente identificados e disponibilizados emconjunto, especialmente aqueles publicados ao longo da elaboração da História daCompanhia de Jesus. A cópia do Tratado apresenta subsídios para a questão dos originais deSoares e a publicação dos Capítulos pela Revista Ethnos, um livreto de 35 folhas, foifundamental para uma leitura comparativa com a publicação dos Anais da BibliotecaNacional do Rio de Janeiro. Como são raros os estudos específicos sobre Gabriel Soares, adissertação de José Alfredo Teixeira Leiria fora um interesse despertado desde a pesquisaprévia realizada no Brasil no catálogo on line. Sua leitura nos surpreendeu, infelizmente, deforma negativa.Era preciso identificar nos catálogos como o da Biblioteca da Ajuda, só possível para aconsulta interna, a existência ou não dos Capítulos e fazer o levantamento prévio dosdocumentos relevantes para uma leitura detalhada. A Biblioteca da Ajuda possui trêsexemplares do Tratado descritivo de Gabriel Soares, cartas referentes à concessão de minasao Governador-geral D. Francisco de Sousa, posteriores àquelas recebidas por Gabriel Soares,requerimentos dos herdeiros de Francisco de Sousa, e especialmente um documento queapresenta a suspeita do comércio ilegal realizado por Bernardo Ribeiro, sobrinho de GabrielSoares, então Provedor da Fazenda, com os holandeses. Outros documentos registram queixascontra “os deputados” da Companhia de Jesus no Estado do Brasil, sem data, maspossivelmente do início do XVII, e um parecer feito por alguns dos jesuítas que assinaram asrespostas dos Capítulos de Gabriel Soares sobre não se cativarem indígenas, trocado com oOuvidor-geral. Como apontou Fernanda Olival, “os códices da Ajuda reportando-se aogoverno de Portugal neste período [dos Áustrias] ainda encerram muitas novidades”.70De acordo com os propósitos iniciais da pesquisa, a documentação do entorno deGabriel Soares se mostrava cada vez mais fundamental. Após percorrer as bibliotecas earquivos mais prováveis ao encontro do original dos Capítulos e esgotadas as possibilidadesde descobrir algo acerca das suas origens e sobre os seus familiares, parti para a Espanhaconvicta de encontrar o paradeiro do escrito menos conhecido do colonizador. [p. 50, 51]
Apesar de toda a curiosidade de uma viajante neófita, ao chegar em Madri embarquei diretamente do gigantesco aeroporto num trem bala em direção à cidade de Valladolid, local de nascimento do monarca Felipe II e coração da corte de Castela, para me juntar à leva de pesquisadores que acordam cedo para pegar o ônibus em direção ao Arquivo Geral de Simancas, situado na pequeníssima vila a 10 km de distância de Valladolid. No incrível castelo que abriga o arquivo fundado por Carlos V e completado por Felipe II, confirmei a não existência dos Capítulos naquele sítio, consultei os anexos de uma consulta da Junta da Fazenda relativa à proposta de Domingos Araújo e Belchior Dias Moréia sobre a descoberta de minas, de 1607, onde se encontram os dois alvarás derradeiros recebidos por Gabriel Soares, 71 e já no frigir dos ovos, ao perguntar se havia algum registro da presença de Varnhagen em Simancas, fui surpreendida com o Diário das consultas de Varnhagen na década de 1840, um detalhado registro das cópias solicitadas e realizadas a pedido do então embaixador do Brasil.
Os alvarás recebidos por Gabriel Soares de Sousa foram encontrados por João Francisco Lisboa no Livro 1º de Ofícios do Archivo do extinto Conselho Ultramarino, os quais se encontram hoje no Arquivo Histórico Ultramarino, em Portugal, códice 112, folhas 42/44. Francisco Lisboa os apresentou a F. A. de Varnhagen, que os publicou em 1858 num pequeno e referencial esboço biográfico de Gabriel Soares: VARNHAGEN, F.A. “Memória de Gabriel Soares de Sousa”. RIHGB, vol. 21, p. 413-424, 1858. Uma transcrição diplomática destes foi realizada por CORTESÃO, Jaime. Pauliceae Lusitana Monumenta Histórica. Lisboa: Real Gabinete Portugal de Leitura do Rio de Janeiro, 1956. p. 407 e ss. Tomo I. No entanto, notou perspicazmente o historiador pernambucano Jose Antonio Gonçalves de Mello a ausência dentre os alvarás precisamente da nomeação de Gabriel Soares como “Capitão-mor e Governador da conquista e descobrimento” e o seu regimento. Os dois itens foram localizados por este historiador nos anexos à Consulta da Junta da Fazenda de Portugal relativa à solicitação de descoberta de minas de Domingos de Araújo e Belchior Dias Moréia, feita em 1607 no Arquivo Geral de Simancas. Foram publicados no artigo “Dois Novos Documentos. Gabriel Soares de Sousa”. Separata do vol.51 da Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Recife, 1979. O original se encontra em AGS, Secretarias Provinciales, Lº1466. SANTAELLA, Roselli Stella. “Felipe II y Brasil”. Las Palmas: In: COLÓQUIO DE HISTÓRIA CANÁRIOAMERICANA/VIII CONGRESSO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE AMERICA, XIII. Anais.Cabildo Insular de Gran Canaria, 2000, p. 865-875.
Não se trata de um diário de Varnhagen propriamente dito, ou seja, um registro íntimodo próprio historiador-diplomata, mas de um diário do arquivo a respeito das consultas deVarnhagen e sua correspondência com Manuel García Gonzales, oficial que ocupou o postode arquivista em Simancas por 52 anos, desde 7 de agosto de 1815. Manuel García Gonzales,natural de Monforte, forma com D.Tomaz Gonzáles e Diego de Ayala a grande tríade doarquivo geral de Simancas. Estudava em Salamanca em 1808 quando começou a guerra,serviu como sargento de Auxiliares da Artilharia da Cidade de Rodrigo, caiu prisioneiro em1810, ficando na França até o fim da guerra. Nomeado 4º oficial do Arquivo em 1815, depoissegundo, primeiro e finalmente secretário, trabalhou até ser jubilado em 1º de fevereiro de [p. 52]
registros e solicita ao bibliotecário informações sobre época ou ano a que se referem certosinformes ou algo que os qualifique, em vista do tempo passado e ele não ter mais a memóriade “lo que significan estes mis apuntamientos”. Pode-se acompanhar de uma formarelativamente ampla a estadia de Varnhagen em Simancas e ainda o processo de autorizações.Num dos documentos com sinete do Ministério de la Governacion de La Península sabemosque esteve antes no Arquivo das Índias, em Sevilha. O Ministro Vidal, numa carta assinadaem 18 de junho de 1846, informa sobre estas suas andanças por Sevilha e que, porconseguinte, suas investigações em Simancas têm como objeto achar novas notícias, dadosgerais ou comprovar e ratificar as já adquiridas. E especialmente recomenda que sejaoferecido a ele auxílio, mas que também seja informado pessoalmente “de la impossibilidadede conseguir sus miras [...]”. Não identificamos nenhuma recomendação semelhante nosoutros onze diários deste gênero existentes no Arquivo Geral de Simancas.76Devo fazer menção e agradecimento à Dr.ª Isabel Aguirre Landa, chefe da Sala dosInvestigadores, por me propiciar informações sobre o documento numa descontraída conversana hora do cafezinho. O texto que eu procurava era de difícil ou praticamente impossívelacesso pelas modificações dos arquivos, incêndios ocorridos no passado, o roubo e as perdasapós a invasão das tropas napoleônicas e, principalmente, por Fernando Bouza Alvarez,especialista nos arquivos filipinos, não os ter mencionado. A doutora Isabel Aguirreconfirmou meu roteiro previamente estabelecido de locais a serem consultados em Madri,duvidando, no entanto, das minhas reais possibilidades. Até aquele momento, nutria muitasesperanças de descobrir algo inédito de Gabriel Soares.Na Biblioteca Nacional de Madri não se encontra nenhum original e nem mesmo asedições impressas dos Capítulos. No encalço dos Capítulos apresentados na corte del ReiPrudente me dirigi ao Real Palácio e Monastério de São Lorenzo del Escorial, símbolomáximo do reinado de Felipe II, “seu testamento em pedra”. Sua construção homenageia avitória na Batalha de São Quintin (França), vencida por tropas reunidas da Espanha,Alemanha, Hungria e Flandres contra as tropas francesas, no dia 19 de agosto de 1557, dia deSão Lorenzo. Teve a pedra inicial estabelecida em 23 de abril de 1563, dia de São Jorge, e foiconcluído em 1584, ano da viagem de retorno de Soares à Ibéria. Percorrer este palácio, umdos mais bem conservados testemunhos da Europa da Contrarreforma, é emergir no tempo deFelipe II e no que desejou guardar para a memória do seu reinado. Foi construído em tempo [p. 55]
O que era inédito, até então, era a identificação de Gabriel Soares de Sousa com oantijesuitismo. Serafim Leite descobriu, em suas consultas ao Arquivo Geral da Sociedade deJesus, a existência do libelo contra a atuação dos jesuítas e se serviu dele amplamente paraseus contra-argumentos. Utilizou-se também das informações do Tratado descritivo ao longodos volumes, sem mencionar os elogios corriqueiros ao colono português, nem manifestarsurpresa ao divulgar um texto tão dissonante e inédito do explorador. Ao contrário,reinterpreta algumas passagens do Tratado como dúbias e sintomáticas da indisposição doautor com os religiosos inacianos e adverte o leitor a não se deixar levar pelo senhor deengenhos, revelando sua participação contundente num complô contra os inacianos na cortefilipina:Manuel Teles, na Baía, e Gabriel Soares, na corte de Espanha, desenvolviam grandeatividade contra a Companhia. A intervenção de Gabriel Soares não conheceramlogo os padres. Da do governador diz o P. Jerônimo Cardoso, em 1586, que“enquanto lá estiver aquêle governador, não terão os Padres sossego nemremédio”.35Manuel Teles Barreto, primeiro Governador - geral da colônia durante o domíniofilipino, entre outros episódios em que se opôs à atuação dos jesuítas, pedira em certa ocasiãoao Superior da Companhia no Brasil, Luís da Fonseca, a expulsão da Ordem do padre DiogoNunes, que atuava em Ilhéus. Acusava-o de incitar os gentios à agressão aos oficiais dajustiça, quando estes se encaminharam às terras de Camanu e Boipeba, pertencentes aoColégio, a fim de recuperar índios alheios que, supostamente, trabalhavam indevidamentepara Pero Simões, procurador do dito Colégio naquela região. A diligência, realizada tarde danoite, resultou na morte de um destes oficiais com uma flechada no rosto e na prisão de PeroSimões. O padre Diogo Nunes teria sido acordado por volta de meia-noite às pressas, saídoem socorro a Simões numa canoa e insuflado os índios a reagirem, dando início ao confronto.Não solucionada a questão na província, com a punição exemplar do padre Diogo Nunes, oque era da alçada da Companhia, o governador Manuel Teles Barreto passou a encaminhar“papéis sobre papéis” para Lisboa. De acordo com Serafim Leite, “assoprados, entre outros,por Gabriel Soares de Sousa”. [p. 154]
O historiador jesuíta, ao narrar este evento, acrescenta que:[...] dada a categoria oficial de Manuel Teles Barreto, as suas informações criavamaos Padres do Brasil uma atmosfera hostil em Portugal, que se repercutia em todosos assuntos relacionados com eles. Viram-se, portanto, obrigados a organizartambém a sua defesa jurídica.36
O caso teve enorme repercussão. O reitor do Colégio da Bahia, Luís da Fonseca,escreveu aos seus superiores em Lisboa sobre o episódio, em 18 de agosto de 1584, narrandoduas versões: a do próprio governador, ao lhe solicitar providências, e outra, recebida porintermédio de “cartas de homens de bem”, informando que o padre em questão, Diogo Nunes,não se encontrava no lugar “no tempo da briga”. O reitor decidiu, em vista das controvérsias,iniciar um processo envolvendo o vigário geral, um escrivão e as testemunhas arroladas deforma a “tirar a honra da Companhia a limpo”. O governador, ao saber do auto, suspendeu oescrivão e ameaçou o vigário. A carta de Luís da Fonseca anunciava o envio de documentos,solicitava a busca de meios de retirar das mãos dos oficiais reais o pagamento das rendasdestinadas aos Colégios, já comprometidas, e se antecipava à chegada das notícias ao reino.37
Os documentos remetidos a Lisboa geraram uma representação dos padres portugueses ao Cardeal Arquiduque Alberto Ernesto de Habsburgo.38 Jerônimo Cardoso, procurador em Lisboa dos negócios da Companhia no Brasil, parece ter ficado indeciso com o caso, aventando a possibilidade de alguma “negligência” de Daniel Nunes, e comunicou a chegada dos documentos do processo em Saragoça antes mesmo da carta do reitor, em 14 de agosto de 1584. Em sete de fevereiro do ano seguinte, a imperatriz D. Maria escreveu ao Padre Geral. Entre outras coisas, diz ter se dirigido ao seu filho, o Cardeal Alberto, sobre questões relativas ao Brasil. Serafim Leite dá a entender que a intervenção de D. Maria fora favorável aos pagamentos dos padres e afirma que a conexão entre a carta da imperatriz e a perseguição de Manuel Teles Barreto não seria “inverossímil”. O superior Luís da Fonseca enviou neste ínterim uma informação diretamente ao rei sobre as atitudes de D. Manuel Teles Barreto, “uma resposta vivaz aos agravos que o mesmo Governador mandara fazer à corte, por intermédio de Gabriel Soares de Sousa”.39 Gabriel Soares de fato embarcara para a corte emfins de agosto de 1584, imediatamente após a carta do reitor do Colégio ter sido enviada aLisboa.
O acontecimento de Ilhéus, “complicado e apaixonado” no dizer do historiador Serafim Leite, é descrito essencialmente por meio dos documentos consultados no Arquivo Romano da Sociedade de Jesus. Tal consulta destaca o recorte inaciano. A presença funesta de Gabriel Soares de Sousa é associada aos problemas enfrentados na colônia antes mesmo de sua ida para a corte, à revelia dos Capítulos, e mesmo do seu Tratado. No Apêndice do Tomo II são transcritos três documentos relativos ao caso, entre eles a Representação de Luís da Fonseca a El- Rei citando nominalmente Soares:
Fez [o governador] por officiais da Camara este anno seus parentes e amigos p.ª com suas cartas em nome do pouo procurar seu crédito e proueitos particulares; e pera isso foy dequa Gabriel Soares muyto seu amigo e nosso adversario a quem o General Diogo Flores esteue p.ª levar preso por lhe parecer perturbador do bom governo desta terra, este deu muytos capitolos de Cosmo Rangel e lhe causou grandes trabalhos e com creditos do Gouernador e procurações da Camara, auidas mais por temor q uontade com q pretende seus proueitos e credito.40
Luís da Fonseca levanta dúvidas sobre a forma com que os vereadores alcançavam o seu alto posto na hierarquia colonial e a credibilidade dos documentos expedidos pela Câmara de Salvador. Gabriel Soares fora camarista, mas os papéis relativos a este período infelizmente foram perdidos41 e não temos outra informação sobre esta tentativa de prisão de Soares por parte de Diogo Flores de Valdés, general castelhano que chegou à Bahia durante o governo de Teles Barreto. O ouvidor geral, também citado, Cosmo Rangel de Macedo, esteve no governo da colônia durante um curto período, entre o falecimento do governador Diogo Lourenço da Veiga, em 1581, e a nomeação de Manuel Teles Barreto, em 1582, e possui uma trajetória conturbada. Soares refere-se a ele nos Capítulos como um “homem desatinado”, indicado à prisão pelo mesmo Manuel Teles, enquanto Serafim Leite o identifica como um dos inimigos de Soares e funcionário que sancionou uma operação de troca de terrenos do Colégio da Bahia por outro que atingia as terras da Câmara.42 [p. 155, 156]
A Companhia passara a ter problemas financeiros com o domínio espanhol. O primeiro monarca da Casa de Habsburgo no reino português sequer pagava o subsídio de costume aos missionários que iriam embarcar ou, se pagava, era escasso, e até pretendera suprimir as rendas do Colégio de Santo Antão. Serafim Leite assinala que os padres, em Lisboa, desconheciam as causas das suas dificuldades. Os mais altos quadros loyolanos aconselhavam os demais religiosos a não demonstrarem os seus desafetos. Entretanto, apesar da recomendação oficial, vários “não escondiam aos seculares as suas opiniões favoráveis ao Prior de Crato”, o rival de Felipe I de Portugal preterido no processo sucessório.43 Mas esta não seria a causa da má vontade do soberano espanhol. A campanha movida pelo senhor de engenhos em Madri, cujos Capítulos seriam apenas a ponta do iceberg, teria sido crucial. Segundo o historiador jesuíta, o pagamento das rendas e as informações passaram a ser mais justas exatamente quando D. Francisco de Sousa assumiu o cargo de Governador-geral doBrasil, sucedendo D. Manuel Teles Barreto, e os padres tiveram, em 1592, o “conhecimento dos Capítulos difamatórios de Gabriel Soares” e lhes contestaram “à letra, capítulo por capítulo, enviando a resposta para a corte”.44 Como se pode perceber, a dimensão do papel de Soares na condução dos trabalhos da Companhia, segundo os documentos arrolados pelo próprio padre Serafim Leite, ia bem além de meros "mexericos de soalheiro", expressão com que qualificara o escrito.
A relação entre a Companhia de Jesus e o governo do monarca Felipe II da Espanha éuma das questões a transpassar as discussões sobre o caráter e as características do seureinado. Entre os mais expressivos e específicos estudos neste sentido se encontram os deDauril Alden e Charles Boxer. Dauril Alden observa interações não muito estreitas durante oreinado de Felipe II e a Companhia, enquanto Boxer identifica o fortalecimento da Ordem no [p. 157]
discrepâncias a aspectos de foro pessoal, no caso a busca egoísta de ganhos e lucros motivadapor más influências. Percebe-se neste argumento a tentativa de salvaguardar o perfil deSoares. Sem depreciar o colono, supõe nele uma certa ingenuidade, atribuindo suas ações àresponsabilidade de outros: “deixara-se perturbar Gabriel Soares por excesso de utilitarismo,contagiado como ficou pelo modo de pensar dos latifundiários, instigados para mais porManuel Teles, velho desafeto dos jesuítas”.124O advogado, jornalista e historiador Cláudio Ganns, responsável pela descoberta edivulgação do manuscrito espanhol do Tratado descritivo, de uma introdução elucidativasobre o colono e de uma bibliografia exemplar de Soares em 1958, ao se autodefinir, certa vezdissera que “pecava pela franqueza”,125 enquanto por seus contemporâneos foi alcunhado de“Paladino da Justiça”. Realmente o pesquisador foi bastante enfático no modo de encaminharuma série de dúvidas sobre a presença dos Capítulos na biografia do português quinhentista:
Portanto- agora- Gabriel Soares aparece como tendo enriquecido no tráfico de índios. Como conciliar esta aptidão, de cubiça desvairada, para os bens materiais, adquiridos por forma criminosa com o seu “testamento” (1584), ao qual deixa “toda a sua fazenda” aos beneditinos? E, ademais, como conciliar esse último despreendimento, em vésperas de partir para a Europa, com a embriaguez dos descobrimentos (prata e esmeraldas) que o faz esperar aqui, de 5 a 7 anos, pelas licenças reais e o levou a caminhar, logo a seguir, atrás deste espelho enganador (1591), em que vem a morrer? Cupidez demasiada por dinheiro? Espírito de aventura? Ou a febre de arrependimento que o fêz mandar colocar sôbre a própria sepultura a humilde inscrição: “Aqui jaz um pecador”? Por que estas disposições cristãs (1584), se em Madrid (1590) ele arremete, em reserva contra os jesuítas? 126
Ganns notou claramente, como nenhum antes ou depois, o quanto a “duplicidade”destacada por Serafim Leite não se confirmava na leitura da parte do Tratado mencionadapelo mesmo: “Quem entretanto confrontar as referências da “Memória” (Cap. 9 da 2ª parte),quando ele fala dos jesuítas, com o que disse dos beneditinos (Cap. 11 da 2ª parte),comprovará que aquelas parecem irônicas ou propositadamente exageradas”.127 Ao contrário,o jogo retórico utilizado pelo colonizador, a sua ironia, permitiam ainda uma maior [p. 188]
3.16 AtualizaçõesRonald Raminelli, em Imagens da Colonização, de 1996, já havia proposto umaleitura inovadora dos agentes colonizadores. Em Viagens Ultramarinas: monarcas, vassalos egoverno a distância, de 2008, insere Gabriel Soares na trama de relações entre o centro e aperiferia, súditos e monarcas, vassalos e reis na construção e manutenção do império colonial.O objetivo da análise é compreender os vínculos do Brasil à Coroa através dos produtores deconhecimento que até a independência estabeleceram múltiplas relações com a monarquia.Desta feita, Soares é um súdito letrado fundamental na “primeira fase de conhecimentos sobreo mundo colonial.” 143 Longe de ser um caso extraordinário, o colono passa a ser exemplar,por seus dois escritos, da íntima relação entre lealdade monárquica, liberalidade e patronagemrégia que marcou o período colonial. Era justamente este princípio de troca e privilégios,centralizado na figura do rei, que garantia a manutenção do projeto imperial em áreasgeográficas tão distantes e heterogêneas. O vassalo Gabriel Soares, até então visto comosolitário em suas requisições, sai do seu isolamento e passa a ser acompanhado por BentoMaciel Parente, natural de Viana do Castelo, nascido por volta de 1584, que assim como eleesteve em Madri oferecendo informações e aguardando petições dos felipes.Em A formação da elite colonial de 2009, Rodrigo Ricupero aborda o mesmo tema datroca de mercês, focalizando, todavia, a formação da elite colonial de forma complementar,associada à própria consolidação do domínio português nos primeiros cem anos de ocupaçãoefetiva.144 Sua análise apresenta uma pesquisa documental ampla que lança novos dados àanálise de diversos agentes coloniais, entre eles Gabriel Soares. O estudo de Ricupero, alémde avaliar os Capítulos no contexto das negociações de promessas e dádivas, indica caminhospara uma releitura da biografia de Soares a partir de novos dados sobre sua esposa Ana deArgolo e seu sobrinho Bernardo Ribeiro.A presença dos Capítulos em trabalhos como os de Dauril Alden e de José EduardoFranco distinguem uma mudança focal no estudo da presença jesuítica. Dauril Alden, numestudo clássico, apresentou um novo olhar sobre o papel da Companhia de Jesus. EduardoFranco, em sua tese de doutoramento defendida na França sob a orientação de M. Merloy,refez de maneira exaustiva o discurso antijesuítico e a formação do que identifica como o“mito jesuítico”, construído efetivamente na época pombalina, num entrecruzamento entre superstições, conspirações e interesses ao longo dos séculos. Seu argumento é de queestaríamos diante de um mito forjado em séculos de hostilidade. José Eduardo Franco,conforme identificamos no início deste capítulo, inseriu o libelo de Gabriel Soares na longatradição dos discursos antijesuíticos, valorizando o seu conteúdo e pioneirismo. Seguindo deperto a obra de Dauril Alden, The Making of an Enterprise, que avaliou motivaçõeseconômicas e políticas no discurso de Soares contra os inacianos, refere-se a uma mudançaque
pode ser constatada na própria evolução da opinião de Gabriel Soares de Sousa emrelação aos Padres da Companhia”. No princípio da década de oitenta, tinha escritouma obra enciclopédica, denominada Descrição do Brasil, na qual se reporta a estesmissionários de maneira elogiosa. 145
Vimos, anteriormente, que esta suposta mudança de comportamento de Gabriel Soaresnão pode ser afirmada. Ao contrário, identificamos que o posicionamento de Soares, longe derepresentar uma ruptura, apresenta uma linearidade nos seus dois textos, ainda que distintosem suas formas. O estudo de José Eduardo Franco sobre os quinhentos anos de literaturaantijesuítica procura os elementos identificadores de uma retórica combativa e se depara, noconteúdo do libelo de Gabriel Soares de Sousa, nas suas motivações econômicas e políticas de“neoproprietário” de terras, com o que chamou de “antropovisão minimalista do índio”, umacrítica contundente aos financiamentos da Companhia e à moral cristã. Dois encontros, umpromovido pela École des Hautes Études em Sciencies Sociales e outro pela École Françaisede Rome, realizados em Paris e Roma, no ano de 2003, reunindo diversos pesquisadores,suscitaram discussões acerca das diferentes formas do antijesuitismo, suas especificidadesfrente à literatura antirromana e anticatólica e as aproximações com o antijansenismo e oantiprotestantismo. O debate também promoveu um levantamento das obras emblemáticas doantijesuitismo. Nestas reuniões, José Eduardo Franco apresentou os Capítulos como exemplodos conflitos enfrentados pela Companhia de Jesus na América do Sul, enquanto Camila Diase Carlos Zeron avaliaram o registro do senhor de engenhos como específico de um momentode implantação do projeto missionário, refutando a percepção de Eduardo Franco de umacontinuidade entre os discursos antijesuíticos. Antes disso, vale destacar, o texto docolonizador português só era reconhecido dentro da historiografia colonial brasileira einserido numa perspectiva restrita aos conflitos coloniais. [p. 196, 197]
Gonçalo da Silveira e, principalmente, por vislumbrar a conquista das famosas minas de ourode Sofala, no reino de Monomotapa, em Moçambique. A armada contava com três naus. A primeira, a nau capitânia Rainha, comandada por Francisco Barreto, levava seiscentos soldados pagos, mais de trezentos fidalgos, um número acima de duzentos criados Del-Rei e “muito mais gente limpa e nobre”. As duas outras, cada uma de duzentas e cinquenta toneladas, partiram com duzentos homens de armas, além da gente do mar, e ainda com cem africanos, pois se “determinava buscar cavalos à Índia e levá-los no seu exército para maior fortaleza.”
Lançadas à vela juntas, as três embarcações zarparam do Tejo no dia 16 de abril de 1569. A nau comandada por Lourenço de Carvalho não conseguiu vencer os abrolhos e retornou ao reino. A terceira, conduzida por Vasco Fernandes Homem, chegou a Moçambique em agosto do mesmo ano. A nau capitânia Rainha apontou na baía de São Salvador precisamente no dia de Nossa Senhora das Neves, 5 de agosto de 1569, surpreendendo o governador Mem de Sá que assistia à missa.
4.1 A chegada à baía de São Salvador
De acordo com Frei Vicente do Salvador, o governador-geral Mem de Sá aguardava o reconhecimento dos seus serviços, a vinda de um sucessor e a autorização do para seu retorno ao reino, quando chegou à Bahia de arribada, ou seja, desviando-se da sua rota, Francisco Barreto, e “ficou-lhe aqui muita gente”. Entre esta gente se encontrava Gabriel Soares, “um homem nobre dos que ficaram casados nesta Bahia, da companhia de Francisco Barreto [...]”.
O governador-geral Mem de Sá, após a expulsão dos franceses da Guanabara, desejava retornar ao reino e neste intuito entregou em 1570 uma petição na qual enumerava seus bons serviços e apresentava quatorze testemunhas sobre o seu governo. Dentre estas testemunhas, o fidalgo da casa del-rei e alcaide-mor da cidade de São Salvador, Diogo Muniz Barreto, confirmou o auxílio prestado à expedição de Francisco Barreto, em tempos de carestia.
O pesquisador José Antonio Soares de Souza relacionou as informações sobre a expedição de Barreto com as petições de Mem de Sá, a fim de identificar a data exata da chegada de Gabriel Soares de Sousa na Bahia, e apresentou uma descrição aproximada dos acontecimentos.
Na manhã do dia 5 de agosto de 1569, festa de Nossa Senhora das Neves, achava-se Mem de Sá no Colégio dos jesuítas, assistindo à missa, naturalmente de livro e rosário na mão. Respeitosamente, pé ante pé, entra na igreja um indivíduo; acerca-se do governador, e lhe cochicha ao ouvido a notícia: “andava uma nau grande que era francesa com uma chalupa”. Deixou Mem de Sá, como bom cristão, que terminasse a missa. E, ao sair do colégio, mandou “Cristóvão de Barros, capitão-mor do mar, com os navios da armada e outros que estavam no pôrto a ver que nau era” aquela. Saiu imediatamente o capitão-mor a averiguar a nau misteriosa e, longe de deparar com a suposta nau francesa, foi com Francisco Barreto que se encontrou. 158
Não foram poucos os que abandonaram a expedição em direção à África Oriental.Francisco Barreto prosseguiu com bem menos do que tinha. Invernou no Brasil até janeiro de1570 e só alcançou Moçambique no dia 16 de maio do mesmo ano. Convém dizer que aempresa foi desastrosa e o mesmo comandante faleceu, após adoecer em 1573, emMoçambique. A morte do jesuíta Gonçalo da Silveira, estrangulado e com o corpo lançado num rio ou lagoa, teria sido o estopim para a organização da armada de Francisco Barreto. O diplomata e historiador Alberto Costa e Silva suspeita que as atitudes do missionário, relegando as crenças locais, poderiam ter sido a causa da sua morte. De toda forma, de acordo com Costa e Silva, “a morte do jesuíta foi um dos pretextos para uma expedição militar contra Negomo Mupunzugatu. Impunha-se assegurar a proteção da atividade missionária. Mas o principal motivo era a conquista das minas de ouro”. 159
Apesar das recorrentes agressões aos moradores locais, a expedição fundamentava-senos princípios da “guerra justa”, declarada pela coroa ao imperador do Monomotapa, e tevecomo seus principais objetivos expulsar os muçulmanos daquela região e tomar posse dasminas de ouro do reino de Sofala.160 A motivação providencial da “guerra justa” não pode serdescartada como simples pretexto. Os homens do século XVI viveram sob a égide daCristandade e do temor aos desígnios de Deus. Ao mesmo tempo, as conquistas espanholas,entre elas a mais recente dominação do império inca, em fins da década de 1530, fomentavanos portugueses a ambição de alcançar riquezas semelhantes. Tomé de Sousa, o primeiro governador-geral do Brasil, expõe numa carta destinada ao rei D. João III, de 1552, opensamento desta ligação entre o território brasileiro e o peruano e o intuito de “descobriralgua boa ventura pera Vossa Alteza pois esta terra e o Peru he toda hua”. 161 Nas palavras deAlexandra Pelúcia, em sua investigação sobre Martim Afonso de Sousa e sua linhagem, a“fidalguia portuguesa que se aventurou pelos percursos ultramarinos foi, invariavelmente,animada por expectativas pragmáticas de dignificação pessoal e de conquista de meios defortuna [...]”.162 Não é surpreendente, como se pode perceber, que Gabriel Soares tenhaprosseguido na meta de alcançar minas preciosas, comandando a sua própria expedição, vinteanos depois de ter embarcado rumo ao Sofala.
4.2 Aqui jaz um pecador
Tanto o temor em persistir no mar, o fato de encontrar um local favorável ou apresença de um irmão, João Coelho de Sousa, podem ter contribuído para a sua decisão depermanecer no Brasil.
Gabriel Soares de Sousa se tornou um dos mais bem sucedidos colonos da época,proprietário de pelos menos dois engenhos de açúcar na região do Recôncavo Baiano, emJaguaripe e no Jequiriçá. De acordo com seu testamento, realizado na véspera da sua partidapara o reino em 1584, não herdara nada do seu pai nem dos seus avós e tudo que adquirira erafruto da sua “indústria e trabalho”.163
Pôde destinar quarenta mil réis de esmola para a Santa Casa de Misericórdia para sedourar o retábulo, cinco mil réis para a Confraria do Santíssimo Sacramento, dois mil réispara a Confraria da Nossa Senhora do Rosário e quinhentos cruzados deveriam ser repartidospara cinco moças pobres, como uma ajuda em seus casamentos. Informou possuir duas irmãsviúvas moradoras em Lisboa, D. Margarida de Sousa e D. Maria Velha. Destinava vinte milréis a cada uma delas e, se alguma falecesse, a que ficasse viva receberia a quantia anual de quarenta mil réis. Afora isto, todo o resto da sua fazenda, incluindo os “chãos da cidade”, foidestinado ao Mosteiro de São Bento, com a condição de que ele e sua esposa Ana de Argolofossem enterrados na capela-mor do referido mosteiro em Salvador.
As exigências não foram poucas. Gabriel Soares discriminou exatamente como queriao seu cortejo, sepultamento e exéquias. Caso viesse a morrer em Salvador, seu corpo deveriaser acompanhado pelos padres de São Bento e dois pobres, cada um com a “sua tocha oucírios nas mãos”. Não se dobrariam os sinos, somente se fariam “os sinais que se fazem porhum pobre quando morre”, e nem deveria haver ostentação alguma. Morrendo em qualqueroutro lugar, no mar ou na Espanha, solicita que a sua sepultura seja posta da mesma forma nacapela-mor do Mosteiro de São Bento. Sua primeira opção é o hábito de São Bento e, casonão fosse possível, o hábito de São Francisco.
Nos primeiros três dias posteriores ao falecimento, ou que houvesse certeza da suamorte, deveriam ser realizados três ofícios de nove lições e “não me farão pompa nenhumasomente me porão hum pano preto no chão com dous Bancos cubertos de preto, e em cadahum sinco vellas acesas, em cada ofíçio destes me dirão sinco missas rezadas a honra de sincochagas de noso Senhor Jezus Christo com seus responsos sobre a sepultura”.164 Em seguidadetermina mais três dias de missa e, acabados os ofícios, que cento e cinquenta missas sejamrezadas e quinze cantadas para que a sua alma saia do Purgatório, e mais cinquenta para o seupai e sua mãe. Além disso, prescreveu que se rezasse diariamente uma missa para sua almapelo período “emquanto o mundo durar”. Também informa possuir um livro de contas ondediscriminava suas posses e dívidas que deveriam ser pagas com a venda de seus bens para“consertar minha conçiensia”. Neste intuito, subscreve a venda de móveis de casa de bois, deéguas e do açúcar necessário para o pagamento dos credores. Se isto não bastasse, deveria servendido ou arrendado um dos seus engenhos. No entanto, se acaso não fosse ainda osuficiente, prescreve aos testamenteiros que se desfaçam das terras “que tenho no Jequiriça”,“com as egoas e fazenda que valem muito por serem muitas e boas [...]”.165
O que mais se destaca no testamento de Gabriel Soares são as dezessete vezes em quese autoproclama um “peccador”, refere-se às suas “culpas” e pede perdão pela gravidadedelas. Reconhece-se como “maior de todos” os pecadores, diz não ter sido capaz de honrar onome do Anjo Gabriel que recebeu por se entregar “tanto aos peccados”, que apesar de serirmão das ordens de São Francisco e São Domingos “mal as serviu” e, por fim, na ordem de Madre de Deus do Monte do Carmo, andou sempre como “ovelha perdida”.166 A remissãoculmina com o conhecido pedido de que em sua lápide constassem apenas os dizeres “Aquijaz hum peccador”. De acordo com Frei Vicente do Salvador, que destinou na História doBrazil um capítulo à “jornada que Gabriel Soares fazia ás minas do sertão, que a morte lheatalhou”
Os ossos de gabriel soares mandou seu sobrinho Bernardo Ribeiro buscar, E estão sepultados em s. Bento com hum título na sepultura, que declarou em seu testamento se posesse, E o título he, Aqui jaz hum peccador. E não sei eu que outra mina elle nos podera descobrir de mais verdade, se vivera, pois como affirma o evangelista S. Iojão, se dixermos que não temos peccado, mentimos, he não há em nos verdade. 167
Não há em nenhum outro registro testamentário conhecido do período tamanhoexagero de reconhecimento de pecados, nem o anúncio de tantas dívidas. O testamento dogovernador Mem de Sá, elaborado em 1569 no Brasil, é praticamente o oposto do redigidopor Gabriel Soares. Mem de Sá solicita as pompas devidas ao seu cortejo, o desejo da suaúltima morada ser no reino, mesmo que falecesse na Bahia, e a Igreja dos jesuítas como olugar eleito para sua sepultura. Deixa seus bens aos seus herdeiros, o que o colonizadorGabriel Soares não possuía, mas caso seus filhos não tivessem netos legítimos destinava todaa sua fortuna para as ordens religiosas. Por outro lado, discrimina, assim como o senhor deengenhos, que as suas dívidas deveriam ser saldadas e uma parte do seu pecúlio deveria serencaminhada para os pobres e para o casamento de moças órfãs. 168
Já o testamento do nobre militar português Martim Afonso de Sousa, elaborado em 1560 em Portugal, apresenta outras semelhanças com o de Gabriel Soares. Martim Afonso de Sousa, ex-governador da Índia e ex-donatário de uma capitania no Brasil, elegeu a Igreja de São Francisco de Lisboa como sua última morada, numa capela destinada a ele e à sua família. A escolha de uma determinada igreja ou ordem religiosa, que se dava por tradições de família ou piedade, e a determinação do lugar exato para o sepultamento, em geral os mais procurados eram os mais próximos aos atos litúrgicos, garantiam a redenção da alma e mantinham o falecido em evidência social.169 O capitão Martim Afonso de Sousa prescreveu [p. 203, 204, 205, 206, 207]
recebeu ordens de auxiliá-lo na reorganização da conquista, provendo mantimentos e índiosaldeados. Isto feito retornou ao seu engenho, no Jaguaripe. Os capitães Pedro da Cunha deAndrade e Gregório Pinheiro desistiram do empreendimento. Soares partiu com duascompanhias em busca da descoberta de minas e pedras preciosas que, naquele momento, tudoapontava se localizarem na direção das nascentes do rio São Francisco.4.3 Bernardo Ribeiro e a InquisiçãoNo dia vinte e nove de julho de 1591, um dia após a publicação solene dos trinta diasde graça concedidos pelo visitador Heitor Furtado de Mendonça ao povo da cidade deSalvador e de até uma légua ao redor àqueles que se apresentassem espontaneamente à Mesada Consciência, o sobrinho de Gabriel Soares de Sousa, Bernardo Ribeiro, foi denunciado àPrimeira Visitação do Santo Ofício no Brasil.175 No dia anterior, após uma faustosa e fatigantecerimônia, foi pregado na porta da Sé de São Salvador o Edito da Fé e o Monitório Geral daInquisição, um regimento obrigando os cidadãos a confessarem e denunciarem o quesoubessem “de vista ou de ouvida” de qualquer pessoa em crimes cometidos contra a fécatólica, a saber: judaísmo, luteranismo, maometismo, proposições heréticas, descrença nosartigos da fé, bigamia, feitiçaria, pacto com o demônio, leitura de livros proibidos, apostasia,leitura da Bíblia em língua vernácula, fornecimento de armas aos indígenas e adoção doscostumes gentílicos.O primeiro a se confessar foi o Padre Frutuoso Álvares, Vigário de Matoim, noRecôncavo Baiano, de 65 anos, por um crime que nem constava no rol do Monitório, porémreconhecido por ser contrário às normas morais da Igreja, o pecado nefando da sodomia.Frutuoso Álvares confessou ter tido “tocamentos desonestos” com cerca de quarenta moços emancebos e que alguns, por serem muito novos, não sabiam, mas ele sabia “muito bem quãograndes pecados” cometia. O primeiro a denunciar também foi um padre. O Padre JoãoFernandes, clérigo de missa e Vigário da Igreja de Nossa Senhora do Socorro de Tasuapina,outra freguesia do Recôncavo, acusou Bernardo Ribeiro de proposições heréticas. AInquisição, mesmo não presente materialmente no Brasil, já havia feito anteriormente sentirsuas amarras. O donatário de Porto Seguro Pero de Campos Tourinho foi preso e enviado para o Tribunal de Lisboa, acusado de não guardar os dias santos e se auto proclamar rei e papa desua capitania em 1546. Em 1573, o protestante francês Jean de Boulez foi executado equeimado em Salvador, o único caso concluído desta forma nas terras brasileiras. E, em 1574,o italiano Rafael Olivi foi preso sob a acusação de possuir livros proibidos. Mas a presençaefetiva da primeira Visitação, em 1591, certamente provocou um rebuliço bem maior naprovíncia baiana e em seus arredores. 176Bernardo Ribeiro era filho de Maria de Argolo, irmã da esposa de Soares, Ana deArgolo, e de Antonio Ribeiro, antigo Provedor da Fazenda. Nascido na Bahia, solteiro, tinhacerca de trinta anos quando foi denunciado à Inquisição e, segundo consta no processo, era“magro”, “trigueiro” e um tanto altivo. Ribeiro foi denunciado por afirmar, após se recuperarde uma doença grave, que a fé sem obras bastava para a salvação. As palavras foram ouvidase refutadas pelo padre na casa da viúva Clemência Dora, tendo como testemunhas Franciscode Abreu, genro de Clemência, e seu filho, Christóvão da Costa177. O Padre Fernandestambém denunciara, no mesmo ensejo, João Serão, Gerônimo Moni e o jovem mercadorcristão-novo João Batista, amigo de Bernardo Ribeiro. João Batista, ao se encontrar pesandosuas especiarias, recebeu uma reclamação do seu freguês de que o peso não era justo e teriarespondido “justo só Deus”. Capistrano de Abreu, primeiro a revelar e avaliar os processos daInquisição no Brasil, destacou este caso do jovem João Batista como exemplo de umproblema aparentemente irrelevante aos desconhecedores dos tipos de questões importantespara a Inquisição. O mesmo se pode dizer diante da acusação do sobrinho de Gabriel Soares.Aparentemente simples para a jurisdição civil contemporânea, a “fé sem obras” foi umprincípio fundamental da Reforma e permanece sendo um item crucial na diferenciação edefinição das principais religiões ocidentais.A “Sola fide”, a justificação dos atos e da salvação somente pela fé, cindiu a Igrejacatólica. O monge agostiniano Martinho Lutero questionou o uso dos termos do Evangelho deSão Tiago “[...] assim como o corpo sem espírito está morto, a fé se não tiver obras, é mortaem si mesma”,178 como uma justificativa de cobrança de indulgências. Ao fim das diversassessões do Concílio de Trento não foi possível exatamente um consenso entre os diversosrepresentantes da cristandade, mas concordaram todos que a fé era indissociável das ações, assim como identificaram os seus arquirrivais a serem combatidos. Os eleitos poderiam estarem qualquer parte, inclusive no Brasil.179O processo do sobrinho do explorador português, Bernardo Ribeiro, se prolongou pordois anos e contém oitenta e dois fólios.180 Iniciou-se em julho de 1591, período em queGabriel Soares retornava para ao Brasil para empreender sua expedição, e só foi concluído emdezenove de dezembro de 1592, após o falecimento do senhor de engenhos e inclusive daabertura de seu testamento.Naquela mesma freguesia de Tasuapina, Maria Rangel, nascida no Porto, casada comum lavrador, confessou ser amante de Francisca e Isabel por mais de 10 anos e recebeu aameaça de castigos, caso reincidisse nestes atos. Sebastião Madeira, também conhecido comoBastião Madeira, de 27 anos, cristão-velho, foi acusado de feitiçaria e recebeu comopenitência carregar uma vela acesa, descalço, no auto-de-fé, e não mais retornar ao sertão,afora as penitências espirituais. Bernardo Ribeiro recebeu uma sentença leve: penitênciasespirituais e o pagamento das custas do processo. Apesar de ser computado na historiografiacomo o sobrinho que transladou os ossos de Soares dos sertões da Bahia a Salvador, não émencionado no testamento do senhor de engenhos.Através deste processo de Bernardo Ribeiro podemos saber um pouco sobre alinhagem dos Argolo. Ao ser chamado em onze de novembro de 1592 à Mesa de Consciênciae inquirido como era de praxe sobre a sua genealogia, Ribeiro informou sobre seus pais, avós,tios e irmãos. Não conhecera os avós paternos. Os maternos eram Rodrigo de Argolo, nobrecastelhano que chegara à Bahia em 1549 com o primeiro governador-geral Tomé de Sousapara ocupar o cargo de Provedor da Fazenda, e Joana Barbosa. Possuía tios por parte do pai,moradores de Viseu, que revelava não saber os nomes, um irmão estudante em Coimbra eduas irmãs moradoras de Jaguaripe, uma delas viúva de Diogo Correa de Sande. Na mesmalocalidade moravam seus outros tios, irmãos de sua mãe, Paulo de Argolo e Ana de Argolo,“mulher que fora de Gabriel Soares”. Naquela ocasião, tanto Gabriel Soares como DiogoCorrea de Sande, vizinhos de engenhos e casados com mulheres Argolos, já haviam falecido. [p. 210, 211, 212]
Bernardo Ribeiro pode ter sido o “parente” responsável por mostrar os Capítulos aospadres no Brasil, como afigura no título completo do documento: Capítulos que GabrielSoares de Sousa deu em Madri ao Sr. D. Cristóvão de Moura contra os padres da Companhiade Jesus que residem no Brasil, com umas breves respostas dos mesmos padres que delesforam avisados por seu parente a quem os ele mostrou. Pode-se conjecturar que houvesseuma cópia enviada por Soares da Europa ou entregue por ele a algum parente no pequenoínterim entre a sua chegada ao Brasil e a saída da sua expedição. Poderia esta cópia ter comofinalidade apenas guardar o escrito ou mesmo servir como barganha com as autoridadeseclesiásticas e seculares. No entanto, como vimos anteriormente através da História daCompanhia de Jesus no Brasil do Pe. Serafim Leite, outras vias também levaram este escritoaos religiosos jesuítas.4.4 Rodrigo de Argolo, o sogro defuntoEntre os cerca de mil homens que chegaram ao Brasil com Tomé de Sousa em 1549 seencontrava Rodrigo de Argolo, nomeado por D. João III para ocupar a função de Provedormor da fazenda real, bem como de provedor da alfândega e defuntos da Bahia, com afaculdade de resgatar (comprar e remeter para Portugal) um escravo a cada ano. O sogro deGabriel Soares era conhecido como “o castelhano”. Fidalgo, nascido em cerca de 1510,provavelmente em Baeça, na região da Andaluzia, fora para Lisboa novo, em 1525,acompanhando a rainha D. Catarina de quem foi porteiro da Câmara e moço da estribeira. Erauma figura de projeção na corte de Lisboa, o que lhe valeu sua nomeação no Brasil em 25 dejaneiro de 1549, pouco depois daquela que fizera Tomé de Sousa governador.Rodrigo de Argolo tomou posse em primeiro de maio de 1549, recebendo o ordenadode 30$000 anuais, mas desempenhou por pouco tempo seus cargos assim como foi breve suavida na colônia. Após apenas dois anos, em 1551, doente, foi substituído interinamente pelotesoureiro João de Araújo, ou João de Araújo de Sousa, e faleceu em 15 de novembro de1553. Apesar deste breve período, sua linhagem prosperou por séculos no Brasil colonial, seucargo hereditário foi disputado e a proliferação de homônimos na sua família, junto à escassezde documentos, gerou diversas confusões sobre sua vida. A primeira delas relativa ao seucasamento com Joana Barbosa.Rodrigo de Argolo casou-se com Joana Barbosa Lobo, identificada no CatálogoGenealógico de Frei Jaboatão como uma das três irmãs órfãs filhas de Baltasar de Sousa Lobo enviadas pela Rainha, junto a outras, para se casarem no Brasil. Afonso Costa, membro doInstituto Geográfico e Histórico Baiano, conviveu com o Frei Antônio de Santa MariaJaboatão e, de acordo com o mesmo, era este um “excelente franciscano e desavisadohistoriador". A. Costa apresentou um breve e substancial artigo àquele instituto denominado“Rodrigo de Argolo à luz dos documentos” procurando desfazer as falhas nas leituras dasfontes promovidas no catálogo do frei. Neste artigo, o autor questiona algo de fatoimprovável e naturalmente impossível, Rodrigo de Argolo ter se casado e tido quatro filhosem dois anos, nenhum deles gêmeos, e problematiza as deduções do Frei Jaboatão sobreaqueles que ocuparam o cargo vacante do primeiro provedor da fazenda.181De acordo ainda com Afonso Costa, Rodrigo de Argolo se casou sim com JoanaBarbosa, filha de Baltazar Lobo, mas em fins de 1529, em Lisboa, e ela chegou ao Brasilcasada e com filhos. Eram eles Luiz de Argolo, Ana de Argolo, Maria de Argolo e Paulo deArgolo. Quando Gabriel Soares chegou a Salvador em 1569, seu sogro já havia falecido hádezesseis anos, e sua futura esposa já havia sido casada com outro senhor de engenhos deParaguaçu, João de Brito.
O cargo de provedor da fazenda foi disputado pelos herdeiros de Rodrigo de Argolo, em geral seus genros, pois seu primogênito morreu cedo no Brasil junto ao bispo D. Pedro Fernandes Sardinha. Bernardo Ribeiro chegou a ocupar o cargo por cerca de dois anos, sucedendo seu cunhado Manuel de Sá Soutomaior em 1606, e em 1612 recebeu uma sesmaria no Jequiriçá, com engenho de açúcar. Não se sabe se esta faria parte de uma das possessões de Soares naquele local. O que se pode afirmar é que Gabriel Soares não disputou o cargo de provedor com outros membros da família Argolo e chegou a vereador da Câmara por outros caminhos, possivelmente envolvendo a sua origem, riqueza, prestígio e convívio.
4.5 Dilemas de um cortesão
As frases iniciais do texto dos Capítulos registram um dilema incontornável: por umlado, Gabriel Soares informa que deveria “obedecer” ao rei e apresentar as informaçõessolicitadas e, por outro, correr o risco de ser “desacreditado”, caso as mesmas informações [p. 213, 214]