' O DOMINIUM SOBRE OS INDÍGENAS E AFRICANOS E A ESPECIFICIDADE DA SOBERANIA RÉGIA NO ATLÂNTICO Da colonização das ilhas à política ultramarina de Felipe III (1493-1615) - 01/01/2010 de ( registros) Wildcard SSL Certificates
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O DOMINIUM SOBRE OS INDÍGENAS E AFRICANOS E A ESPECIFICIDADE DA SOBERANIA RÉGIA NO ATLÂNTICO Da colonização das ilhas à política ultramarina de Felipe III (1493-1615)
2010. Há 14 anos
privados e escravistas ou se envolviam diretamente com esse sistema produtivo epolítico. Os jesuítas deviam, portanto, reunir tanto o poder temporal como o espiritualsobre os indígenas e, somente desta forma, a justiça e autoridade régias se realizariam ese aumentaria a eficiência econômica da exploração colonial.É preciso analisar se essa diferenciação retórica das formas de dominium eraefetiva nas práticas jesuítas, ou se eles, assim como todos os outros agentes coloniais,também estavam sujeitos à ambivalência conceitual e prática do conceito de dominium,definida pela exploração privada e econômica dos indígenas e africanos que sesobrepunha ao bem comum e às autoridades políticas em Portugal e em Roma.

Segundo o senhor de engenho Gabriel Soares de Sousa, em um documento ao rei Felipe II, os jesuítas impediam a separação entre o poder temporal e o espiritual nos aldeamentos. Eles concentravam ambos os poderes sobre os indígenas, pois queriam fazê-los “forros de seu poder absoluto.”395 Gabriel Soares define o estatuto indígena nos aldeamentos jesuíticos pela condição social de “forro”, ou seja, o escravo liberto ou o servo, como se a ideia de “liberdade” indígena fosse um subterfúgio para o exercício de um domínio doméstico, que tirava dos particulares a possibilidade de usufruto dotrabalho indígena e alienava o domínio político-jurídico do rei. Os jesuítas passavam a controlar a reprodução social dos indígenas, e o domínio doméstico exercido sobre eles se convertia em poder temporal e absoluto.

Seguindo sua argumentação, Gabriel Soares diz que a independência econômica, conseguida com o auxílio dos reis, reforçava a autonomia política dos jesuítas, que passaram a ser odiados pelo povo. Os padres questionam a aparente opulência descrita por Soares e enfatizam a imagem de pobreza em que viviam, respondendo da seguinte forma às suas graves acusações:

“As Aldeias, que têm [os jesuítas], são de El-Rei e do povo, e dos índios nos servimos, como os mais da terra, por seu estipêndio, e não têm os Padres estas aldeias como eles [os senhores] têm as suas, em Jaguaribe, e outros particulares em suas terras, das quais eles sós se servem, e ninguém se atreve a bulir nelas, nem são mais que quatro aldeias, as quais se vão consumindo, pelos contínuos serviços em que os trazem, de guerras, rebates de Ingleses, fortes, baluartes, ir às minas com o informante, e coisas semelhantes.” 396 [p. 141]

Os jesuítas invertem a acusação. Em suas aldeias não havia alienação do poderrégio ou do povo, eles se serviam do trabalho indígena em troca de um salário e osfaziam disponíveis às necessidades do povo, visando ao bem comum. Os jesuítasdestacam os serviços relacionados à defesa da terra, como força militar e mão de obrapara a construção das fortalezas, além da busca de minas.397

O padre Luís da Fonseca, em representação ao rei Felipe II, enfatiza a importância dos aldeamentos para a defesa militar do Brasil, que são como “fortalezas”, particularmente na sujeição dos escravos de Guiné. “Representação de Luís da Fonseca a El-Rei”. Bahia, 13 de janeiro de 1585. In: HCJB, t. 2, p. 621.

398 Carlos Zeron destaca três formas de financiamento da missão estabelecida pelos jesuítas: (1)Rentabilização das terras e dos bens imóveis; (2) Atividades econômicas de subsistência e de produção voltadas ao comércio interno e externo; (3) Sistema de empréstimo e crédito. ZERON, Carlos A. de M. R. La Compagnie de Jésus, op. cit., p. 96 e ss.

Já nas aldeias senhoriais, os indígenas serviam somente ao bem privado dos particulares, alienando o poder régio e contradizendo os interesses do povo e o bem comum, o que permitia, em última instância, a emergência de uma força política autônoma. O domínio dos jesuítas sobreos indígenas era, portanto, superior ao domínio privado dos senhores, porque era o único que podia garantir o bem dos indígenas, o bem comum e a autoridade régia.

Nesse sentido, Nóbrega argumentava que o serviço divino e o crescimento da Companhia dependiam de alguma criação de gado, do trabalho dos escravos e da aquisição de algumas terras, mas mostrava prudência diante dos murmúrios daqueles que condenavam que os jesuítas adquirissem bens de raiz. A independência econômica era entendida por Nóbrega como uma condição sine qua non para a realização da missão jesuítica. O superior procurava circunscrever essa atividade à lógica da casa –como necessidade de manutenção do colégio e dos alunos398 –, enquanto seus críticos entendiam que elas extrapolavam esse âmbito, caracterizando-as como comércio e atividade produtiva. 399

O padre Manuel da Nóbrega decide, então, que os aldeamentos deviam se afastar do assédio dos colonos, e as dificuldades na conversão do gentio exigiam uma “sujeição moderada”. Nóbrega passou a descrever o índio como o “ferro frio e duro” que precisava ser forjado, exigindo temor e sujeição. Essa nova atitude da Companhia de Jesus perante o domínio sobre os indígenas coincidiu com a chegada do novo [p. 142]

3.1. O fortalecimento dos governadores-gerais e vice-reisDe acordo com a política de diversificação dos agentes responsáveis pelodominium sobre os indígenas, as Coroas ibéricas favoreceram, entre os anos de 1558 e1580, a mediação dos governadores-gerais e vice-reis.426 Nesse sentido, destacamos parao Brasil a atuação de Mem de Sá e, para o Peru, o vice-reinado de D. Francisco deToledo.A carta de nomeação de Mem de Sá (1558-1572) diz expressamente que asdoações de capitanias não embargavam os poderes a ele delegados, que possuía umajurisdição superior e tinha o direito de suspender os capitães.

Nomeado em 23 de julho de 1556, por três anos e com os mesmos vencimentos e poderes de seupredecessor. “Carta Régia pela qual Sua Majestade fez mercê a Mem de Sá de Governador-geral dasCapitanias do Brasil por 3 anos com 400$ RS. de ordenado”. Lisboa, 23 de julho de 1556. In: ABNRJ,vol. 27, 1906, p. 219-221.

Seu governo deu asnovas bases da colonização portuguesa na América e, além de consolidar a aliança entrea Coroa (D. Catarina, D. Henrique e D. Sebastião) e a Companhia de Jesus, a aprovaçãogeral de seu governo indica o favorecimento de outros grupos sociais da colônia. Umdocumento fundamental para avaliar a política de Mem de Sá é a carta de serviços, feitapor ele, com o depoimento de distintos moradores.428 Os diferentes itens que compõemesse documento revelam a importância estratégica do Brasil para as expedições querumavam para o Oriente, a relevância da atuação do governador nas contendas locais,no incremento da fazenda régia e na construção dos marcos que representam aordenação do espaço segundo a lógica colonial – os templos religiosos, a fortaleza e acasa dos governadores. Mas o aspecto mais importante de seus serviços refere-se àsrelações estabelecidas com os indígenas nas diferentes capitanias do Brasil.De um lado, os índios estavam rebelados em diferentes capitanias, por outro, osdiferentes agentes coloniais disputavam o dominium sobre os indígenas, esse foi o pontofundamental do sucesso do governo de Mem de Sá, que promoveu uma política diferenciada em relação aos grupos indígenas do Brasil, a fim de atender os diferentesinteresses presentes no processo de colonização. A guerra justa foi o ponto de partida desua ação e, a partir dela, o governador estabeleceu as seguintes formas de dominium:1) Privadas e senhoriais, baseadas na escravização dos prisioneiros de guerra429,no resgate ou na administração das aldeias por colonos430;2) Administração das aldeias a cargo dos jesuítas431;3) Administração por capitães leigos432 (diretamente vinculados ao governadore à Coroa);4) Diferenciação entre a administração temporal e a espiritual.433429 Destaca-se a guerra justa contra os Caeté. Em junho de 1556, o Bispo Sardinha e outroscompanheiros foram devorados em um ritual de antropofagia que justificou um decreto de guerra justa eescravização, feito pelo governador por volta de 1562 e aceito pelos jesuítas. THOMAS, Georg. Políticaindigenista dos portugueses no Brasil, op. cit., p. 78-80.430 Temos pouca informação documental sobre as aldeias sob administração dos colonos. Em São Paulo,por exemplo, os deputados da Câmara elegeram um capitão dos índios em 1553, nas palavras de GeorgThomas: “A imposição do capitão assegurou, pois, à população de São Paulo, um direito fundamental deintervenção ativa no cuidado dos índios, antes que os jesuítas tivessem podido construir umaadministração nas aldeias de acordo com o modelo da Bahia”. Ibidem, p. 90. Carlos Zeron e GeorgThomas aceitam a ideia do historiador jesuíta Serafim Leite de que as aldeias jesuítas foram as únicas quesobreviveram à escravização dos colonos e às fugas e lutas de resistência dos indígenas, principalmentedepois da determinação de guerra justa contra os Caeté. A documentação não nos permite fazer umaafirmação peremptória. A posição de Serafim Leite procura construir uma memória histórica que valorizaa mediação jesuíta como única forma possível de administração das aldeias e de civilização fundamentadano bem indígena e na moral cristã. ZERON, Carlos A. de M. R. La Compagnie de Jésus, op. cit., p. 75.THOMAS, Georg. Política indigenista dos portugueses no Brasil, op. cit., p. 86-87. Em referência aHCJB, 1, p. 71-72.431 No caso dos índios do chefe Boca Torta, a guerra justa foi declarada por causa do canibalismo, aspazes foram concedidas pela conversão ao cristianismo e pelo ajuntamento das aldeias. Entregues à tutelajesuítica, eles se transformaram no principal apoio militar do governador na Bahia. Foi no Recôncavobaiano que se estabeleceram as primeiras aldeias sob administração jesuíta, havia dez missões entre aBahia e Camamu.432 A carta de serviços fala genericamente em sujeição e vassalagem à Coroa, com pagamento detributos, nas aldeias dos Tupiniquim de Ilhéus e dos índios Tapuia de Paraguaçu, chefiados por Tarajó.Quem confirma o pagamento de tributos pelos índios de Paraguaçu é o depoente Vicente Dias.“Instrumentos dos serviços de Mem de Sá”, 7/9/1570. In: ABNRJ, 27, p. 192.

Segundo Gabriel Soares de Sousa, Mem de Sá havia determinado a separação entre a administraçãoespiritual, entregue aos jesuítas, e a administração temporal, sob responsabilidade de um meirinho (oficial de justiça de jurisdição inferior, aparecem também os termos protetor, capitão, juiz e alcaide para designar esse cargo). Os meirinhos podiam ser portugueses ou indígenas. Em uma carta de 31 de março de 1560, o governador esclarece que esses meirinhos eram indígenas: “por menos despesa e pela necessidade que havia deles ordenei de fazer um meirinho dos do gentio em cada vila por que folgam eles muito com estas honras e contentam-se com pouco”. A designação de meirinhos indígenas relacionava-se também à falta de missionários. Na mesma carta, descreve Mem de Sá: “também mandei fazer tronco em cada vila e pelourinho por lhes mostrar que tem tudo o que os cristãos têm”. “Carta de Mem de Sá, governador do Brasil para El Rei em que lhe dá conta do que passou e passa lá e lhe pede em paga dos seus serviços o mande vir para o Reino”. Rio de Janeiro, 31 de março de 1560. In: idem, p. 228. Na lei de 1587 cria o cargo de procurador dos indígenas, mas não define se seria português ou indígena, na lei de 1596, o rei esclarece que o juiz “será português”. “Lei que S. M. passou sobre os Índios do Brasil que não podem ser cativos e declara o[s] que o podem ser”, de 24 de fevereiro de 1587, e “Lei de 26 de julho de 1596 sobre a liberdade dos Índios”. In: THOMAS, Georg. Política indigenista dos portugueses no Brasil, op. cit., p. 223 e 226. [p. 158, 159]

No Brasil, disputavam-se o acesso privilegiado aos escravos que vinham daÁfrica e o poder de determinar uma guerra justa ou uma expedição que permitiria aescravização dos indígenas; a forma de administração dos índios livres ou forros, bemcomo as formas de dependência e as clientelas estabelecidas em relação à populaçãolivre. Os capítulos de Gabriel Soares de Sousa e as respostas dos jesuítas, produzidos noinício da década de 1590, mostram que essas disputas atingiram um ponto culminantenesse período, e a existência de um novo monarca exigia a persuasão e a soma de forçaspara o estabelecimento de uma política hegemônica.

Gabriel Soares de Sousa foi até Madri “a fim de apresentar, junto com seus planos para a procura demetais no sertão brasileiro, também a questão da sustentação dos jesuítas e de suas missões, assim comopara pressionar em favor do ponto de vista dos colonos e do Governador”. THOMAS, Georg. Políticaindigenista dos portugueses no Brasil, op. cit., p. 116.

A favor dos colonos estavam asnecessidades da fazenda real e as resistências de Felipe II em relação aos jesuítas, evice-versa.526 A favor dos jesuítas estava o reconhecimento, patente em comparaçãocom a realidade da América espanhola, de que a mediação deles no controle doscolonos, por meio do governo dos indígenas, era um elemento político estratégico quenão podia ser ignorado. Para além dessas duas opções de orientação da política colonial,Felipe II procurou estabelecer um sentido próprio à colonização atlântica, por um lado,favorecendo os colonos, por outro, tentando subordinar a Companhia de Jesus àautoridade régia.

As notícias da vitória de Felipe II, primeiro de Portugal, levaram à sua aclamação no dia 25 de maio de 1582, na Câmara de Salvador, sem apagar, no entanto, as reticências ao domínio espanhol no ultramar lusitano. A aclamação foi feita pelo juiz Francisco Fernandes Pantoja, pelos vereadores Antônio da Costa, Fernão Vaz e Gabriel Soares de Sousa, pelo procurador João Ribeiro, o escrivão João Pereira, o bispo D. Antônio Barreiros, entre outras autoridades. SERRÃO, Joaquim V. Do Brasil filipino, op. cit., p. 12.

O traço mais marcante da política de Felipe II é definido pela máxima do divide et impera. O novo rei rompe com uma tendência estabelecida até aquele momento, que destacou diferentes mediações em relação ao dominium sobre os indígenas (conquistadores, jesuítas e governadores) ao longo do processo de colonização e passa a desenvolver uma política que favorece a diversificação das mediações, ao mesmo tempo em que exige a subordinação dos diferentes grupos de interesse ao poder régio. Nessa perspectiva, a ideia de conflito de jurisdições pode corresponder a uma estratégia dapolítica régia que, ao favorecer as disputas entre os agentes políticos, destaca sua arbitragem e define, principalmente por meio das questões relativas ao dominium sobre as populações subalternas, uma série de situações de exceção, que lhe permite intervir nas realidades sociais e produtivas coloniais com um reforço de poder.

Para favorecer os interesses dos colonos no Brasil, a Coroa concedeu e estimulou as expedições para a descoberta de minas. Vale destacar aquelas dadas ao colono Gabriel Soares de Sousa (na região do rio São Francisco, em que pode se tornar o primeiro capitão e governador do sertão). As guerras de expansão também foram estimuladas, mas as povoações, presídios e nas novas capitanias (Sergipe, Paraíba, Ceará) foram incorporados ao patrimônio real.

Contra os jesuítas, Felipe II procurou romper as alianças estabelecidas entre elese os governadores-gerais. O padre José de Anchieta, provincial dos jesuítas entre 1577 e 1587, assim descreveu o processo de sucessão monárquica: “Ainda que a confusão das coisas de Portugal (como da cabeça) não pode deixar de confundir os membris de seus estados, não falando ainda nos particulares açoites, que cada um teve”.“Carta ânua da província do Brasil, de 1581, dirigida a Cláudio Acquaviva”. Bahia, 1º de janeiro de 1582.In: ANCHIETA, Pe. José de (S.J.). Cartas: correspondência ativa e passiva. Obras completas, 6º volume.Pesquisa, introdução e notas do Pe. Hélio Abranches Viotti, S.J. São Paulo: Edições Loyola, 1984, p. 302.

Em seu debate com Gabriel Soares, os inacianos reconhecem dois momentos de suas relações com os governadores: bom, com Tomé de Sousa, Duarte da Costa, Mem de Sá, Lourenço da Veiga e D. Francisco de Sousa529; e conflituoso, com Luiz de Brito, Manuel Teles Barreto 530 e Francisco Giraldes531 (quenão chegou a assumir o cargo). Podemos acrescentar a essa última lista: D. Diogo Botelho532 e D. Diogo de Meneses533.

Francisco Giraldes estava em litígio com os jesuítas em relação a terras da capitania de Ilhéus, da qual era donatário. “Capítulos que Gabriel Soares de Sousa”, op. cit., p. 352-354 e 357. Sobre o governador, ver COSENTINO, Francisco C. Governadores gerais do Estado do Brasil (Séculos XVIXVII), op. cit., p. 139 e ss.

9 D. Francisco de Sousa, em sua alcunha “das manhas”, representa a habilidade política que permitiu aarticulação e o favorecimento de diferentes forças políticas coloniais, conduzidas por meio de ações comforte marca personalista. Outro governador que representa essa habilidade política é Mem de Sá. Anomeação de D. Francisco de Sousa, na década de 1590, já mostra o interesse filipino em descobrir minasno Brasil. Sua atuação, centrada na Repartição Sul, indica a diferenciação dos projetos políticoeconômicos para as duas partes do Brasil, que serão confirmadas pela nomeação de 1607. D. Francisco deSousa soube favorecer os padres da Companhia, o que também pode indicar a diferenciação do projetomissionário nessas duas regiões da colônia. São cerca de vinte anos de oposição entre os [p. 193, 194]

“Por provisão, de 5 de junho de 1605 – foi estabelecido que em nenhum caso sepudessem cativar os gentios do Brasil; porque, com quanto houvesse algumas razões dedireito para se poder em alguns casos introduzir o dito cativeiro, eram de tanto maiorconsideração as que havia em contrário, especialmente pelo que tocava à conversãodos gentios à nossa Santa Fé Católica, as quais se deviam antepor a todas as mais.”658A provisão régia se sobrepunha a “algumas razões de direito”, destacando aimportância da conversão dos gentios e o aspecto religioso da colonização. A questãoindígena favorecia a caracterização do poder régio como absoluto, no sentido deindependência e de eminência sobre as práticas coloniais e sobre a própria lei. O rei seantepôs à escravização indígena e, na carta de 22 de setembro de 1605, deu seu parecersobre a “jornada do Maranhão”:“Ora, mandando eu ver os autos que se fizeram sobre o dito cativeiro e outrasinformações que tive da mesma matéria e razões muito urgentes do serviço de Deus emeu, se achou que o dito cativeiro não era legítimo nem conforme às leis que sobre issosão passadas, nem era conveniente para o bom prosseguimento daquela conquistaescandalizar os índios dessas partes com cativeiros, que eles tanto temem e aborrecem;e houve por bem de os haver a todos por livres e mandar que sejam tornados a suasterras, como vereis pelo meu alvará que sobre isso mandei passar.”659O rei procurava retomar o controle sobre o processo de colonização e disciplinara expansão para o Norte. Sabia que, por trás da harmonia dos discursos, o domíniosobre os indígenas saía de seu controle e ameaçava sua autoridade. Para que seu poderpolítico fosse efetivo, deveria se apropriar da relação com os nativos e regulamentá-la,subordinando o domínio privado dos senhores ao seu domínio político.Alguns anos depois, em 1614, o capitão e sargento-mor do Estado do Brasil, Diogo deCampos Moreno, assim analisava a expedição:

“Mas como todas estas obras eram sem ordem nem braço de rei, e ogovernador tratava de que lhe mandasse parte dos índios, como por cartas e ordenssuas hoje parece, discorrendo que como de cativos era gente devida às primícias de seugoverno, entendendo disto os homens que a Jornada se havia feito somente para cativar e vender índios, deram-se tão boa manha que em breves dias venderam até aqueles quefielmente os haviam ajudado e acompanhado na guerra”. 660

O governador, que nos textos acima representava a justiça régia, aqui utiliza asprerrogativas de seu poder e certas manhas para beneficiar-se pessoalmente. O mesmotipo de acusação aparece na devassa tirada por Belchior de Amaral, em que ogovernador foi acusado de: vender ofícios e tomar o ordenado de outros; apropriar-seilegalmente de vinho e o vender com preços excessivos; apropriar-se da renda dosdefuntos, para compra de escravos; mandar tomar muitos negros aos moradores, pormenos do que valiam; pagar o preço que queria, pelos escravos que vinham de Angola;aceitar presentes dos moradores e barrar alguns despachos do ouvidor; e ficar emPernambuco contra as ordens do rei.

O parecer de Belchior de Amaral era contundente: “q. V. M.de devia mandar outro governadoràquele Estado.” “Devassa de Belchior de Amaral”, 26 de julho de 1604. In: Biblioteca Nacional deLisboa, Coleção Pombalina 249, ff. 205-206v. Este documento parece não ter chegado às mãos do rei, a“Carta do Bispo D. Pedro de Castilho ao Conde de Sabugal”, de 8 de junho de 1612, diz que não seconhecia o paradeiro da devassa de Belchior de Amaral. In: BA, 51-VIII-15, ff. 236-237v.

Algumas acusações eram semelhantes aquelasfeitas contra o governador de Angola, Manuel Cerveira Pereira, mas, no caso do Brasil,as formas de domínio sobre os nativos se articulam com a escravidão dos negrosafricanos.Não obstante as manifestações de aprovação de seu governo, feitas pelascâmaras de Olinda e Salvador, D. Diogo Botelho teve seus bens confiscado, o quecolocou ele e sua família em apuros. Por mais que a absolvição dos funcionários régiostenha sido a regra, após as devassas e julgamentos, nos parece relevante essa capacidadedo poder régio de constranger os ocupantes de cargos ultramarinos, além da importânciado sistema de mercês para reafirmar a subordinação desses ministros ao seu poder.Cabe agora descrever minuciosamente as reformas político-econômicasdesenvolvidas entre 1604 e 1614 para, depois, analisarmos as reações dos agentesultramarinos e coloniais, que definiram os limites das mesmas e exigiram umaconfiguração específica da soberania régia. [p. 236, 237]

A Coroa indicava o fim gradual do sistema, que seria possível conforme osíndios adquirissem mais polícia e a disponibilidade de escravos negros aumentasse; evoltava a estimular o tráfico e o emprego dos “vagabundos”. A estratégia comum, paraforçar os homens de cor livres e os índios ao trabalho, era o aumento dos impostos, queos colocaria em necessidade e os obrigaria a se engajarem nos trabalhos agrícolas emineiros. Como vimos desde as sugestões de Duarte Coelho, a necessidade, mais doque a vontade, era a principal forma de obrigar as populações não-proprietárias aotrabalho. Ao mesmo tempo, o aumento da população negra e de homens livres ociososera vista como um fator de insegurança pelas autoridades coloniais e pelo vice-reiMontesclaros.729Trata-se novamente de um sistema de exploração compósito, definido pelacomplementaridade entre as formas de trabalho forçado e a escravidão, o estatuto deliberdade e de propriedade, de súdito e de estrangeiro. Esse sistema também levava emconta as especificidades coloniais/produtivas e nativas, e dos tempos históricos vividos;que passavam a ter uma expressão espacial, presente nas divisões políticoadministrativas e nos fluxos de comunicação entre esses espaços.Os planos de reforma foram praticamente esquecidos até a década de 1640 e,quando se retomou as alternativas para a substituição da mita, a Coroa havia perdido asprincipais fontes de escravos na África e vivia a guerra de “restauração” portuguesa.Diante desse quadro, a instituição da mita voltou a ser plenamente sancionada.No Brasil, a oposição do governador-geral D. Diogo de Meneses às aldeiasadministradas pelos jesuítas foi mais contundente do que a de seu antecessor, DiogoBotelho. Em “Carta ao rei” (Olinda, 23 de agosto de 1608), ele sugeria que os índios fossem administrados de acordo com os interesses enecessidades dos senhores de engenho e integrados à sociedade colonial pelo trabalho.Para justificar sua posição, ele retomava um argumento de Gabriel Soares de Sousa: “equanto mais vou metendo a mão na experiência me parece o mesmo que tenho avisado aV. Majestade lhe torno a lembrar (...) não há índio que seja cristão nem saiba que coisaé a fé.”730 A experiência, aqui descrita como matéria da qual se apropria pela prática degoverno, desqualifica a possibilidade real de conversão, o que justifica a concentração [p. 260]

dos ventos e corrente marítimas, para o norte, e seguia até as minas de Monomotapa. Asdivisões administrativas do Brasil durante o reinado de Felipe III – Repartição Sul, em1607, e Estado do Maranhão, em 1621 – mostram que o extrativismo, mineral ou das“drogas do sertão”, favorecia sistemas de trabalho forçado da população nativa e aCoroa aprovou esse emprego.A associação entre a mineração e a escravidão sempre favoreceu a conquista, daía valorização dos sujeitos experimentados na guerra colonial e com experiênciamineralógica. Foi assim com a absolvição de Manuel Cerveira em 1609 e seu envio paraBenguela em 1615, e o mesmo ocorreu com D. Francisco de Sousa, enviado para aRepartição Sul do Brasil. A repartição Sul do Brasil e Benguela deveriam dedicar-se àmineração, enquanto que o Estado do Brasil seria um produtor agrícola, a Coroaincentivou as plantações em Angola e os escravos deveriam ser adquiridos por viaspacíficas, suspendendo a mineração e a conquista. Outra estratégia territorialadministrativa foi a criação das missões do Guairá e do Paraguai, entre 1606 e 1610. Asmissões serviriam como uma zona tampão entre as Índias de Castela e a Américaportuguesa, evitando, assim, o intenso contrabando e o estabelecimento de poderesregionais que desagradavam o poder régio.753 Quando o governador D. Diogo deMeneses diz que a verdadeira riqueza do Brasil era o açúcar, e não a mineração, elaindica que, a diferenciação regional produtiva da colônia definiu grupos de interessesdistintos, e que a Coroa pode definir políticas diferenciadas para cada região e estimularos mecanismos de conflito entre essas elites e favorecer novamente sua autoridade pormeio do divide et impera.

Em mais de dez anos de andanças pelo Brasil, D. Francisco de Sousa tornou-se um dos homens mais experimentados nesta terra e talvez o maior conhecedor de seu potencial mineralógico e escravista.754 Em julho de 1605 foi determinada sua residência.

“Cartas de El-Rei ao Conselho da Índia, sobre a ordem de se tomar Residência a D. Francisco deSousa, no Estado do Brasil”, 21 de julho de 1605. In: BA, 51-VII-15, ff. 29, 36, 43 e 51. A mesma ordem foi passada em relação ao governador de Angola, João Furtado de Mendonça. Ver também a “Carta de ElRei ao Bispo D. Pedro, relativa à devassa que Belchior do Amaral, tirou de D. Francisco de Sousa, decousas particulares de que havia queixas quando este foi Governador do Brasil; ordenando que tire umarelação, e por que convém que se tome Residência ao dito D. Francisco de como procedeu naquelegoverno, conforme ao que está assentado que se faça a todos os Governadores e Capitães de Ultramar, seencarregue desta diligência um dos ministros da Relação que se há-de enviar ao Brasil”, 6 de agosto de1605. In: BA, 51-VIII- 7, ff. 123v.-124.

Em abril de 1606 o governador ainda não se apresentara no Reino. (“De Sua Majestade ao Conselho da Índia sobre Dom Francisco de Sousa, referente ao que mandou D. Francisco de Sousa, que foi Governador do Brasil, sobre a sua vinda para o Reino e causas que lhe impediram fazê-lo, e recomendando que se faça ver no Conselho da Índia, juntamente com as despesas que fez da Fazenda, em que foi notado o ter cometido excessos, e com particular relação delas se faça consulta do que parecer”, 24 de abril de 1606. In: BA, 51-VII-15, f. 82.), e em dezembro foi nomeado para o governo da Repartição Sul e das minas do Brasil.757

D. Francisco das Manhas e Manuel Cerveira Pereira triunfaram em Madri no ano de 1606. Nesse mesmo período, o projeto de apropriação do domínio sobre os indígenas e africanos e a realização do projeto imperial Habsburgo no Atlântico estavam sendo discutidos nos Conselhos reais. Como entender e explicar estas medidas? A contradição entre elas era indicada pelos próprios conselheiros do rei (“Sobre o pedido de Domingos de Araújo e Melchior Dias”, 17 de agosto de 1607. In: AGS, SP, l.1466, f. 287.):

“E por que pelas informações que sobre esta matéria se tomaram se entende que nem as minas de que Gabriel Soares deu notícia nem outras algumas de que se tratou naquele estado do Brasil se acharam ser de efeito e as mais das pessoas que fizeram semelhantes ofertas tiveram mais intento de descer gentio do sertão e aproveitar-se dele que do descobrimento das minas de que se segue muito prejuízo ao serviço de V. Majestade.” 758

As manhas coloniais são aqui reveladas. Elas caracterizam a distância entre oque emanava da corte e dos conselhos e o que acontecia no Brasil, a distância entre osdiscursos coloniais e o caráter privado desse tipo de expedição.

“Nomeação de Francisco de Sousa para o cargo de governador das minas do Brasil”, 23 de dezembrode 1606. O documento foi assinado pelo Duque de Lerma. In: AGS, SP, l. 1466, ff. 318-318v. Vertambém a “Carta de El-Rei ao Conselho da Índia, tocante a D. Francisco de Sousa, que foi Governador doBrasil e agora está nomeado para ir servir no benefício e administração das minas que descobrir naqueleEstado, com título de Governador, o qual pretende que se lhe conceda a jurisdição e provejam as cousasque se apontam no papel que irá neste despacho, mandando que o dito papel seja visto pelo Conselho,para se poder resolver”, 24 de abril de 1607. In: BA, 51-VII-15, f. 142. Ver também “Sobre a residênciaque Sebastião Carvalho deveria tirar do ex-governador, mas por esse estar novamente a serviço da Coroa,a mesma não deve ser feita nesse momento”, 26 de novembro de 1607. In: AGS, SP, l. 1495, ff. 57-57v. E“Sobre o dinheiro que no Brasil tomou dom Francisco de Sousa dos defuntos dos ausentes”, 19 defevereiro de 1608. O Duque de Lerma pedia a execução dos empréstimos tomados por D. Francisco deSousa, quando era governador do Brasil, para sua partida imediata para o descobrimento das minas, oconde de Salinas assina. Idem, l. 1483, f. 135. [p. 270, 271]



130 de 135

Destaques
• Luiz Inácio Lula da Si.. (7)5,26%
• Martim Afonso de Sousa.. (4)3,00%
• Gabriel Soares de Sous.. (4)3,00%
• Francisco de Sousa (15.. (4)3,00%

• Assassinatos (15)11,2%
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