D. Sebastião e a Batalha de Alcácer Quibir. historiasdeportugalemarrocos.com
21 de janeiro de 2018, domingo. Há 7 anos
Este artigo pretende apresentar alguns factos e opiniões que contribuam para o conhecimento da fatídica jornada portuguesa em Alcácer Quibir e a visão que dela ficou expressa de um e outro lado deste conflito.Aquele que ficou conhecido como o maior desastre militar europeu fora da Europa continua a alimentar polémicas, opiniões controversas e resistências ao apuramento dos factos de forma objectiva, sendo-lhe atribuídas várias designações, Batalha de Alcácer Quibir, Batalha de Oued El Makhazen ou Batalha dos Três Reis. Batalha dos Três Reis, que podia ser dos Dois, Três ou Quatro Reis, já nela participaram dois reis, D. Sebastião e Mulai Abdelmalek, um ex-rei, Mohamed Moutaouakil e um futuro rei, Ahmed Al-Mansour.Não deixa de ser irónico que uma batalha que determinou de forma tão drástica o futuro de Portugal tenha sido dirigida no seu momento decisivo por dois portugueses, de um e do outro lado da contenda, o Rei D. Sebastião e o renegado Reduan (ou Reduão), um português convertido ao Islão, lugar-tenente de Mulai Abdelmalek, que assumiu no decurso da batalha o comando das operações do exército marroquino após a morte do Sultão.“Um mancebo sem experiênciaE um velho sem saberDois irmãos sem consciênciaDeitam este Reino a perder.”Augusto Mendes Simões de Castro citado por Maria Augusta Lima Cruz (CRUZ, 2009, p. 226), sobre glosa à equipa governativa de D. Sebastião e do Cardeal D. Henrique.A A personalidade de D. Sebastião é marcada por uma série de factores que influenciam o seu reinado e, consequentemente, o curso dos próprios acontecimentos que culminam com o enorme desastre militar que daria origem ao reinado dos Filipes de Espanha.A sua chegada ao Mundo no ano de 1554 é vista como a salvação da própria existência de Portugal enquanto Nação, ameaçada por uma possível sucessão espanhola à morte de D. João III. Esta situação de figura imprescindível, aliada a outros factores, como a sua educação, meio familiar e falta de saúde, marcam a sua personalidade voluntariosa, impulsiva e autoritária, aliada a uma exacerbada rigidez moral e um complexo ante o sexo oposto, para além da imaturidade própria da sua idade. O período em que D. Sebastião reina é extremamente complexo em termos de política internacional e a intrincada teia familiar em que a Coroa Portuguesa se encontra envolvida resulta na constante ingerência externa nos assuntos Nacionais. Mas, como os acontecimentos provariam, o Rei tinha tanto de imprudente como de destemido e estes dois factores revelar-se-iam desastrosos para as decisões que viria a tomar em situações decisivas.D. Sebastião era neto de D. João III, a quem sucedeu com apenas três anos de idade, já que seu pai, o Príncipe D. João Manuel morreu quando sua mulher D. Joana de Áustria se encontrava grávida. Durante a sua menoridade é instaurada uma regência, primeiro liderada pela sua avó, D. Catarina de Áustria, e depois pelo seu tio-avô, o Cardeal D. Henrique.“Entretanto, não se pense que o facto de ter sido proclamado rei não afectou o dia-a-dia daquela criança que, embora ignorante das tensões que pairavam em seu redor, era já, de facto, o rei. E no rei se depositavam todas as atenções.” (CRUZ, 2009, p. 81)A sua educação ficou a cargo de membros da Companhia de Jesus, concretamente do padre Luís Gonçalves da Câmara, cuja “beleza lhe fora concedida na razão inversa da sua fé e seus dotes intelectuais” (CRUZ, 2009, p. 95). O embaixador veneziano António Tiépolo, que visitou Portugal para solicitar a entrada do País na Liga contra os turcos, descreve Luís Gonçalves, citado por Queiroz Velloso, como “muito feio, ‘di brutta presenza’, cego dum olho e muito gago” (VELLOSO, 1935, p. 99). Luís Gonçalves, que foi como um pai para o rei, era coadjuvado pelos padres Amador Rebelo e Maurício Gaspar. A educação que o rei recebeu, excessivamente religiosa, esteve na origem “do cruzamento dos dois mais marcantes traços comportamentais de D. Sebastião: excesso de zelo religioso e ardente aspiração ao heroísmo” (CRUZ, 2009, p. 101)“D. Sebastião é uma criança cujo aspecto delicado e frágil é acentuado pelos cabelos louros e pela brancura da pele”, como refere Maria Augusta Lima Cruz. (CRUZ, 2009, p. 80)Aos nove anos de idade o rei é afectado por problemas de saúde, falando-se em indisposição de rins, e aos 12 anos padece de febres, tonturas e desmaios, e de “secreções”, colocando-se várias possibilidades para a doença que o afectava, desde uretrite, espermatorreia ou gonorreia, esta última, segundo Harold B. Johnson, transmitida sexualmente por um pedófilo, que seria nem mais nem menos do que o seu mestre, o padre Luís Gonçalves da Câmara (CRUZ, 2009, pp. 143-149). Instala-se uma discussão, que tinha por base a convicção de que o rei teria uma vida curta, dividindo-se as opiniões sobre se deveria casar quanto antes ou se o casamento lhe abreviaria mais a vida. (VELLOSO, 1935, p. 107)A relação entre D. Sebastião e o padre Luís é determinante para a formação da personalidade do jovem rei, que tinha grandes dificuldades em se relacionar com mulheres, adiando sucessivamente os possíveis casamentos que lhe foram propostos ao longo da vida, com Isabel de Áustria, Margarida de Valois, Isabel Clara Eugénia e Catarina Micaela, filhas de Filipe II, a filha de Francisco de Médicis, Grão-Duque da Toscana, Maximiliana, filha do Duque da Baviera ou a filha do Duque de Lorena. A própria morte de D. Luís em 1575 transtorna grandemente o rei, que se recolhe três dias num quarto em Évora e mais 10 dias no Convento do Espinheiro, nos arredores dessa cidade. Grande parte dos relatos das doenças de D. Sebastião são feitos por D. Alonso de Tovar, embaixador castelhano, que prometera a Filipe II de Espanha nunca abandonar o rei português.Tovar refere que a doença “consistia em expelir D. Sebastião, ‘por sus organos, cierta substancia ó purgacion’, que aumentava ou diminuía, conforme ele se excedia ou restringia nos exercícios que praticava”. (VELLOSO, 1935, p. 102)“É evidente que este perturbador controlo, para não lhe chamar ingerência, de Filipe II não podia deixar de incrementar a animosidade já instalada contra a intromissão castelhana em assuntos internos portugueses.” (CRUZ, 2009, p. 125)No dia 20 de Janeiro de 1568, com 14 anos de idade, D. Sebastião assumiu o governo, que duraria 10 anos, precisamente até ao fatídico dia 4 de Agosto de 1578. Nesse mesmo ano morre o príncipe D. Carlos, único filho varão de Filipe II, situação que coloca o seu sobrinho, D. Sebastião de Portugal, em posição de lhe suceder na Coroa de Espanha, o que ainda faz prever um aumento da já indesejada ingerência castelhana nos assuntos de Portugal.Sobre D. Sebastião escreveu Oliveira Marques:“Aos catorze anos de idade, D. Sebastião tomou conta do governo. Se não fora rei, teria porventura sido um zeloso e violento missionário. Enfermo no corpo e no espírito, importava-se pouco com o ofício da governação, perdido antes em sonhos de conquista e de expansão da Fé. Conquistar Marrocos era a sua ambição número um, mas outros projectos de imperialismo em terras pagãs preenchiam-lhe a imaginação. Ousado até aos limites da loucura, o rei não concedia lugar ao planeamento cuidadoso, à estratégia ou à retirada, igualando tudo isso a medo ou cobardia. Desprezava os velhos e os prudentes, rodeando-se de um grupo de jovens aristocratas, quase tão loucos e pouco maduros como ele próprio.” (MARQUES, 1973, p. 421)Ao assumir o poder, o rei determina as bases da sua política. A nível interno, uma moralização dos costumes, especialmente o combate à corrupção, o aumento do culto divino e a defesa dos mais desprotegidos. A nível externo, uma nova política imperial, com base na expansão da Fé, da intervenção da Coroa nas actividades mercantis e “mais intervenção num novo tipo de expansão territorial no Oriente que ultrapassasse o modelo tradicional, essencialmente mercantil e litoral, e apostasse no avanço para o interior de modo a assegurar o controlo das populações locais, e logo da mão-de-obra, da produção agrária e das reservas mineiras.” (CRUZ, 2009, pp. 178-179)No centro da política expansionista estavam as três Praças-fortes portuguesas de Marrocos, Ceuta, Tânger e Mazagão, bases de importância crucial na defesa da navegação e da segurança das costas de Portugal, ameaçadas com a crescente influência turca na região e com o recrudescimento da actividade corsária.No início de 1572 começa a preparar-se uma grande armada, acompanhada de uma mobilização geral de homens de armas por todo o país. Inicialmente essa armada é apresentada como um meio de luta contra o poderio otomano, mas em Abril é referida como uma força preventiva contra um eminente ataque francês. Paralelamente à versão oficial, correm rumores de que D. Sebastião preparava uma incursão em Marrocos comandada por ele próprio. Nos finais de Agosto a armada estava pronta, mas nos primeiros dias de Setembro D. Sebastião adoece e no dia 13 desse mês abate-se sobre Lisboa e toda a costa Sul do País um enorme temporal. “Em vários portos, as embarcações mercantis, quebradas as amarras, deram à costa e desfizeram-se em pedaços. Precisamente o mesmo que aconteceria aos navios da grande armada”. (CRUZ, 2009, pp. 245-255)Nesse mesmo ano Tânger é atacada por uma força conjunta dos Alcaides de Tetuan, Arzila e Alcácer Quibir.Em Outubro de 1572, D. Sebastião parte para Évora onde fica até ao final do ano. Aí é-lhe proporcionado pela Inquisição um auto de fé, “como ainda não houvera outro (pois foram queimados, no mesmo dia, dezoito réus (…) e contígua à casa da câmara armou-se uma tribuna para que o rei, o cardeal D. Henrique e o Senhor D. Duarte pudessem assistir comodamente ao atroz espectáculo” (VELLOSO, 1935, p. 189). D. Sebastião era um entusiasta do Tribunal do Santo Ofício, que considerava como muito útil.No ano de 1573 D. Sebastião faz uma visita ao Sul do País, com especial destaque para o Algarve, fazendo-se acompanhar por uma comitiva que integrava nomes como D. Duarte, Duque de Aveiro, D. Pedro Dinis de Lencastre, Conde do Vimioso e Belchior do Amaral, este último que, como veremos, acabaria como guardião do corpo do rei na casa do Alcaide Ibrahim Soufiane após a Batalha de Alcácer Quibir.Esta visita inseria-se num programa de inspecção das fortificações da fronteira marítima e de preparação da ofensiva em África. Maria Augusta Lima Cruz refere que a descrição desta viagem é feita pelo cronista de D. Duarte, de nome João Cascão, o qual apresenta aspectos curiosos do Algarve do século XVI, como por exemplo o facto de “muitos soldados andarem vestidos à mourisca”. (CRUZ, 2009, p. 258)O rei recebeu “banhos de multidão”, nomeadamente em Lagos e Tavira. Lagos foi elevada a Cidade e celebrou-se missa na Ermida de N. Sra. da Piedade. Num passeio de barco entre Portimão e Alvor “até os peixes do mar lhe vinham fazer festa”. João Cascão refere o “acanhamento do rei perante as mulheres, a sua relutância pelas manifestações ruidosas e pelas concentrações de população” (CRUZ, 2009, p. 259). D. Sebastião entendeu durante a visita a importância do Algarve no seu projecto político e passou a visitar a região todos os anos, sobretudo Lagos e Sagres.No ano seguinte, no mês de Agosto, zarpou de Cascais com uma força de 1.200 infantes e 800 cavaleiros em três galés, sem informar ninguém da sua partida, nem qual o seu destino. Só durante a sua escala em Lagos, onde se juntou um galeão e cinco caravelas da esquadra do Estreito que aí estava fundeada, revelou que o seu destino era África e informou por carta o Cardeal D. Henrique que delegava nele a regência do Reino enquanto aí estivesse. (VELLOSO, 1935, pp. 194-196)Passou todo o mês de Setembro em Ceuta e o de Outubro em Tânger, onde travou algumas escaramuças com mouros que para lá convergiram ao saber da sua presença na cidade.Após a visita a Ceuta e Tânger aumenta o fosso entre D. Sebastião e aqueles que se opunham a uma intervenção directa em África. O rei torna-se obstinado e obcecado com o seu projecto. Os partidários da guerra em África aumentam a sua influência no monarca, como Pêro de Alcáçova Carneiro, que lhe alimentava o sonho da sua participação em grandes batalhas campais, deixando para os capitães das praças a chamada guerra guerreada. (CRUZ, 2009, p. 285)No texto que escreve sobre a ida a África, compara-se a César, Aníbal, Cipião o Africano e sobretudo ao seu avô Carlos V. “Vangloria-se de antever as ‘causas ocultas ao vulgo’, de interpretar os sinais do mar e as conjecturas do tempo, de encontrar as soluções mais acertadas porque baseadas num saber que ‘por experiência é alcançado e por razão é entendido’. Gaba-se de, contra a maioria dos pareceres solicitados, tomar as resoluções mais acertadas, porque baseadas no ‘entendimento, honra, espírito e verdadeiro siso e discurso da guerra’.” (CRUZ, 2009, p. 259)A obsessão do rei é alimentada pelos acontecimentos da política interna marroquina, na qual vê sinais de fraqueza do inimigo. Com a morte do Sultão Mulai Abdallah El-Ghalib em 1574, sucessor de Mohamed Ech-Cheikh, o conquistador de Santa Cruz do Cabo Guer aos portugueses em 1541, toma o poder o seu filho Mohammed El-Moutaouakil, de cognome El-Mesloukh, ou O Esfolado, que mais adiante veremos porquê. Mas a tradição sucessória da Dinastia Sádida dizia que o poder devia ser ocupado pelos irmãos do defunto, antes de caber a um qualquer filho ou sobrinho.“Não cabia assim ao filho mais velho do defunto Sultão tomar a coroa que lhe fora atribuída, mas ao homem mais velho da família. No caso presente, o sucessor de Mulai Abdallah El-Ghalib deveria ter sido Mulai Abdelmalek, irmão do falecido Sultão, e não Mohammed El-Moutaouakil, o seu filho mais velho.” (LUGAN, 2011, p. 153)Abdelmalek, que os portugueses chamavam O Maluco, mas que de maluco não tinha nada, era um veterano das guerras do Mediterrâneo, tendo-se instalado em Istanbul em 1557 quando o seu irmão Abdallah El-Ghalib toma o poder. Participou em várias batalhas ao serviço dos otomanos, como a de Lepanto, onde foi feito prisioneiro, ou no cerco de La Goulette. Quando El-Moutaouakil é aclamado Sultão, Abdelmalek, estava em Argel, e decide reunir um exército para tomar o poder que legitimamente lhe pertencia. Os otomanos vêm nesta iniciativa uma forma de se assenhorearem de Marrocos, mas Abdelmalek saberia salvaguardar a independência do Reino Sádida. O acordo com os turcos previa, em troca de apoio na tomada do poder em Marrocos, o pagamento de 500.000 onças de ouro, o estabelecimento de um acordo militar contra Espanha e a cedência do porto de Larache como base para investidas corsárias no Atlântico.No início de 1576 um exército de 6.000 arcabuzeiros e 8.000 cavaleiros, sobretudo janíçaros e argelinos, marcham sobre Fez. Cerca de 2.000 Andalusinos que apoiavam Moutaouakil passam-se para o lado de Abdelmalek e a vitória deste último é estrondosa, obrigando o seu sobrinho a refugiar-se em Marraquexe. No seguimento da batalha, Abdelmalek paga as 500.000 onças de ouro aos turcos, dispensa os seus serviços e inclusive recusa ceder-lhes o porto de Larache. No final desse ano trava-se uma segunda batalha junto a Rabat, com nova derrota de Moutaouakil, que abandona Marraquexe, refugiando-se nas montanhas, e pedindo ajuda a Filipe II de Espanha.“Afim de sair desta situação embaraçosa, Filipe II fez compreender ao fugitivo que o seu caso não interessava a Espanha, mas que Lisboa poderia talvez ter uma atitude mais compreensiva a seu respeito. De facto, o Rei D. Sebastião sonhava em voltar a por o pé em Marrocos e quando o sultão derrotado veio oferecer-lhe um quase protectorado sobre o País, o jovem e impetuoso soberano pensou que tinha a ocasião de vingar a derrota portuguesa dos anos 1540.” (LUGAN, 2011, p. 154)Abu Marwan Abdelmalek El-Mouatassem Billah, ou O Devoto a Deus, era um estratega nato e um homem tido como extremamente hábil, sábio e justo, que sabia que a independência de Marrocos face às ameaças espanholas e turcas passava essencialmente por um entendimento com a Coroa Espanhola. Daí a sua pressa em dispensar o contingente turco que o apoiara, garantindo afinal que Marrocos tenha sido o único país do Norte de África que escapou ao jugo otomano.Era reconhecidamente um homem tolerante, prudente e sensato, e os cronistas da época “são unânimes em elogiar as suas qualidades morais, isto é, de tolerância, prudência e experiência, coisas que a escola da adversidade dá, aos que sabem ler no seu livro”. (LOPES, [1937] 1989, pp. 77-78)Do lado espanhol, a paz com Marrocos era também fundamental para manter a fronteira Sul em paz. A ameaça turca perdera entretanto importância, já que os turcos começavam a voltar a sua atenção para a Pérsia e uma acção louca dos portugueses em Marrocos só podia beneficiar Espanha.Em Dezembro de 1576, D. Sebastião encontra-se com Filipe II em Guadalupe para lhe pedir apoio na Jornada de África. Nas conversações entre portugueses e espanhóis, o rei de Espanha prometeu “auxiliar o sobrinho com gente e navios, isto é, 50 galés e 5.000 homens, mas pôs-lhe certas condições para isso, a saber: a expedição far-se-ia até Agosto seguinte de 1577; nela tomariam parte, para além das forças espanholas, 15.000 homens, pelo menos, recrutados pelo rei de Portugal, metade de tropas portuguesas e o restante alemães e italianos, sendo 6.000 os primeiros e 2.000 os segundos. Esta exigência foi feita pelo Duque de Alba, encanecido na guerra europeia, bem mais difícil que a colonial, a única em que os portugueses se exercitavam e para a qual levavam gente do campo sem preparação para a grande guerra.” (LOPES, [1937] 1989, p. 79)As negociações não correram bem a foram acaloradas e tensas. O resultado foi negativo para Portugal, já que as exigências de Filipe II obrigavam a criar o exército num tempo record, o que faz supor que pretendia que D. Sebastião desistisse por incapacidade de organizar a logística requerida, ou pior, que fracassasse no campo de batalha por falta de organização.A versão de David Lopes sobre o encontro de Guadalupe não é confirmada por Luís Costa e Sousa que afirma que “verificando que falharam todas as tentativas para dissuadir o sobrinho, o monarca castelhano recusou-se liminarmente a prestar qualquer auxílio militar oficial – e substancial. Foi proibido o levantamento público de voluntários espanhóis, e que não seriam poucos, segundo se depreende das palavras dos cronistas (…) A situação chegou ao extremo quando Felipe II mandou prender os oficiais que tomaram a iniciativa de levantar tropas em Espanha.” (SOUSA, 2009, p. 20)Fosse como fosse, a verdade é que de facto apenas participaram no exército português 500 espanhóis comandados pelo capitão Aldana, que se integraram nas suas fileiras já em Marrocos.Nos meses seguintes trabalha-se afincadamente para conseguir fundos para o financiamento da expedição, como 240.000 cruzados pagos pelos cristãos-novos, 150.000 cruzados de subsídio eclesiástico da Santa Sé, lançamento de impostos sobre os fidalgos e comerciantes, e um empréstimo de 400.000 cruzados a uma sociedade alemã com um juro a 8%. No total, “mais de um milhão de cruzados, cerca de metade das receitas anuais do Estado.” (MARQUES, 1973, p. 422)O prazo de Agosto de 1577 dado por Filipe II não seria cumprido, por razões óbvias. Não era possível organizar um exército num tão curto espaço de tempo. Apesar de a aquisição de artilharia em Antuérpia e a contratação de mercenários alemães e italianos correr relativamente bem, no Reino as coisas não iam de feição, devido à muita corrupção instalada, pelo que muitos dos possíveis combatentes compravam o seu não ingresso no exército. O resultado é que o exército seria sobretudo composto por gente sem experiência militar, recrutados no reino através das ordenanças. A expedição é várias vezes adiada. Primeiro para Outubro. Em Setembro D. Sebastião tem conhecimento de que Filipe II não o apoiaria e volta a adiar a expedição para a Primavera de 1578.Iniciam-se também os contactos com Mohamed El-Moutaouakil El Negro. No início de 1578 chega a Lisboa uma embaixada do sultão deposto, que oferece a D. Sebastião “todo o litoral que ele possuía no mar oceano com seis léguas pela terra firme, com as cidades e povoações que aí havia, entre elas Arzila, Safim, Larache (…) depois acrescentou a isso (…) Alcácer-Quibir, Tetuão. Além disso prometeu que deixaria pregar na Berbéria a fé de Jesus Cristo. Mandou-lhe entregar desde logo Arzila… e, finalmente, consentia que D. Sebastião fosse coroado imperador de Marrocos”. (LOPES, [1937] 1989, p. 80)“Nos inícios de Junho, Lisboa fervilhava de gente (…) No Tejo, apinhavam-se as embarcações. O ambiente era de euforia e, de acordo com um testemunho ocular, ‘mostrava-se em todos tal alvoroço que parecia que iam folgar ou a ver umas grandes festas’. Como reverso da medalha, rebentavam também as rixas entre soldados portugueses e estrangeiros” (CRUZ, 2009, p. 320). No dia 24 de Junho, os 500 navios que constituíam a armada deixam Lisboa rumo a África.No dia 26 aportou em Lagos, onde se reuniram os navios saídos de Setúbal, e no dia 28 chegou a Cádis, onde ficou uma semana, e onde foram chegando os navios mais atrasados. No dia 7 de Julho, quando a armada zarpou de Cádis, totalizava mais de 800 navios, conforme refere Bernardo da Cruz, citado por Maria Augusta Lima Cruz:“Entre as galés e galeões e naus armadas, e navios mancos de toda a sorte, chegou a frota a número de oitocentas velas, com as que também partiram de outras partes do Reino.” (CRUZ, 2009, p. 326)Por alturas em que a frota zarpa de Cádis, Abdelmalek tenta demover D. Sebastião a desistir da expedição, escrevendo-lhe três cartas, que D. Sebastião entendeu como um sinal de fraqueza. A última das cartas, segundo Berthier, citado por Bernard Lugan, rezava o seguinte:“Senhor rei, tendo ouvido dizer que Mulai Hamet (trata-se de Mohamed El-Moutaouakil), meu sobrinho, depois de que pela força das armas o expulsei do reino que ele possuía injustamente, foi-se refugiar no teu real poder, julguei por bem escrever a Tua Alteza a presente para que ela sirva de aviso. Já que pretendes voluntariamente ser juiz entre nós dois, considerando bem o caso, saberás que se de forma jurídica quiséssemos julgar esta causa, eu devo eu próprio ser ajudado mais do que perseguido, já que eu sou o filho mais velho do rei que conquistou esta terra, branco de pele, amigo da razão e daqueles que a seguem. Para além disso o meu sobrinho não saberia encontrar nenhuma razão para invocar em apoio das suas reivindicações, já que, apenas considerando o direito das armas, que foi aquele pelo qual o meu pai conquistou este reino há cinquenta anos, ainda o trago por ele. Assim, sabes muito bem que aquele dos dois que deve reinar e possuir este reino por direito, é-lhe necessário merecê-lo e estar apto, do que dei provas e garantias suficientes. Dou-te esta opinião Senhor, como um amigo que quero ser e de quem quer que sejas meu, mas se assim for, se forem contestados os direitos que titulo pela minha idade, sendo o mais velho da família, que me mandem pessoas dignas de confiança a quem possa comunicar as minhas intenções, já que não tenho menos vontade de ter sucesso no que é justo do que o meu sobrinho, nem me faltarão os meios para alcançar melhor do ele o que prometi em função do que possuo, apesar de saber que se subestima o meu poder, o que me será proveitoso nos tempos vindouros.” (LUGAN, 2011, p. 157)Maria Augusta Lima Cruz põe em causa a veracidade destas três cartas, confessando-se convicta tratar-se de documentos forjados “para apresentar dois estereótipos: de um lado um sultão justo, sensato e experiente e, do outro, um rei moço, inexperiente e insensato”. (CRUZ, 2009, p. 331)Mas apesar de tentar salvar a paz, Abdelmalek preparou o seu exército para a guerra e a chegada dos portugueses a Marrocos provocou um levantamento em massa, uma verdadeira reacção Nacional. Abdelmalek saiu de Marraquexe, “deixando por governador o alcaide Reduão, um renegado português, inteligente e corajoso, que trouxera de Argel, e a quem dera o alto cargo palaciano de camarista, como homem de sua plena confiança” (VELLOSO, 1935, pp. 327-328), e dirigiu-se para Salé, onde começou a apresentar sintomas de doença por envenenamento. Não se sabe quem o andava a envenenar, mas falava-se de uma das suas mulheres, de dois Andalusinos que queriam repartir o poder do Reino de Marrocos entre si ou do comandante das tropas turcas que o apoiavam, instigado pelos próprios otomanos (CRUZ, 2009, pp. 326-327).De acordo com o historiador marroquino Eloufrani, Abdelmalek foi envenenado traiçoeiramente pelos turcos, que lhe deram um bolo com veneno, com o objectivo de se apoderarem do poder após a sua morte. (ELOUFRANI, 1889, p. 137)Queiroz Velloso não põe em causa a veracidade destas cartas e afirma inclusivamente que “num ponto estão de acordo os cronistas: após a derrota, aos fidalgos cativos em Fez, afirmou o alcaide Reduão, português renegado e grande valido do defunto Xerife, que o amo teria cumprido todas as suas promessas.” (VELLOSO, 1935, p. 326)Segundo o Homem Africano, autor anónimo de um manuscrito que relata os factos ocorridos na jornada de D. Sebastião em África, e que se pensa ser um dos participantes da guarnição de Tânger na Batalha, “Muley Maluco negociava com D. Sebastião por meio de André Gaspar Corso; este, com ordem de Maluco, escreveu ao Rei afirmando-lhe o mal que o Xerife Hamet (Mohamed El-Moutaouakil) cumpriria o que lhe tinha prometido, que não se fiasse de suas palavras, porque os Moiros em nenhuma maneira o ajudariam; e que se Sua Majestade dava licença, ele iria a Lisboa tratar de boca deste negócio, prometendo que Maluc seria perpetuamente seu amigo. Deu El Rei D. Sebastião por resposta que ele se contentava de que André Gaspar fosse a Lisboa a tratar da amizade entre os dois Reis, mas que lhe havia de dar Maluc a Tetuão, Larache e o Cabo Guer; e dado este se tratasse da amizade e não de outra maneira.” (PEDRO, [15–] 2004, p. 15)André Gaspar Corso era, como o nome indica, originário da Córsega, e a sua família estava estabelecida em Marrocos, onde detinha um estatuto de conselheiro de Mulai Abdelmalek e de Ahmed El-Mansur, tendo sido seu representante em negociações com os portugueses e espanhóis, nomeadamente, como adiante veremos, como responsável pela entrega do corpo de D. Sebastião às autoridades portuguesas de Ceuta no dia 10 de Dezembro de 1578.No dia 7 de Julho D. Sebastião chegou a Tânger com oito navios, onde permaneceu três dias, enquanto a armada aportou junto a Arzila. Em Tânger juntou-se-lhe Mohamed El-Moutaouakil e os cavaleiros que lhe eram fieis. No dia 11 o rei partiu para Arzila, enquanto 600 cavaleiros e arcabuzeiros de Tânger fizeram o mesmo trajecto por terra, acompanhados por igual número de cavaleiros de Moutaouakil.Em Arzila D. Sebastião revela o seu plano de não rumar por barco e tomar o porto de Larache, mas de seguir terra adentro e dar luta a Abdelmalek em campo aberto. A decisão provocou crispação e o desacordo dos seus conselheiros, que consideraram um erro táctico. Ao encaminhar o exército para ao interior do território, inviabilizava o apoio logístico e da artilharia naval, facto que os seus capitães mais experientes lhe fizeram notar. Para além disso, o exército português era na sua maioria constituído por gente mal preparada, e o facto de o rei não dar ouvidos aos mais experientes, tomar decisões de forma intempestiva e expor-se a perigos de forma gratuita, retiravam-lhe a confiança dos seus subalternos e baixava o moral das tropas.No dia 20 ou 21, depois de concluídas as operações de desembarque e montado o acampamento nos arredores de Arzila, D. Sebastião convoca o Conselho de Fidalgos, no qual expõe o seu plano _ seguir o caminho de Alcácer Quibir, enquanto a armada se dirigiria a Larache. Conquistada Alcácer Quibir, após derrotar o exército do Maluco, regressariam a Larache para tomar de assalto esse porto. Maria Augusta Lima da Cruz vê nesse Conselho de Fidalgos sinais de que alguns dos intervenientes já apoiavam o “plano” de D. Sebastião pensando no pós-Alcácer Quibir e nas suas pretensões ao trono de Portugal, caso de D. Francisco de Portugal, filho de D. Afonso de Portugal, Conde do Vimioso, que nunca fora adepto da expedição terrestre, e que mais tarde apoiaria a regência de D. António Prior do Crato. “Ao citarmos este caso, pretendemos apenas dar conta de como o terreno da investigação se vai tornando cada vez mais movediço, à medida que se aproxima a batalha de Alcácer Quibir.” (CRUZ, 2009, p. 329)A autora conclui o seu raciocínio: “Este plano é, tanto quanto sabemos, o último que gizou D. Sebastião. Mas se merece ser referido não é apenas por isso. É também por testemunhar de forma clara aquela que foi, afinal, sempre a sua forma de actuar. Concebeu e passou a papel projectos estrategicamente coerentes no plano teórico, mas, como este, desarticulados da experiência e do conhecimento das realidades.” (CRUZ, 2009, p. 330)Houve várias tentativas de demover D. Sebastião do seu plano insensato, inclusivamente alguns fidalgos colocaram a possibilidade de o prender ou retê-lo, mas nada travaria o rumo dos acontecimentos seguintes.As movimentações da armada e do exército português eram cuidadosamente espiadas por Abdelmalek, que mandou fortificar possíveis locais de ataque, como Cabo Guer ou Larache, e “mandou a Ran, seu Provedor Geral, renegado, que fizesse pôr na campanha as tendas e pavilhões, o que tudo se fez logo no dia seguinte” (PEDRO, [15–]2004, p. 18). Seria este Ran o “nosso” Reduão?No dia 29 de Julho é dada ordem de partida da armada para Larache, integrando 4.000 homens, 1.000 de cada terço do exército, á qual se juntaria o restante exército após a conquista de Alcácer Quibir e a derrota do exército de Mulai Abdelmalek, de acordo com o plano traçado por D. Sebastião.“A 29 de Julho, manhã cedo, fazia-se, enfim à ‘estrada de Alcácer Quibir’ a longa coluna que, além das tropas, integrava oficiais régios, pajens, criados e lacaios, escravos, carreteiros boieiros e, entre os engenheiros militares, Nicolau Frias e o italiano Filipe Terzi. Seguiam ainda muitas mulheres e crianças, das quais a única com direito a coche era o filho do Duque de Bragança. Juntavam-se ao cortejo, entre setecentos e mais de mil, carros e bestas muares do rei e dos fidalgos, carregando biscoito, cevada, pipas de água, munições, caixotes com dinheiro, roupas e, até, a capela do rei. Com exagero, dizem alguns cronistas, que eram mais os não combatentes que os combatentes.” (CRUZ, 2009, p. 332)Apenas dois dias passados da partida de Arzila, e devido às dificuldades de progressão no terreno sob o sol abrasador do Agosto, D. Sebastião reúne o Conselho de Fidalgos e decide voltar ao plano inicial, regressando a Arzila, embarcar de novo o exército e atacar Larache por mar. Envia um grupo de 40 cavaleiros a Arzila, comandados por Afonso Correia, para mandar suspender a partida da armada, mas era tarde demais. A armada já tinha zarpado para Larache. Este facto, aliado à chegada dos 500 espanhóis comandados pelo Capitão Aldana, determina que a penosa marcha do exército iria continuar, mas agora dirigindo-se directamente a Larache, o que obrigaria a atravessar em primeiro lugar o Oued El-Qantara ou Rio da Ponte (futuramente chamado Oued El-Makhazen ou Rio Mocazím) e posteriormente inflectir para Poente para atravessar o Oued Loukkos ou Rio Lucos.A generalidade das obras consultadas apresentam uma versão dos acontecimentos ocorridos entre os dias 29 de Julho e 4 de Agosto semelhantes, no seu essencial, mas com diferenças de detalhe, sendo a principal a da travessia do Rio da Ponte, futuro Oued El Makhazen, que se procura neste artigo abordar, se não numa perspectiva esclarecedora, pelo menos equacionando as várias versões, aliada à observação do local, que, conforme referido no início, contou com o apoio do Professor Mohamed Akhrif, Historiador da Cidade de Ksar El Kebir.Conforme vimos, a marcha do exército português sofre uma pausa pela hesitação de um possível regresso a Arzila para embarcar de novo rumo a Larache, acabando por seguir para Sul com o intuito de fazer o percurso até essa cidade por via terrestre. A marcha decorre de forma extremamente lenta, conforme refere Frederico Alcide de Oliveira:“A morosidade da marcha, devido ao calor, ao piso fragoso do terreno, à frenagem dos acompanhantes (com mulheres e crianças) agregados à hoste, e à dificuldade de tracção das bocas de fogo, era natural. Mas, excedendo estas razões, mesmo utilizando apenas a parte da manhã nos deslocamentos, a média de progressão diária desceu ao valor incrível de uma légua. Embora os lacetes do trajecto às vezes quasi duplicassem o percurso, excessiva bagagem, boiada debilitada e muita desorganização, influiram talvez mais na lentidão das jornadas do que tudo o resto.” (OLIVEIRA, 1988, p. 19)Conforme foi dito, não parecem relevantes as diferenças que se observam nas obras consultadas no que se refere com o caminho seguido até à travessia do Rio da Ponte, em termos de paragens, mas é relevante o facto de ter sido necessário atravessar esse rio, já que esteve na origem da própria Batalha de Alcácer Quibir e da não eventual conquista de Larache. Isto porque a travessia do Rio Lucus não se afigurou possível a jusante da sua confluência com o Rio da Ponte e o facto de o exército ter atravessado este último colocou-o demasiado perto do exército de Abdelmalek e precipitou o combate. Deste facto dá conta o autor referido anteriormente, citando Jerónimo de Mendonça:“A ideia era atingir Larache pelo sul do Lucos. Aceitava-se a hipótese de atravessá-lo e de que ‘passando o campo pudesse escusar vir às mãos com o inimigo’. Nesta convicção viveu a tropa, ignorante que sem batalha a posse da praça não dava os lucros políticos buscados. Mas naquele vau a água era profunda num leito lodoso de 80 m. e não poderia passar-se, mesmo em vazante, sem perder a artilharia. As informações dadas ao rei foram tais que ‘foi decidido buscar no outro dia outro vau mais acima’ onde não se sacrificassem as peças, mesmo dando batalha se necessário, para não perder prestígio.” (OLIVEIRA, 1988, p. 20)Impunha-se assim atravessar o Rio da Ponte, pela Ponte Romana ou num dos três locais onde a travessia se afigurava possível, fosse a jusante da ponte, no vau do Fortim ou no Vau de Omar, ou a montante, num outro vau não denominado.Convém aqui fazer uma referência à Ponte e ao Rio da Ponte, já que no local se encontram duas pontes, que o Professor Mohamed Akhrif designa como ponte velha e ponte nova. A ponte velha não está hoje no leito do rio, que corre uns metros mais a Sul e que, sendo velha, será certamente a Ponte Romana. Cerca de 150 metros a montante existe uma outra, a ponte nova, que o mesmo autor refere ser aquela por onde parte da cavalaria portuguesa atravessou o rio, que D. Sebastião mandou regressar, pela proximidade de cavaleiros inimigos, e que Abdelmalek mandou de seguida destruir, tal como se encontra hoje. Estes factos fazem concluir que à data da batalha a ponte velha já não estaria sobre o leito do Rio da Ponte, que terá sido desviado, e que as referências à Ponte Romana são as feitas à chamada ponte nova, sendo também esse motivo pelo qual a generalidade dos autores apenas referir a existência de uma ponte, incluindo Bernardo Rodrigues no seus Anais de Arzila. No entanto Frederico Alcide de Oliveira tem esta afirmação:“Em 1 de Agosto não se moveu o exército para descanso do gado; de 2 para 3 foi alojar-se por alturas de Ulad Ben Saíd, junto de uma pequena lagoa próximo da região das duas pontes vizinhas do sobreiral de Larache”, confirmando de facto a existência das duas pontes. (OLIVEIRA, 1988, p. 19)E confirma a afirmação do Professor Akhrif de que alguns cavaleiros, identificados como pertencentes ao contingente de Mohamed El-Moutaouakil El Negro, terão atravessado a ponte e regressado devido à presença de cavalaria inimiga:“Talvez o aparecimento daquelas forças tivesse levado D. Sebastião a alterar a primitiva ideia de passar sobre os arcos da ponte e procurar fazê-lo no vau acima dela. Tropa do El-Negro e alguns portugueses ainda a utilizaram, mas retrocederam tempo depois, a mando do Rei.” (OLIVEIRA, 1988, p. 20)Relativamente ao topónimo Oued El Qantara ou Rio da Ponte, esclareça-se que foi essa de facto a designação do rio até ao dia da batalha, designação largamente usada por Bernardo Rodrigues nas suas descrições sobre as razias portuguesas ao Campo de Alcácer Quibir, em que chama à ponte, Ponte de Alcácer. (RODRIGUES, [156-] 1915, obra citada)A designação Makhazen, origem do nome português Mocazím, tem por base o nome Makhanez, que significa cheiro a putrefacção, já que após a batalha o rio ficou pejado de cadáveres em decomposição que conferiam ao local um cheiro nauseabundo. Este topónimo não se coadunava com a grandeza do evento aí ocorrido para a Nação Marroquina, que o alterou para Makhazen, plural de Makhzen. Makhzen significa armazém e é também o nome dado ao Estado Marroquino, no sentido de ser o Armazém que recebe os bens dos cidadãos em tempos de abundância para os repartir pelos necessitados em tempos de carência.Outro esclarecimento a prestar é o de que o leito do Rio Makhazen foi alterado pelas obras de hidráulica ligadas à agricultura da planície onde ocorreu a batalha, sendo nessa altura desviado cerca de quatro quilómetros para Norte, o que explica alguma da confusão existente em relação ao local onde os acontecimentos ocorreram.Voltemos ao dia 3 de Agosto de 1578. Conforme referido, as fontes consultadas não são coincidentes sobre o local da travessia do Makhazen. Para Maria Augusta Lima Cruz e Luís Costa e Sousa deu-se cerca de um quilómetro a jusante da Ponte Romana, mas para Frederico Alcide de Oliveira ocorreu no vau acima da ponte. Segundo este último autor, os batedores de Abdelmalek pegaram fogo ao mato seco para dificultar a progressão do exército português, que o apagaram a cestos de terra.O exército segue então ao longo do Makhazen, “numa formação muito próxima da que irá tomar no dia da batalha. Todavia, aqui a carriagem, toda na direita, vinha protegida pela tropa num lado, e abrigada, pelo rio, no lado oposto.” (OLIVEIRA, 1988, p. 23)O exército começa então a sofrer ataques de cerca de 10.000 cavaleiros marroquinos, elementos avançados do exército de Abdelmalek, que acampara a Noroeste de Alcácer Quibir, a cerca de três quilómetros do local onde os portugueses iriam acampar. A ideia de D. Sebastião continuava a ser atravessar o Oued Loukkos e dirigir-se a Larache, e a existência de um pântano junto à actual aldeia de Douar Souaken davam pouco espaço de manobra na planície onde se encontravam. Repelido este primeiro ataque, os dois exércitos ficaram posicionados frente a frente, e assim se mantiveram durante duas horas sem que nenhum deles tomasse a iniciativa de atacar. Os marroquinos regressaram então ao seu acampamento e os portugueses criaram um acampamento fortificado na confluência do Makhazen com o Loukkos, no local da actual aldeia de Douar Skouna.Durante a noite, um novo Conselho de Fidalgos coloca a possibilidade de um ataque surpresa, uma encamisada, proposto por D. Duarte de Meneses, Capitão de Tânger.“O fronteiro, homem experimentado na guerra africana, sabia que o inimigo era vulnerável a ataque nocturnos. Para mais, sabia-se pelos poucos mouros que se haviam passado ao campo português, que no exército contrário reinava um clima de incerteza; o maluco vinha doente, e suspeitava-se de ser peçonha. Havia sido com grande probabilidade, vítima de envenenamento.” (SOUSA, 2009, p. 60)Mas D. Sebastião decidiu travar a batalha no dia seguinte e nessa noite mandou abater parte dos animais de carga para distribuir a carne pelos soldados e passou o resto da noite a visitar as tropas para aumentar o moral.A constituição dos exércitos português e marroquino apresenta diferenças conforme os autores:David Lopes estima as forças portuguesas em 17.000 homens de infantaria e cavalaria e 36 peças de artilharia. “No campo inimigo haveria cerca de 40.000 homens de cavalaria e 8 a 9 mil de infantaria, sem contar uma maior chusma de irregulares, com 26 peças de artilharia”. (LOPES, [1937] 1989, p. 80)Segundo Laurent Henninger, as forças portuguesas compunham-se de 14.000 soldados de infantaria e 2.000 de cavalaria, enquanto o exército de Marrocos dispunha de 20.000 soldados de infantaria e 41.000 cavaleiros.Luís Costa e Sousa é bastante específico em relação à constituição dos dois exércitos:“Para a expedição de 1578 a Marrocos foi reunida uma frota considerável que contava cerca de 750 navios, entre os quais 5 galeões e cerca de outros 50 bem armados”, 20.000 homens e os necessários mantimentos (SOUSA, 2009, p. 45). Os soldados recrutados através das ordenanças eram na sua maioria do Sul do país, supostamente num total de 12.000 homens, mas que “no final apenas foi possível levantar 9.000” (SOUSA, 2009, p. 65). Os mercenários eram cerca de 2.800 alemães e valões, comandados pelo coronel Martim de Borgonha, entre 1.600 e 2.200 castelhanos, comandados por D. Alonso de Aguilar, e 600 italianos, comandados pelo coronel Thomas Stukeley. Esta força foi reforçada com veteranos das guarnições de Tânger e Arzila, comandados pelo capitão Alexandre Moreira, com os 500 castelhanos do capitão Aldana e com 250 cavaleiros e 400 atiradores do sultão deposto Mulay Mohamed. “A todos estes soldados mercenários e recrutas das ordenanças, juntou-se aquilo que se pode considerar a nata do exército, entre 600 e 1.400 fidalgos voluntários e veteranos dos teatros de operações de todo o império, e em conjunto com os veteranos contratados constituíam a componente de choque do exército português”. O seu comandante era o coronel Cristóvão de Távora (SOUSA, 2009, p. 65).Na vanguarda do exército ia a artilharia e a elite da infantaria, mercenários, aventureiros e veteranos. Pelos lados, as mangas de arcabuzaria. A segunda linha do exército, chamada batalha, comandada pelo coronel Vasco da Silveira, era constituída pela gente bisonha, os soldados com menos treino e de menor confiança. Atrás vinha a carriagem, “500 carros, 100 com a alimentação dos soldados que constituía de ‘biscoito’, 200 com cevada, pólvora e munições, 40 com outras tantas pipas de água, 5 com o dinheiro dos soldos para os soldados, e os restantes distribuídos pelos terços.” (SOUSA, 2009, p. 67)A rectaguarda era constituída pelos soldados recrutados no Algarve, posicionados na ala esquerda, comandados por Francisco de Távora, e pelos do Alentejo, na direita, comandados por D. Miguel de Noronha, e, entre estes, os não-combatentes. A rectaguarda era reforçada com mosqueteiros e alguma artilharia ligeira. As duas alas do exército eram ocupadas pela cavalaria, metade da qual pesada, ou seja, cavalos encobertados de couraças. A ala esquerda era comandada por D. Sebastião e a direita pelo Duque de Aveiro. O mestre de campo era D. Duarte de Meneses.O exército marroquino dispunha de 24 peças de artilharia, camufladas no cimo de uma colina. A infantaria ocupava o centro do exército, num total de 15.000 a 20.000 homens. “Na frente, encontravam-se os contingentes em quem o xerife menos confiava, na direita 3.000 atiradores andaluses e 3.500 ou 4.000 atiradores berberes pelo lado esquerdo” e os irregulares do exército otomano, comandados pelo alcaide Guifer. “Logo atrás estavam as tropas regulares de maior valor, cerca de 4.000 ‘azuagos’ comandados pelo alcaide Hassan (…) mas sobretudo 1.000 turcos de Argel e 2.5000 ‘elches’ atiradores, aqueles em que Abdelmalik depositava maior confiança”, comandados por Mohamed Tabá. (SOUSA, 2009, p. 70)Uma nota sobre estas designações: os andaluses (preferencialmente chamados andalusinos neste artigo) eram mouros expulsos da Península, os gazulas eram berberes do Anti-Atlas, os azap eram soldados do exército turco, os azuagos eram mercenários do Oeste da Argélia e os elches eram cristãos renegados, convertidos ao Islão.No centro do exército estava o sultão e a sua guarda pessoal, formada por turcos e renegados, comandados por Ali Mussa, e à sua frente a fanfarra, destinada a incentivar as tropas e atemorizar o inimigo. Na rectaguarda vinham as bagagens e tropas irregulares de pouco valor.Nas alas vinham entre 10.000 e 20.000 cavaleiros, fundamentais na táctica otomana para envolver o exército inimigo. A ala direita ou mão direita, a mais prestigiada, era comandada por Mulay Ahmed, irmão de Abdelmalek e futuro sultão de cognome Almançor, e a esquerda comandada por Mohamed Zarco. Na frente da vanguarda vinham os espahis, atiradores a cavalo, em número de 1.000 a 6.000, comandados por Ahmed Lataba. (SOUSA, 2009, p. 73)Contas finais de Luís Costa e Sousa, e considerando também o resultado da batalha, em termos de prisioneiros e mortos, as forças em presença dão a vantagem aos marroquinos na proporção de cerca de 3 para 1, ou seja, 61.000 homens para apenas 24.000 dos de Portugal.Bernard Lugan, citando Berthier, contabiliza o exército português em 16.350 combatentes e o exército marroquino em cerca de 50.000 homens. (LUGAN, 2011, pp. 158-159)Frederico Alcide de Oliveira contabiliza o exército português em 16.500 combatentes (11.200 portugueses, 1.600 espanhóis, 600 italianos, 3.000 alemães e 600 mouros), a que acrescenta 8.500 não combatentes (Burocratas, pioneiros, carrieiros, boieiros, pajens, criados e lacaios, seguidores e militares desarmados), num total de 25.000 pessoas. (OLIVEIRA, 1988, p.16)Alcácer Quibir foi mais do que um confronto de tropas. Foi um confronto de tácticas, que nesta época, europeus e muçulmanos aperfeiçoavam, adaptando-se às novas realidades que a generalização das armas de fogo obrigava.O exército marroquino do período Sádida era fortemente influenciado pelo modelo otomano, se bem que com algumas diferenças. A sua principal característica reside na formação luada ou em crescente, com grande preponderância da cavalaria nas alas para envolver o exército inimigo e um núcleo central de infantaria. Outra característica era a existência de um núcleo de “tropas permanentes com carácter regular” com “larga experiência militar (…) designados por mazagania, estes soldados veteranos recebiam soldo e estavam directamente dependentes do sultão. Estavam equipados com armas mais modernas, que tanto podiam incluir peças de artilharia de bronze – as mais reputadas da época – como arcabuzes cujo calibre era superior ao dos portugueses”. Eram sobretudo andalusinos, elches ou tropas mercenárias do Atlas e da Argélia. Entre os andalusinos e os elches ou renegados estavam muitos portugueses. (SOUSA, 2009, p. 39)O exército português adoptava a formação em quadrado, munindo a infantaria de picas, longas lanças de cerca de 5 metros e de arcabuzes e mosquetes, com descargas de fogo controladas. Os soldados eram recrutados e organizados em companhias através das ordenanças, recrutamento obrigatório dos homens com idades entre 10 e 60 anos, que se deveriam exercitar todas as semanas, domingos e dias santos. A cavalaria vai perdendo o seu caracter de tropa de choque frontal, para adquirir um papel de protecção das alas das companhias de infantaria.O termo mazagania não é claro nas fontes mais antigas. Frei João de Sousa, citando Damião de Góis (SOUSA, [1830] 1981, pág. 122-123), define a Mazagania apenas como “Soldados pagos (…) homens que pertencem ao Erário”. Já David Lopes (LOPES, 1940, p. 256) utiliza os termos Marzagani, Marzagania ou Mazagania, referindo-os a “soldados de cavalaria”, também citando Damião de Góis e Pierre de Cénival.A descrição da batalha em si é semelhante no essencial nos textos consultados, apesar de existirem muitos aspectos divergentes, pelo que aqui apenas se descrevem os factos mais relevantes e consensuais, sobretudo com base na obra de Luís Costa e Sousa referenciada na bibliografia.Às 9.00 horas o exército pôs-se em marcha em direcção ao acampamento de Abdelmalek, seguindo ao longo do leito seco de um afluente do Oued Loukkos, o Oued Rur, que lhe protegia o flanco direito de qualquer ataque vindo desse lado. Pouco depois desviou-se para a esquerda, posicionando-se em campo aberto. Abdelmalek, acampado a Sul do Oued Rur, atravessou o rio e posicionou o seu exército frente ao português, e colocou a sua artilharia camuflada numa colina.Miguel Leitão de Andrada, um nobre Cavaleiro da Ordem de Cristo sobrevivente da batalha, integrava o terço dos aventureiros na vanguarda do exército. Conta que formavam o seu terço “1.400 aventureiros de pé, pouco mais ou menos, porém guarnecidos com a arcabuzaria de Tânger e Ceuta, destríssima, e excelente”. Acrescenta que “o campo dos Mouros vinha como meia lua, quando é quase nova, todo de cavalaria que parecia inumerável com três fileiras de escopeteiros diante”. (ANDRADA, [1629] 1993, pp. 128-129)Pouco passava das 10.00 horas a batalha começou com os disparos da artilharia marroquina, que estava equipada com canhões de grande porte, à maneira turca, como o célebre Maimouna, ou Abençoado, hoje em exibição no museu militar da cidade de Fez. Enquanto a artilharia flagelava a hoste portuguesa, a cavalaria moura atacava a rectaguarda. D. Sebastião ordena que se posicione a artilharia portuguesa e dirige-se à rectaguarda para dar ânimo às tropas. Reina a confusão nas hostes portuguesas. “O ar fica obscurecido pela poeira dos cavalos e o fumo dos canhões.” (HENNINGUER, 2004, obra citada)A vanguarda portuguesa, composta sobretudo por piqueiros, começa a ser flagelada por arcabuzes e mosquetes, impacientando-se pela demora da ordem Santiago! para avançar. Finalmente a ordem chega e a elite do exército português avança decidida pelo centro do terreno, colocando a vanguarda do exército de Abdelmalek em debandada e procurando apoderar-se da artilharia inimiga. Ao mesmo tempo a cavalaria acobertada portuguesa põe em fuga a mão-direita comandada por Mulay Ahmed. Abdelmalek tenta montar o seu cavalo, mas morre antes de o conseguir. (SOUSA, 2009, p. 95)Andrada relata assim o início das hostilidades:“Dado o sinal da batalha remetemos aos inimigos, que também se vinham chegando a nós cingindo sempre o nosso campo, que parecia muito pequeno, ou nada em sua comparação, assim por eles serem muitos, e largos, como nós poucos, e juntos. E com tal fúria com as picas baixas, os investimos, que os arrancamos, e os fizemos fugir, (…) com muito dano, e estrago que receberam da nossa arcabuzaria, que como disse era destríssima, e tirada dos lugares nossos de África. Aclamando: vitória, vitória, vitória, e logo acrescentando, vitória, vitória, o Maluco é morto. Com a alegria, e alvoroço, que podeis cuidar, indo com esta mesma fúria, e vitória, até quase à artilharia dos Mouros, vendo ir nossos inimigos, uns sobre outros fugindo desordenadamente, e morto o Rei nosso inimigo”. (ANDRADA, [1629] 1993, p. 129)“O esquadrão comandado por D. Sebastião acometera com tal ímpeto a ala dos cavaleiros de Mulei Ahmed que centenas deles, incluindo Mulei Ahmed, correram a refugiar-se em Alcácer Quibir. Teria ocorrido, nessa altura, a morte de Mulei Maluco, dizem uns que num último esforço para montar a cavalo e conter a debandada dos seus, dizem outros que atingido por um tiro. Segundo a tradição, antes de morrer, Mulei Maluco pôs o dedo indicador sobre a boca fechada, recomendando segredo. Junto da liteira do falecido, Reduão, o renegado portugês, continuou a dar instruções ao exército, fingindo que lhe eram transmitidas por Mulei Maluco. A verdade é que se considera que a ocultação da morte do sultão teria tido um papel decisivo no curso da batalha”. (CRUZ, 2009, p. 337)Ao meio-dia, Reduan, o renegado português, lugar-tenente de Abdelmalek, encobre a morte do seu amo (CRUZ, 2009, p. 337) e percebe que chegou o momento de virar a sorte a seu favor. Reúne as suas tropas, repele a cavalaria de D. Sebastião, que recua, e cerca a vanguarda do exército português, que é parcialmente dizimada. A vanguarda do exército de Portugal retira em pânico e entra em choque com a segunda linha. Queiroz Velloso cita o historiador marroquino Alofrani, que “diz apenas que o falecimento e Abd Almálique foi ocultado pelo seu camarista, o renegado português Reduão, que nunca deixou de transmitir fingidas instruções do soberano”. (VELLOSO, 1935, p. 382)Eloufrani descreve assim na sua obra Histoire de la Dynastie Saadienne au Maroc (1511-1670) o episódio que envolve o português Reduan:“No próprio momento do primeiro choque, quando o combate se iniciava, que a luta começava e que o fogo da guerra se acendia, Abdelmalek que estava doente morreu na sua liteira. Mas na sua admirável previdência, Deus quis que a morte do sultão fosse ignorada por todos à excepção do seu camareiro, Redhouan o renegado. Este ocultou a morte e foi de tenda em tenda dizendo: ‘O sultão ordena a uma tal pessoa que se dirija a um tal lugar, a uma tal pessoa que fique junto da bandeira, a uma tal pessoa que se coloca à frente, a uma tal pessoa que se coloque atrás, etc.’O comentador da Zahra dá-nos a seguinte narrativa: Quando Abdelmalek morreu, o escudeiro encarregado da sua liteira não deu a conhecer a morte do seu soberano; continuou a fazer avançar a hoste na direcção do inimigo gritando aos soldados: ‘O sultão ordena-vos de marchar em frente contra os infiéis’. Apenas Elmansour conheceu igualmente a triste notícia, mas também a escondeu.” (ELOUFRANI, 1889, p. 134)Miguel Leitão de Andrada também se refere a Reduan, chamando-lhe “cativo Cristão”:“Porque parece coisa ridícula crer, acertar logo morrer no ponto quem começou a peleja, porque ainda que na sua mão estivera, ou partir-se dali, e dizer ao cativo Cristão, que tinha consigo, tivesse sua partida encoberta”. (ANDRADA, [1629] 1993, p. 129)O inesperado acontece então, já que a vanguarda do exército português adianta-se em demasia, perdendo o contacto com a segunda linha, e ficando exposta à possibilidade de ser envolvida pela cavalaria marroquina. Os veteranos abandonam os piques e começa a luta corpo-a-corpo. É então dada ordem de retirada, o que provoca o caos total. Muitos veteranos ficam parados, outros recuam atónitos, instala-se a confusão.“E indo assim com esta alegria aclamando a vitória: Quando ouvimos aquele infausto, e para sempre lamentável, ter, ter, que alguma fúria infernal deveu de dar, (…) que daria a tal voz por lhe parecer que nos tínhamos adiantado muito do nosso campo, ou contentando-se de havermos quase ganha a artilharia dos inimigos, e com ela duas bandeiras.” (ANDRADA, [1629] 1993, p. 130)Andrada comenta o caos que a ordem de retirada, a “maldita voz, ter, ter“, provocou:“Vendo os Mouros que de nós arrancados iam fugindo desbaratados daquela banda: dando-lhe nós tempo aos mesmos que iam fugindo de poder ver nossa desordem em que ficamos com aquela maldita voz (…) fizeram vir outros doutras partes, e tornaram sobre nós com muitas rociadas de sua escopetaria, e os de cavalo com muitas entradas a nós, que pelejamos a pé quedo recebendo quanto dano podeis imaginar”. (ANDRADA, [1629] 1993, pp. 133-134)A descrição de Andrada não deixa de se referir à carnificina que a vanguarda do exército português sofreu:“Pelo que muitos, que eu vi, se iam como leões raivosos meter por eles desesperados, fazendo feitos também desesperados, e proezas que não ouso contar-vos. De maneira que de uns, e outros, ficou aquilo por ali até onde chegamos coberto de mortos, homens, e cavalos, em tanto, que dificultosamente se podia por ali entrar a cavalo, depois: e tanto o sangue que em partes me dava quase pelo artelho. E tudo gritos, e lamentos, mortos em cima de vivos, e vivos de mortos, todos feitos pedaços. Cristãos, e Mouros abraçados, chorando e morrendo, uns sobre a artilharia, outros braços, e tripas arrastando, debaixo de cavalos, e em cima espedaçados, e tudo muito mais do que já vos posso dizer, porque aperta comigo a dor, na lembrança do que passei.” (ANDRADA, [1629] 1993, p. 134)Mas se podemos atribuir uma importância decisiva no desfecho da batalha ao facto de Reduan ter ocultado a morte do Sultão, fingindo transmitir as suas ordens às tropas no terreno, a verdade é que a reviravolta militar muito se deveu também à acção do Alcaide de Alcácer Quibir, Ibrahim Soufiane, que reorganizou a tropa de elite marroquina, sobretudo os elches ou renegados, e comandou o contra-ataque vitorioso (SOUSA, 2009, p. 98). Sebastian de Mesa, na sua Jornada de Africa del Rey D. Sebastian, y union del Reyno de Portugal a la Corona de Castilla, escrita no século XVII, refere que Ibrahim Soufiane carregou com a cavalaria sobre a do Rei, recuperando a artilharia que os portugueses tinham inicialmente tomado aos mouros, provocando a desordem e a debandada nas hostes de D. Sebastião. (MESA, 1630, p. 74)A cavalaria marroquina envolve o exército português como uma tenaz, fazendo com que os poucos cavaleiros de D. Sebastião vão acudir a rectaguarda, deixando o centro do exército à mercê da torrente que sobre ele se abate. Às 4.00 horas a derrota portuguesa é total em todas as frentes, e D. Sebastião reúne um grupo de sobreviventes para uma derradeira e inútil resposta.“Para agravar a situação, explodiram as reservas de pólvora transportadas pela carriagem portuguesa, incidente situado, sem grande precisão, ‘logo no princípio na ala esquerda’, no momento em que ‘a vitória começa a inclinar-se da parte dos mouros’. O fogo, propagando-se de barril em barril e de carro em carro, ‘sem se saber se foi acaso se por outra via’, originaria uma deflagração medonha, ‘vendo-se vir voar pelo ar, não somente homens, uns inteiros outros despedaçados, mas da mesma maneira os carros, bois e bestas que os levavam’.” (CRUZ, 2009, p. 338, citando a Crónica do Xarife Mulei Mahamet e D’El-Rei D. Sebastião)O rei foge com um pequeno grupo de fidalgos, mas é cercado. Recusando a rendição, acaba por ser morto com um golpe de espada na cabeça. “D. Nuno de Mascarenhas presenciou o final do seu rei.” D. Duarte de Meneses e D. Teodósio “Não quiseram acreditar ao ouvi-lo dizer que vira morrer o rei, já no fim da batalha, e como!” (SOUSA, 2009, p. 111)O autor da Jornada de Africa refere que “durou a batalha desde as onze da manhã, até às quatro da tarde, que foi quando se reconheceram os Mouros como vitoriosos”. (MESA, 1630, p. 87)Maria Augusta Lima Cruz não confirma que alguém tenha presenciado a morte de D. Sebastião e escreve a propósito do comportamento do Rei na batalha:“Na variedade das visões e das versões, há, ainda assim, pelo menos um ponto de conformidade ao longo da batalha, D. Sebastião ter-se-ia comportado mais como um soldado do que como um comandante.” (CRUZ, 2009, p. 339)A versão de Eloufrani é diferente, já que refere que os portugueses ficaram cercados sem hipótese de fuga e D. Sebastião morreu afogado no rio. O facto de a ponte sobre o Oued El Makhazin ter sido destruída pelos marroquinos teve um papel decisivo, ao inviabilizar a retirada do que restava do exército português. (ELOUFRANI, 1889, p. 135)O Homem Africano afirma ter sido testemunha presencial da morte de D. Sebastião:“E com a cimitarra que levava nua deu um grande golpe na cabeça do Rei (despojado já neste tempo de todas as suas armas) o qual pouco menos que morto caiu em terra; e desesperados ainda que vivesse, dando-lhe repetidos golpes, lhe tiraram cruelmente a vida a fim de que ninguém o tivesse vivo, ficando vivos e testemunhas oculares deste infeliz desastre alguns dos que o tinham seguido e acompanhado (…) este foi o desastrado e lastimoso fim que teve o nosso infeliz monarca D. Sebastião”. (PEDRO, [15–] 2004, p. 33)Ahmed Al-Mansour Ad-Dahabi ou Almançor, irmão de Abdelmalek, é aclamado sultão nessa dia, e o poder do renegado português Reduan fica patente num episódio ocorrido nessa altura. Almançor teria hesitado em assumir o cargo, mostrando-se alheado dos acontecimentos, sendo chamado à razão de forma drástica pelo renegado português: “Estava Mulay Hamet bem alheio de ser senhor de Africa, pelo pouco que foi tido e estimado em vida do irmão; testemunha Reduan Elche, Renegado Português, que lhe deu uma bofetada, de que nunca se fez caso, nem dela se fez repreensão”. (MESA, 1630, p. 88)O corpo de D. Sebastião foi identificado nessa noite perante o novo sultão Almançor por Sebastião Resende, seu moço de câmara, Miguel Leitão de Andrada, D. Duarte de Meneses, D. Teodósio, D. Miguel de Noronha, Belchior Amaral e D. Duarte Castelo Branco:“O novo xerife saiu da tenda, ao mesmo tempo que os portugueses, estupefactos, viram o turco que trazia a azémola deixar cair D. Sebastião aos pés de Almançor. O corpo, coberto de sangue, suor e terra, trazia uma profunda ferida na testa acima da sobrancelha (…) D. Duarte de Meneses não conseguiu conter as lágrimas, e enquanto chorava convulsivamente o Almançor ordenou que levassem o cadáver para junto dos restantes prisioneiros.” (SOUSA, 2009, p. 112)D. Duarte de Meneses, chorando, indignou-se pela forma como Almançor tratou o corpo do rei, ao que o sultão respondeu:“Recompõe-te, porque para o teu rei já não há remédio; deves saber que é a usança de guerra perderem uns para ganharem outros. E também nós perdemos o melhor rei que jamais haveremos de ter.” (SOUSA, 2009, p. 112)Esta versão de desprezo no tratamento do corpo do Rei D. Sebastião é negada pelos marroquinos, que afirmam tê-lo tratado com todas as honras, conforme testemunho do Professor Mohamed Akhrif. Foi enterrado na casa do Alcaide de Alcácer Quibir, Ibrahim Soufiane, onde permaneceu durante quatro meses e uma semana à guarda de um fidalgo português, Belchior do Amaral, conforme relato da Jornada de África:“Daquilo que tratou deu conta D. Duarte àqueles Cavaleiros, e acordaram que voltassem a falar com o Xerife, para pedir, que mandasse por algum Fidalgo em guarda daquele corpo Real, porque não se pusesse outro em seu lugar: fê-lo o Bárbaro com muita liberalidade; e assim nomearam Belchior do Amaral, que o guardou, e levou a Alcácer, onde nas casas de Ibrahim Soufiane, Alcaide daquela Vila se sepultou, ajudando a ele um Tudesco: cobriram a sepultura de cal, e areia, porque de água serviam as lágrimas que derramava, e para final pôs algumas pedras, e tijolos.” (MESA, 1630, p. 94)Numa carta escrita por um médico Judeu ao seu irmão, datada de forma imprecisa, como escrita “após o dia 16 de Agosto de 1578”, pode ler-se que “El rei de Portugal morreu de duas feridas que tinha na cabeça e uma num braço. Está en Alcácer, metido numa caixa com cal.” (CASTRIES, 1918, p. 319)No contraforte da antiga casa do Alcaide Ibrahim Soufiani existe uma placa escrita em Árabe que reza o seguinte:“Cidade de Alcácer Quibir primeira sepultura do Rei de Portugal Dom SebastiãoNeste lugar situado frente à Grande Mesquita no Bairro da Casbá de Alcácer Quibir, que foi casa do Governador da cidade Ibrahim Soufiani, no tempo da Batalha de Alcácer Quibir ou de Oued El-Makhazin, foi sepultado pela primeiira vez o corpo do Rei de Portugal, onde permaneceu entre 04/08/1578 e 10/12/1578 até ser entregue ao Rei de Espanha Filipe II, conforme registo oficial, a seu pedido e sem contrapartidas, sendo o transporte realizado em nome do Rei de Marrocos pelo português André Gaspar Corço. Este lugar é tembém conhecido pelo nome hotel da pérola“.António de Saldanha, na Crónica de Almançor, Sultão de Marrocos refere-se a Ibrahim Soufiani de forma elogioso relativamente à sua personalidade e forma de tratamento dos cristãos:“E fez alcaide destes moços Jaudar, e de sua casa o alcaide Brahen Sufiane com o título de alcaide dos alcaides, homem que foi benemérito de todos os lugares por sua boa natureza e foi grande amigo dos fidalgos e geralmente de todos os cristãos.” (SALDANHA, 1997, p. 27)No rescaldo da batalha faz-se a concentração dos milhares de prisioneiros e a morte daqueles que não aceitam a rendição. Estima-se que terão morrido 8.000 portugueses e 16.000 feitos prisioneiros. Menos de uma centena conseguiria fugir. Do lado marroquino terão morrido 3.000 homens. Entre os mortos contam-se os três reis em presença no campo de batalha, daí um dos vários nomes pelos quais é conhecida _ Batalha de Alcácer Quibir, Batalha de Oued El Makhazen e Batalha dos Três Reis:Abdelmalek, que sucumbiu à sua enfermidade, Mulai Mohamed, afogado no Oued Loukkos, pelo qual tentou fugir, mas não sabia nadar. O seu corpo foi esfolado, as entranhas cheias com palha e exibido nas principais cidades de Marrocos, e D. Sebastião de Portugal. Participou também nela o então aclamado Rei de Marrocos, Ahmed El-Mansour, o Vitorioso.Muitos do prisioneiros foram levados para Fez onde foram interrogados, tendo servido de interprete um renegado português, chamado Alcaide Tabibe. (VELLOSO, 1935, p. 398)Miguel Leitão de Andrada foi um deles. Ferido na cabeça e na perna esquerda foi capturado e ficou três dias no campo de batalha. Posteriormente foi levado para Alcácer Quibir, onde foi entregue a um mouro residente em Fez que o levou para essa cidade e o vendeu a um outro mouro nobre e à sua irmã. Por não aceitar a conversão foi posto a ferros e posteriormente sujeito a trabalhos forçados. Conseguiria fugir, refugiando-se inicialmente na judiaria de Fez, de onde organizou uma fuga em direcção a Norte até atingir Melilha, cidade na posse dos espanhóis. Dois anos depois da batalha conseguiu chegar a Portugal. (ANDRADA, [1629] 1993, pp. 137-141 e 166-193)Os sobreviventes da batalha com idade inferior a 15 anos foram logo aproveitados pelos marroquinos:“Também determinou logo concluir o resgate dos oitenta fidalgos e buscar todos os moços que se acharam da batalha d’el-rei D. Sebastião de quinze anos para baixo, e os mandou circuncisar e vestir à mourisca e ordenando-lhes muitas vantagens deixou em Fez trezentos moços e levou consigo a demasia para Marrocos (Marraquexe) para o servirem das portas adentro e confiar deles sua pessoa.” (SALDANHA, 1997, p. 27)
A Bad Dekaken em Fès-JedidUma descrição que contradiz aspectos das versões já referidas sobre a permanência do corpo de D. Sebastião em Alcácer Quibir e seu resgate encontra-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e descreve a ida de Frei Roque do Espírito Santo, acompanhado de outros três religiosos, Frei Diogo Ledo, Frei Francisco da Costa e Frei Inácio Tavares de Jesus, acompanhados por um cavaleiro da Praça de Ceuta chamado Brás Alemão, “por ser muito prático no País e bastante destro na Língua Arábica”.O grupo levava uma carta de El Rei D. Henrique para o Xarife, que incluía vários pedidos, entre os quais resgatar o “corpo defunto de El Rei D. Sebastião que está em Alcácer Quibir”. Partiram de Ceuta para Tetuão a 8 de Setembro, e de Tetuão para Fez a 18 de Outubro. Foram recebidos pelo Xarife, que os informou que “quanto ao corpo de El Rei D. Sebastião, ele de boa vontade livremente o dava, assim por lho pedir El Rei D. Henrique de quem desejava ser amigo como porque lhe defendia a sua Lei não levar dinheiro por corpos mortos”.Frei Roque partiu para Alcácer Quibir “e como na forma das ordens que do Xarife levava para o Alcaide daquela vila lhe fosse entregue o corpo do sobredito Rei defunto, o tirou logo do indecente depósito em que estava; e passando-o a um caixão de veludo preto, o fechou com duas chaves, e cobriu com hum pano do mesmo, o que tudo para maior decência daquele fúnebre aparato levara já de Ceuta prevenido. Não é crível nem é possível que possamos explicar bem o extraordinário sentimento, e excessiva dor de que se viu logo ocupado o Coração deste grande Religioso, quando chegou a ver a casa, e indecente Lugar em que viu depositado o Corpo de Seu Rei, e Senhor natural frio desfigurado, e defunto.” (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Manuscrito da Livraria nº 565, fl. 29, cap. 7)O corpo de D. Sebastião seria entregue às autoridades portuguesas de Ceuta no dia 10 de Dezembro de 1578, onde permaneceu na Igreja do Mosteiro da Santíssima Trindade, conforme auto existente no Arquivo Geral de Simancas, Valladolid. No ano de 1582 foi trasladado para o Transepto da Igreja dos Jerónimos em Lisboa e, em 1682, foi colocado no seu actual jazigo, na Capela Direita do Transepto da mesma igreja, onde hoje se encontra, no qual foi colocada uma lápide em latim, cuja tradução é a seguinte:“Se é vera a fama, aqui jaz Sebastião,Vida nas plagas de África ceifada.Não duvideis de que ele é vivo, não!A morte deu-lhe vida ilimitada”Auto de entrega do corpo de D. Sebastião às autoridades portuguesas de Ceuta, cujo original se encontra no Archivo General de Simancas, Secção Estado, Leg. 396, que reza o seguinte:“Nós Dom Leonis Pereira Capitão e governador de Ceuta, frei Roque, e Dom Rodrigo de Meneses que abaixo firmamos nossos nomes damos fé e verdadeiro testemunho que André Gaspar Corço nos entregou o corpo del Rei Dom Sebastião Nosso Senhor (que Deus haja) quarta feira dez de dezembro deste presente ano de mil e quinhentos e setenta e oito, na porta desta Cidade ás dez horas da manhã, dizendo as palavras seguintes na dita entrega. Eu André Gaspar Corço, Entrego o Corpo da Majestade del Rei Dom Sebastião Rei que foi de Portugal que Deus haja, ao muito Reverendo Padre Frei Roque do Espírito Santo, e aos Senhores Dom Leonis Pereira Capitão e governador desta Cidade de Ceuta, e a Dom Rodrigo de Meneses por mandado del Rei Mulei Hamete, o qual me havia concedido o dito Real Corpo para que o apresentasse à Católica Majestade Filipe II de Espanha com tanta Liberalidade com quanta afirmou por juramento em sua lei que fizera o mesmo se o tivera vivo em prisão. E chegando uma carta da Católica majestade, e outra da majestade del Rei de Portugal em que lhe pediam o quisesse resgatar para o levar a Portugal me mandou que o não levasse a Castela, como primeiro me havia mandado, se não que eu o trouxesse a esta fronteira de Ceuta e nela o entregasse solene mente (como ao presente o entrego) tomando por testemunho que o dito Muley Hamete concedeu e apresentou livre e graciosamente sem nenhum interesse este real Corpo á Majestade del Rei de Portugal, a Intercessão e petição da Majestade Católica del Rei Dom Filipe o qual depois de ser entregue, se trouxe com muita solenidade ao Mosteiro da Santíssima Trindade onde agora está: feita em Ceuta a dez de Dezembro de M.D.LXXVIIIRubricam: Dom Leonis Pereira, Dom Rodrigo de Meneses, Frei Roque do Espirito SantoNos que abaixo e atras assinamos viemos acompanhando o dito real corpo e somos presentes na entrega dele e como testemunhas assinamos no mesmo dia e a mando desta.Rubricam: Dom Miguel de Noronha, Dom Duarte de Castelo Branco, Luís Cesar, Dom Jorge de Meneses “Felipe II sempre conseguiu a sua União Ibérica, que durou 60 anos. Com ela criou-se o Mito do Sebastianismo, nascido da esperança de um regresso de D. Sebastião para devolver o país aos portugueses. O mito iria perdurar na história e ganhar força nos tempos mais difíceis da vida de Portugal, sob a forma da crença na vinda de um salvador, como nos anos que antecederam a restauração de 1640 ou durante as invasões francesas. É uma ajuda para aceitar as dificuldades e viver com elas.“O Sebastianismo traduz a nostalgia de uma idade de ouro que passara e o sentimento de humilhação nacional de um povo ocupado pelo estrangeiro, bem como a espera messiânica duma comunidade incapaz de resolver os seus destinos.” (SECS, 1978, obra citada)Das praças marroquinas que detinha à data da batalha, Portugal só voltaria a recuperar Tânger e Mazagão, já que Ceuta ficaria até aos nossos dias nas mãos de Espanha, pelo facto de grande parte da sua população ter sido substituída por gente da Andaluzia, no seguimento de um cerco imposto por Marrocos.Vinte anos depois da batalha surgiu em Veneza um suposto D. Sebastião, figura que foi encorajada pelos exilados portugueses em Itália com o intuito de destabilizar a situação política em Portugal com um pretenso “regresso” do Rei. O indivíduo esteve preso em Veneza, Florença e Nápoles, reafirmando a sua pretensa identidade, corroborada por dois sinais evidentes que tinha no corpo, a falta de um dente queixal e o facto de ter uma perna mais curta do que a outra, mas acabou por ser desmascarado pela sua própria sogra. Afinal era um calabrês de nome Marco Túlio Catizone, que no final foi levado para Espanha e executado em Sanlúcar de Barrameda. (AZZAM, 2021, obra citada)Ahmed El Mansur anunciou aos estados muçulmanos vizinhos de Marrocos esta vitória sobre o exército português e vários países enviaram embaixadas a Fez com presentes ao vencedor. Curiosamente, segundo Eloufrani, a segunda delegação a chegar foi a de Portugal e carregada de oferendas:“Embaixadores de todos os países vieram felicitar Elmansour pela vitória que Deus vinha de trazer pelas suas mãos. A primeira embaixada que chegou foi a do pacha de Argel, depois veio a do rei de Portugal, Henrique, que tinha tomado a direcção dos destinos dos cristãos, depois da morte do seu sobrinho Sebastião que perecera em Ouadi Elmakhazin. Esta última embaixada trouxe presentes consideráveis que, no dia da entrada em Fez, foram carregados em carroças e carros, coisas que causaram um profundo espanto no seio dos habitantes da cidade. Nesses presentes figuravam 300.000 ducados de prata em moeda e uma quantidade inumerável de vasos e objectos preciosos”. (ELOUFRANI, 1889, pp. 145-146)A versão de António de Saldanha não é coincidente com a de Eloufrani, já que esclarece que a embaixada de Portugal tinha por principal missão resgatar 80 fidalgos que se encontravam já cortados, ou seja, cujo valor do resgate estava já negociado. A comitiva tinha como embaixador D. Francisco da Costa, “fidalgo de mui conhecidas partes, bem experimentado e de grande prudência e sofrimento” e como seu secretário “e tisoureiro do presente que el-rei D. Henrique mandou ao xarife, que foi bem grandioso, e do dinheiro para o gasto da embaxada” Luís Fernandes Duarte. (SALDANHA, 1997, p. 35)A embaixada entrou por Mazagão e dirigiu-se a Marraquexe onde se encontravam os 80 nobres e o Sultão Ahmed El Mansur. (SALDANHA, 1997, p. 37)A esta versão, José Alberto Tavim contrapõe uma outra, segundo a qual o resgate realizou-se através da mediação de Abraão Rute, líder da comunidade judia de Fez e do italiano André Corso. Esta mediação incluía a instalação temporária de muitos cativos no “mellah” de Fez enquanto as diligências para o pagamento dos resgates se processavam. (TAVIM, 2004, p. 159)Basicamente, os Judeus adiantavam às autoridades de Marrocos o valor do pagamento dos resgates dos nobres Portugueses, que se comprometiam a pagar quando chegassem a Portugal. Como era proibida a livre entrada de Judeus em Portugal, o acordo previa que se faria uma conversão dissimulada, cujo padrinho era invariavelmente o resgatado, e após o pagamento do resgate o Judeu fugia de volta para Marrocos e para o Judaísmo.A conversão para cobrança de dívidas pelos resgates de nobres era assim uma situação apenas económica, mas obrigava o converso a apresentar-se no Santo Ofício, que o encaminhava para o Real Colégio dos Catecúmenos de Lisboa, instituição criada para doutrinação de “infiéis” e sua integração no universo Cristão. José Alberto Tavim cita os casos de António de Barcelos, aliás Jacob Jaén, cuja conversão esteve ligada ao resgate de D. Teodósio, Duque de Barcelos, seu padrinho de baptismo, ou Bastião Pereira, aliás Juda Castiel, que se baptizou em Ceuta tendo como padrinho o capitão da praça, D. Dinis Pereira, ou ainda Francisco de Castro, aliás Abraão Sason que acompanhou cinco cativos a Portugal para cobrar o resgate. (TAVIM, 2004, p. 161)Dos cerca de 16.000 prisioneiros de Alcácer-Quibir, os nobres foram maioritariamente resgatados, muitos foram encarcerados e utilizados como trabalho escravo, mas a grande maioria converteu-se ao islamismo, de forma voluntária ou forçada, e integrou-se na sociedade marroquina. Destes, muitos deles exerceram funções importantes nas obras públicas, no exército e na administração do Estado.Na sua chegada a Fez, o Xerife decide aceitar resgatar 80 fidalgos portugueses e “buscar todos os moços que se acharam da batalha d’el-rei D. Sebastião de quinze anos para baixo, e os mandou circuncisar e vestir à mourisca e ordenando-lhe muitas vantagens deixou em Fez trezentos moços e levou consigo a demasia para Marrocos (Marraquexe) para servirem das portas adentro e confiar deles sua pessoa. E fez alcaide destes moços Jaudar, e de sua casa o alcaide Brahen Sufiane com o título de alcaide dos alcaides, homem que foi benemérito de todos os lugares por sua boa natureza e foi grande amigo dos fidalgos e geralmente de todos os cristãos”. (SALDANHA, [160-] 1997, p. 27)A geração dos mais novos foi especialmente aproveitada por El Mansour, vindo a constituir, anos mais tarde, uma casta de elite ligada ao poder que no período da Guerra Civil de 1603-1664 dominava as próprias deciões dos protagonistas das várias facções em disputa.Marc-André Nolet atribui uma importância capital aos renegados portugueses convertidos após a Batalha de Alcácer Quibir, afirmando que foram utilizados pelo Sultão Ahmed El Mansour na construção do Estado marroquino moderno e na própria garantia da independência de Marrocos face aos turcos e espanhóis:“Ele utilizou renegados como funcionários, militares, governadores, enfim, como homens para todo o serviço no Estado. Os fundos de que dispôs graças à Batalha dos Três Reis, combinados ao grande número de cativos que resultaram dessa batalha e aos aprisionamentos feitos no mar pelos corsários, deram-lhe uma base sólida para atingir os seus fins. O Estado teve aliás algum sucesso e Marrocos resistiu, do século XV ao século XIX, tanto ao imenso Império Espanhol, como ao imenso Império Otomano. Nenhum dos dois titans conseguiu pôr a mão no país que estava, contudo, situado entre os dois rivais”. (NOLET, 2008, p. 109)