A rebelião de Ñezú: em defesa de “su antiguo modo de vida” (Pirapó, Província Jesuítica do Paraguai, 1628). Paulo Rogério Melo de Oliveira - 01/01/2011 de ( registros)
A rebelião de Ñezú: em defesa de “su antiguo modo de vida” (Pirapó, Província Jesuítica do Paraguai, 1628). Paulo Rogério Melo de Oliveira
2011. Há 14 anos
É surpreendente que a rebelião liderada pelo cacique e pajé Ñezú em novembro de 1628, no lugar denominado Ijuí, seja ainda desconhecida dos pesquisadores que se ocupam das lutas indígenas na América contra a dominação espanhola. A rebelião assumiu grandes proporções, resultou na morte dramática de três missionários da Companhia de Jesus – Roque González, Juan del Castillo e Alonso Rodriguez – e desencadeou uma espetacular perseguição pelas terras do Uruguai que se estendeu por quase dois meses. A batalha mobilizou, de ambos os lados, cerca de dois mil índios, dentre os quais quase duzentos foram mortos. Os responsáveis pelas mortes de Roque González e Juan del Castillo foram enforcados e os acontecimentos foram registrados em vários relatórios oficiais, enviados inclusive ao rei Filipe III de Espanha. Acrescenta-se a isso o fato de os três missionários mortos na sublevação terem sido beatificados e depois canonizados, o que amplifica a importânciados acontecimentos.4
Salvo aquele seleto grupo de pesquisadores, historiadores eetnólogos, dedicados ao estudo dos guarani e jesuítas na Provínciado Paraguai, no século XVII, o que se vê é um total desconhecimento.5 Ñezú é uma ruidosa ausência na literatura da denominada“resistência indígena”. E não é por carência documental, pois alémdas quatro cartas dos jesuítas escritas nos meses que se seguiramas mortes dos missionários, existem os depoimentos indígenas queconstam nos processos instaurados em Buenos Aires, Corrientese Candelária.6 No entanto, a maior parte dos pesquisadores desconhece ou não teve acesso às fontes. Em geral, A Conquista Espiritualde Montoya, escrita onze anos após os acontecimentos, e as obras deNicolás del Techo e Pedro Lozano, bem mais distantes, são as fontescitadas para se referir à rebelião comandada por Ñezú.Com base na documentação anteriormente mencionada podemos dizer, com alguma segurança, que Ñezú era um poderoso líderindígena que concentrava poderes políticos e religiosos e que vivianum lugar conhecido como Pirapó, no Ijuí, na margem oriental dorio Uruguai. É descrito ao mesmo tempo como cacique e feiticeiro.Montoya, por exemplo, referiu-se a ele como “[...] el mayor caciqueque conocieron aquelles países”, mas também o descreveu comomestre nos “embustes y magias.” (MONTOYA, 1989, p. 228). Diegode Boroa o apresentou como “un cacique hechicero y falso dios”.Padre Romero, que provavelmente teve um contato mais próximo,embora não existam evidências de que o tenha conhecido, se referiua ele como “[...] un ministro de Satanás cacique del Ijuí llamado Ñezúgrandísimo hechicero” (BLANCO, 1929, p. 98 e 102). [p. 2, 3 do pdf]
padre Geral da Companhia do perigo que os índios do Yjuí representavam para a evangelização. Ali estavam reunidos, sob o comando dogrande “hechicero”, índios da própria região com outros que haviamfugido da redução de San Francisco Javier. Segundo o Provincial,Ñezú “[...] con sus amenazas y grande elocuencia que tenia habíaatraído así toda aquella gente, y como todos le iban dando tantocrédito se temió el grande mal que por allí podia venir a nuestrasreducciones”[...].11Roque González foi o primeiro missionário a estabelecercontato com Ñezú. Era o primeiro missionário a adentrar nesteterritório, referido nas correspondências jesuíticas como Uruguai.O encontro entre os dois aconteceu provavelmente entre 1626,com a fundação de San Nicolau, e o começo de 1628, quando foifundada a redução de Nuestra Señora de Candelária. Curiosamentenão há nenhuma menção a Ñezú no ano de 1626-1627. Seu nomesó aparece nas correspondências posteriores às mortes dos padres.No entanto, fi ca bastante claro nessas correspondências que RoqueGonzález já vinha de algumas tratativas com o chefe guarani. Depoisde lançar as bases de uma futura redução em Caaró, foi percorreros extensos bosques do Ijuí. Segundo Vázquez Trujillo, Roqueenviou várias embaixadas para convencer o feiticeiro a receber “elsanto Evangelio”. A fama de Ñezú, e a presença de índios fugitivosde San Javier, preocupavam os padres, que temiam pelas reduçõesrecém-fundadas (BLANCO, 1929, p. 485). Não contente com o andamento das negociações, Roque decidiu ir pessoalmente ao Ijuí. Eraimportante ganhar a confi ança e o apoio do grande e temido chefe.
Os primeiros contatos dos missionários com Ñezú foram promissores. Mas até onde ia o entusiasmo do chefe? Ñezú mostrou-se amistoso no começo. Aprovou com gosto a entrada dos padres e o estabelecimento de uma redução sobre o Ijuí. Foi, a convite de Roque González, à redução de San Nicolau, onde foi muito bem recebido. Na volta ao Pirapó, dando mostras de que admitia ali uma redução, ordenou que erguessem uma igreja para abrigar os missionários e incentivou os caciques locais que os recebessem em suas terras. Em 14 de agosto de 1628, Roque González e Juan del Castillo chegaram ao Ijuí para fundar a redução, batizada de Assunção do Ijuí. Roque deixou a redução aos cuidados do padre Juan e partiu para Caaró.12 Três meses depois, os emissários de Ñezú atacaramas duas reduções e mataram os padres. O que teria provocado esta mudança abrupta de atitude? [p. 6 do pdf]
Sem pretender transformar Ñezú num defensor da culturaguarani, ou da identidade cultural guarani, e descartando a hipótese do messianismo, as razões que, segundo os próprios indígenas,teriam levado à morte de Roque, dizem respeito à preservação dealguns aspectos centrais da cultura guarani: a poligamia, os cantos,o culto aos antepassados e todo um conjunto de práticas e valorescondenados pelos missionários. Dizer que a rebelião de Ñezú foi emdefesa do “ser antiguo”13 não é idealizá-lo nem torná-lo um mártirda cultura guarani, mas situá-lo historicamente no interior de umconfl ito de poder provocado pelas profundas transformações emcurso no “modo de ser” guarani. Os companheiros do padre Roqueque relataram o “martírio” aos seus superiores apontaram para asmotivações que desencadearam a rebelião de Ñezú. Nos quatrorelatórios, escritos pelos padres que exerciam funções destacadas naCompanhia no Paraguai, são apresentadas as mesmas razões: o feiticeiro odiava os padres e queria eliminá-los. Essa visão, no entanto, selermos as fontes com mais atenção, não é genuinamente dos padres,mas dos próprios indígenas. Um mês depois das mortes, 53 índios,entre eles alguns dos “matadores” de Roque, foram interrogadospelo capitão luso Manuel Cabral, na presença de dez espanhóis ecinco padres.14 As confi ssões e declarações não foram registradas,mas os padres Boroa, Romero, Vázquez Trujillo e Ferrufi no, autoresdos relatórios, fi zeram referência a elas. Posteriormente, quando foiinstaurado o processo ordinário em prol da canonização dos “mártires”, seis índios reduzidos que presenciaram os acontecimentosforam chamados a depor na redução de Candelária, e um caciquepara depor em Corrientes. Nesses depoimentos, devidamente registrados, os índios foram interrogados sobre a “causa porque losindios mataron al dicho Padre” (Juan del Castillo). O índio AmbrosioGuarepú, da redução de Candelária, “respondió que”:[...] no se halló presente donde trataron de matarle, masque al tiempo de prender al dicho Padre oyó decir al dichohechicero Quaraibí, alentando la gente: matemos noramala este hechicero de burla o fantasma: echémosle de nosotros:tengamos solamente el ser de nuestro Padre y de nuestroshijos a Ñezú: tengamos el ser de nuestros abuelos: óiganseno más em nuestra tierra el sonido de nuestros calabazos ytacuaras [...].15 [p. 7 do pdf]
Parece que os chefes entendiam que o fi m da poligamiarepre sentava um golpe decisivo no seu poder e no antigo modo devida. E tudo indica que Ñezú, da mesma forma, via o abandono dapoligamia como o enfraquecimento do seu poder. Ceder às pressões do padre para batizar os fi lhos e abandonar as mulheres eraabrir mão do poder e prestígio que desfrutava até então. Diante dainsistência do padre, e das pressões de caciques aliados, para quedeixasse suas “mancebas”, como sugere o depoimento de PabloArayu, Ñezú passou rapidamente da cooperação à conspiração.Decidiu livrar-se dos missionários, começando por Roque González,reconhecidamente o mais habilidoso e famoso dos “hechiceros”cristãos. As denominações de “hechicero”, “fantasma”, “hechicerode burla”, que aparecem nos depoimentos indígenas para designaros missionários, parecem corroborar a hipótese de Métraux, e posteriormente desenvolvidas por Maxime Haubert, Necker e Meliá,que sugeria que os indígenas viam os missionários como poderososfeiticeiros.22 É bem possível que os guaranis tenham aproximadoalgumas características dos missionários com as dos seus pajés. Ofascínio e a admiração que Roque e seus companheiros pareciamexercer entre os indígenas e sobre o próprio Ñezú parecem inegáveis. Percorriam as aldeias, batizavam, curavam algumas doenças,falavam eloquentemente sobre o Deus criador de todas as coisas edesafi avam destemidamente os poderosos pajés.Nos depoimentos em Candelária, citados anteriormente,Guarepú e Arayu relataram que Ñezú se referia ao padre Roquecomo “hechicero de burla e fantasma”. E duas ou três passagens nasnarrativas jesuíticas sugerem que os índios consideravam os padrescomo feiticeiros. Techo, ao comentar a conversão de Guirabera, disseque o feiticeiro acreditava que o padre Montoya era a encarnaçãode um grande e famoso pajé chamado Cuará:Daba Guiraverá sus oráculos examinando los cadáveres delos magos; y cuéntase que afi rmaba haber pasado el alma de Cuará, que era tenido por Dios, al cuerpo del P. Ruiz,y también la divinidad, en lo que mostraba dar asenso á ladoctrina de la metempsícosis, ideada en la antigüedad porPitágoras. Divulgóse tal fábula en bastantes partes, y todosconsideraban al P. Ruiz como un sér superior. Esta invencióndel infi erno fué de gran provecho para el cristianismo, puesmuchos indios se convirtieron de modo que el diablo fuéenvuelto en sus propias redes. Ardía Guiraverá en deseosde ver al P. Ruiz; envióle uno y otro mensaje á tal efecto, yno consiguiéndolo, se puso en camino acompañado de doscientos indios (TECHO, Libro Octavo, Capitulo XXXVIII).Outro ponto de aproximação entre os pajés e os missionáriosera o culto dos ossos dos pajés e o culto às relíquias dos jesuítas.Os ossos dos pajés mortos, segundo Montoya, eram cultuados emlugares de difícil acesso e cuidadosamente adornados, como santuários, para receber os visitantes. O próprio Montoya percebeu asemelhança entre os cultos ao afi rmar que o diabo imitava o cultoàs relíquias, fazendo os índios adorarem os ossos secos dos feiticeiros (MONTOYA, 1989, Capitulo XXVIII). Padre Oñate narrouno ano de 1615 um episódio que sugere uma identifi cação entre omissionário e os grandes pajés. Os índios da redução de San Ignácio,em meio a uma guerra contra os “encomenderos”, abandonaram aredução, deixando desamparadas suas próprias terras, e fugiram paraos “montes”. Alguns índios recolheram e levaram junto os ossosdo padre Baltasar Seña, que morreu na redução. “Tenian tanta estimacion de este buen padre”, escreveu o provincial, “que les pareciollevavan un grande thesoro en llevar sus huesos” (MONTOYA,1989, Capitulo XXVIII).Rebelião e Ritual IndígenaDa colaboração e aceitação dos padres nos seus domínios,Ñezú passou a rebelião. Tramou com os caciques subordinados, eigualmente descontentes, um plano para extirpar o cristianismo desuas terras. Seus emissários foram enviados a Caaró com uma missão: [p. 12, 13]
alma, da palavra-habitante dos índios. O desbatismo, seguido darenomeação, em contrapartida, seria o restabelecimento da identidade do indivíduo.Ao batizar os índios, o padre logo lhes atribuía um nomecristão. O cacique Guarecupí, por exemplo, virou Santiago. Pajése caciques audaciosos, que desafi aram os padres, foram dobrados,alguns humilhados, convertidos e batizados com nomes cristãosbíblicos, como Zaguacary, que virou João. Ayerobia foi chamadode Bartolomeu, Tambavê, cúmplice na morte do padre Roque, virou Paulo e o famoso Tayaoba foi batizado como Nicolau. Para osmissionários, o batismo e o nome cristão signifi cavam o resgate dagentilidade e a inscrição no universo cristão.Os signifi cados da rebeliãoCom base no que foi exposto até aqui, perguntamo-nos: quaisos signifi cados da rebelião liderada por Ñezú? De acordo com o queas fontes nos permitem ver, a rebelião apresenta singularidades quenão autorizam o seu enquadramento em alguns modelos explicativos.Contrariando algumas interpretações, não existem apelos a terra semmal, não há promessas de paraísos nem um chamado a migrar. Ofeiticeiro reclama um retorno aos antigos costumes, ao antigo modode vida, e ameaça os seus ouvintes com pavorosos cataclismos queviriam como castigo aos que não obedecessem.Ñezú foi visto como um exemplo de líder messiânico que seergueu contra o colonialismo. O líder guarani teria sido mais um,dentre os inúmeros “carái”, que evocou a terra sem mal na lutacontra a opressão espanhola. A terra sem mal tornara-se, naquelecontexto, a “antítese do colonialismo”. Os defensores dessa visãoendossam as teses de Métraux e Hélène Clastres sobre o messianismo e a terra sem mal tupi-guarani. A América do Sul, sacudidapelo colonialismo, foi palco, segundo Métraux, para o desenvolvimento do esquema clássico do messianismo tupi-guarani: a crençanum profeta ou homem-deus, o desenvolvimento de uma ação quetende a apressar o advento da idade de ouro, a reação social e culturalcontra a civilização branca e, frequentemente, a formação de uma [p. 20 do pdf]