DOSSIÊ MISSÕES: VOLUME I. O Temporal: sociedades e espaços missionais
2015. Há 10 anos
casa em ruínas: “Assim será nas Índias a casa do PadreChomé”. Algum tempo depois, ao se deparar com a realidade americana, ele conclui: “Me alegraria muito acharuma casa semelhante àquela” (Manuscritos da ColeçãoDe Angelis – Centro de Pesquisas Históricas da PUCRS- Espaço Delfos PUCRS (MCA-CPH). Doc. 612). Comisso, Chomé percebia ao mesmo tempo duas verdadessobre a América: nenhuma anedota europeia seria capazde explicar a realidade americana e essa permaneceriaaquém da noção de conforto europeu.Os utensílios mantidos nessas frágeis habitações sãoextremamente simplórios. Um pequeno e engenhosoaltar portátil é peça fundamental de boa parte dos jesuítas. Nele carregam um pequeno castiçal, uma garrafade vinho e algumas velas logo reduzidas a tocos. Poucasroupas sagradas para celebrações são cuidadosamentearmazenadas no interior do altar. Em sacas, é carregadauma centena de pequenas bugigangas bastante apreciadas pelos índios, tais como anzóis, cunhas de metal,contas de vidro e alguns santinhos, todos reservadospara presentear ou trocar com o primeiro transeunteencontrado (Felippe: 2007, p. 7-8). Naturalmente, há,ainda, uma cruz e imagens sacras por vezes esculpidasmas, sobretudo, pintadas. Essas são as únicas armasdos padres contra as adversidades. Em suas investidasnas terras dos terrificantes Tayobá-Guarani, no Guairá,Montoya partia com apenas uma pintura da Virgem euma modesta cruz e, em casos críticos, um estandarte [p. 28]
Detestados pelos indígenas que faziam frente aoavanço jesuítico, não poucas vezes os pequenos auxiliaresse tornam ensopado antropofágico. Na ocasião em queMontoya tem de deixar a província de Tayobá fugindo deindígenas rivais prontos para devorá-lo, percebe que ficoupara trás a pintura da Virgem que até então o acompanhara. “Lembrou-se meu sacristão de seu esquecimentoe, sem dizer-me qualquer palavra, voltou ao posto pararecuperar a imagem”. O garoto desaparece na mata.Algum tempo depois, numa segunda investida na mesmaregião, dessa vez acompanhado por um contingente doexército espanhol, Montoya entra na aldeia já evacuada.Um caldeirão com carne cozida com milho ainda ferviae os conquistadores se põem a degustar o manjar. “Comidaquilo pensando tratar-se de carne de caça”, conta Montoya. Quanto assombro se segue: “Pouco a pouco, porém,tiraram das panelas a cabeça, os pés e as mãos cozidasdaquele menino que me tinham aprisionado” (Montoya:[1639]1997, p. 133). O sabor da carne humana, a duraspenas infantis, enfim chegara à boca de um jesuíta.Como se percebe, as crianças indígenas mais próximas dos padres encontram meios para se produziremcomo indivíduos no interior do projeto missional. Ninguém retratou melhor esta situação quanto o padre Seppao final do século XVII, missionário que somente admitia em seu convívio um seleto grupo de meninos. A partirde seu relato, temos ideia do quanto a área jesuítica deviaseu bom andamento aos infantes. [p. 70]
O primeiro povoamento fundado entre os Jê do Guairá é chamado de Nossa Senhora de Acaray, Concepção de Nossa Senhora dos Guañanas ou simplesmente Acaray, onde, no mínimo, Gualacho e Guañana estão presentes. O povoado de São Pedro, por sua vez, revive a união dos mesmos grupos de Acaray, muito embora apresente resultados menos frutíferos. Já São Miguel e Encarnación se configuram enquanto povoações exclusivas ou de parcelas consideráveis de Coroados (MCA: 1951, p. 244). Mas foi no principal povoado do Guairá que uma legítima experiência de convívio entre etnias distintas se realizou: em Los Angeles de los Tayobá, reúnem-se aproximadamente 30 caciques tanto Guarani quanto Jê. Onde antes havia guerra, conforme o orgulho dos curas, agora reina a paz (MCA: 1951, p. 244; MCA: 1951, p. 293-298).
Ironicamente, a reunião de grupos indígenas atéentão encontrados em populações dispersas e menosdiversificadas só veio a chamar ainda mais a atençãode outros inimigos, notadamente os portugueses de SãoPaulo em busca de mão de obra indígena (Monteiro:2005, p. 70). Quando se dão os ataques ao Guairá,especialmente até 1632, os paulistas deixam para trásum rastro de destruição ao sequestrarem milhares decativos. Todavia, não cessa aí a presença Jê nos povoados em questão. Por precaução contra os ataques ouapós as ofensivas, os missionais do Guairá experimentam transmigrações orientadas pelos jesuítas em direção ao Paraguai. Muitos indígenas se perdem no caminhoou optam por abandonar a empreitada, enquanto osdemais fundam novos povoados ou são distribuídosentre os povoados já existentes no lado paraguaio. Conforme informações de 1657 (MCA: 1970, p. 335-337),dos nove povoados do Paraná cinco possuíam membrosdessa leva: São Ignácio Guaçu, Anunciación, Loreto,São Ignácio Del Yabebiri (ou Mini), são bons exemplosdesses resultados. O destaque, entretanto, recai sobreo povoado de Corpus.Esta aglomeração indígena é composta por umapopulação exclusiva do Guairá, boa parte provinda deAcaray (justamente o primeiro povoamento dos Gualacho e Guañana) (MCA: 1970, p. 335-337). Está instalada junto a grandes ervais e pinhais naturais, o queem muito facilita a adaptação das famílias. Essas áreastambém são frequentadas por outros Guañana, não raroconvidados pelos já introduzidos a se integrarem à vidamissional. Corpus também é o principal destino dosGuañana aprisionados durante as “caçadas espirituais”do século XVIII. Apenas como exemplo, em 1730, alisão introduzidos mais de cinquenta Guanãna contatadospelos padres Joseph Pons e Pedro Villavieja (MCA-CPH.Cx. 30. Doc. 44). O mesmo se repete com tamanha frequência que se planeja a criação de um pequeno aldeamento no centro dos ervais, onde, segundo os planos,os Guañana seriam “amansados” para só depois seremenviados a Corpus – conforme orientação de 1732, “seria [p. 113, 114]
aptos para esse tipo de missão. Além disso, ali se encontra uma das maiores estâncias do século XVIII.Assim, a partir da análise geográfica e do deslocamento populacional, torna-se possível identificar as áreasonde a experiência da diversidade étnica se fez presentena composição missional: no Guairá, os povoados deAcaray, São Miguel, Encarnación e São Pedro, contandocom Gualacho, Guañana e Coroado, do tronco Jê, alémda convivência de mais de trinta caciques em Los Angelesde los Tayobá. No Tape, a experiência exemplar de SantaTeresa, onde Tape-Guarani convivem com Guañana. Noentre-rios Uruguai e Paraná, o povoamento de Corpus(formada pelos remanescentes Jê do Guairá e receptivaaos Guañana gradualmente introduzidos no processo),assim como Concepción e São Cosme e Damião, também contam com grupos diversos. No extremo sul doterritório com ação missionária, os casos exemplares sãoos de São Borja (onde Guenoa e um pequeno número deYaró compartilham um povoado adjunto até sua eventual transferência para Loreto) e de Yapeyú (este, sim, delonge o povoado consolidado até o final da experiênciacomo pertencente aos não Guarani, onde convivem parcelas consideráveis de Pampiano, entre Charrua, Yaróe Guenoa).Com isso, percebe-se a diversidade étnica permeandonão apenas boa parte dos territórios onde os missionaisatuam, mas também o desenrolar do processo histórico estudado. A homogeneização dos povoados como pertencentes a uma única origem étnica (no caso, Guarani), enfim, não é confirmada pela documentação. Oque há, sim, é a composição constante, com avanços eretrocessos, de diversos grupos no mesmo espaço, aindaque em períodos distintos. Sem ter em mente este mapeamento é impossível ao pesquisador não cair no reducionismo gerado pelos missionários e muito bem aceito pelahistoriografia, ignorando, assim, outras histórias sobreoutros povos indígenas.A diversidade Guarani:o caso GuayakiComo é claro à etnologia dos dias de hoje, os próprios Guarani coloniais são diversificados entre si. Informações oriundas de cada um dos grupos não podem sertomadas de forma homogênea sob pena de se incorrer emincongruências interpretativas. No território onde atuamos jesuítas, por exemplo, encontram-se grupos chamadospelos coloniais de Tayobá, Tape e, genericamente classificados como não reduzidos, Monteses, Caribe ou Kaiaguá, entre outros tomados simplesmente como Guaranipela historiografia. Contudo, são grupos que tambémpodem ser inimigos e em muito se diferenciam nas práticas e modos. Todos, entretanto, falam, se não o mesmoidioma, algo muito próximo ao Guarani missional. Estãodistribuídos na maioria dos espaços onde se instalam os [p. 118, 119]
nativos (MCA-CPH. Cx. 14. Doc 14-21). Concentra-se,aí, a ideia de que os caciques reuniam ao seu redor umaconsiderável população. Em função disso, os jesuítasdedicam uma atenção especial às lideranças indígenas.Esse é o caso de Ñandubuaçu. Dele “se diz quetodos índios Guaranis que existem desde a cidade deAssunção até o Itatim são seus vassalos”. (MCA-CPH.Cx. 28. Doc 28-23). O cacique Tayobá por muito tempo éreconhecido como dono das terras e gentes de boa parte doGuairá, tornando-se um sonho de conquista praticamenteobsessivo de Montoya: “todo meu desejo era ir ver o grandecacique Tayobá, por julgar que, ganho ele, teria os demaisde meu lado” (Montoya: [1639]1997, p. 128-129). O cacique Guayramã, “grande feiticeiro e de ânimo arrogante”,nome fundamental na fundação de Yapeyú, é considerado“dono” de ilhas no rio Uruguai, onde “todos que por elasnavegavam tinham que lhe pagar tributo” (DHA: 1929, p.368). De fato, não raras vezes os padres se confrontam comamplas casas comunais, onde vivem os tantos súditos dealgum rei americano, conforme suas interpretações.Todavia, esse tipo de interpretação mais parece resultar de uma confusão dos jesuítas sobre as tipologias deliderança, possibilidades de parentesco e modalidades de alianças então praticadas pelos indígenas.20 Aopensar nos caciques como soberanos, os missionários [p. 135]
cabeças!”, andava a dizer o cacique Roque Maracanã([1639]1985, p. 63). Como em outros casos, Montoyaassedia um cacique por anos sem obter resultados: “Sehá enviado muitos recados a Guirabera e outros caciques,porém estão mui obstinados. Aguardo em Nosso Senhorque lhe havemos de ganhar para o céu como a outrospiores que já vimos” (MCA-CPH. Cx. 28. Doc. 28-19).Mas nenhum outro líder indígena entrou no caminho deMontoya com tanto afinco na oposição quanto Tayobá,possível responsável pelas três investidas fracassadas dopadre em suas terras. No mais das vezes, até a pressãoportuguesa se intensificar, os missionários recorrem a“industriosos estratagemas”, especialmente por meio douso da retórica e de pragas mágicas, sem muito sucessocontra Tayobá.Os missionários valem-se, sobretudo, dos próprioscaciques aliados para garantir a adesão dos opositores– senão essa, ao menos um convite para entrar em suasterras e dar início a uma intensa tentativa de integração. Eis um momento quando o uso da retórica, tantodos caciques quanto dos missionários, articula-se emconjunto, fazendo do discurso amoroso e paternal abase de sua argumentação (Fausto: 2005, p. 14 e 21).Em virtude das dificuldades na fundação do povoado Jê de Nossa Senhora del Acaray, Nicolau Duránrecorre aos caciques aliados para aplacar os ânimos deAmbacatig: “Enviei-lhe com dois de meus caciques umrecado mui amoroso e que dissessem a Ambacatig que não tinha de que recear de mim, que somente vinhapelo grande amor que lhe tinha nem queria outra coisadele que lhe dar conhecimento de seu criador, e que sereduzisse com toda sua gente, pois era este o maior bemque lhe podia desejar.” (MCA: 1951, p. 206). Diante daproposta amorosa, tão distinta das demais investidascoloniais, a resposta não poderia ser outra: “Por meiodeste brando recado respondeu com muita humildadede que estava pronto para me obedecer em tudo quequisesse, e que se eu gostava dele se iria reduzir comtoda sua gente” (MCA: 1951, p. 206). O mesmo se dáentre o padre Montoya e o cacique Tayobá. Após osanos de assédio, o chefe indígena acaba por se apresentar ao missionário: “Padre, aqui venho a ver-te, já queme recebes como a um filho e me ensinas o que tenhoque fazer”. Daí por diante, a estratégia será sempre amesma: “Logo despachei recados a todos os demais”,garantem os padres com frequência (MCA:1951, p.206-110). Com isso, num curto espaço de tempo, oscaciques e missionários estão seguros para entraremum no território do outro, negociando uma aliança emque se garante a permanência da liderança e, por conseguinte, a segurança de suas famílias. As ordenançassobre o temporal, tanto de um lado quanto de outro,estão asseguradas no pacto que respeita o domínio deliderança originário do cacique.O papel diplomático de pacificação entre lideranças,especialmente pela proposta de convívio, também auxilia [p. 139, 140]