O Terreiro e a Cidade nas Etnografias Afro-Brasileiras. Por Vagner Gonçalves da Silva Doutorando em Antropologia - USP
1993. Há 31 anos
RESUMO : O artigo elabora uma reflexão sobre os estudos das religiõesafro-brasileiras que trataram da inserção do candomblé no contexto urbano (Rio de Janeiro e São Paulo) . Tem por objetivo rever as diferenciaçõe s( como pureza/sincretismo, Nordeste /Sudeste , nagô/banto) presentes nosmodelos etnográficos clássicos e contemporâneos da macumba, umbandae cando mblé.PALAVRAS-CHAVE : etnografia e religiões afro-brasileiras ."To das as feitiçarias têm pouco s adeptos e muitos adversários.até o instante em que mudam de denominação ."Charle s FortJ~ provável que hoje cn1 dia sejam raras as cidades brasileiras em quenão haja pelo n1enos um terreiro. O terreiro, con10 é chamado o localde prática dos cultos afro-brasileiros como o candon1blé e a u1nban- [Página 1 do pdf]
reiro, mas este é pressuposto mesmo sem contornos nítidos, entramem cena as descrições da degeneração do mundo urbano moderno.Assim, em Bastide, a macumba urbana do Rio (novamente) teve suagênese na pressuposta pobreza mítica banto, agora somada ao efeitodesagregador da grande cidade que destrói as "nações" ( os ritos), ouo que elas possam representar em termos de nicho de preservação deidentidade étnica. As principais fontes etnográficas para estas conclusões sobre a mítica banto continuam sendo as poucas e confusas informações de Arthur Ramos em O negro brasileiro, e a descrição dorito da cabula ( de origem banto) realizada pelo bispo d. Nery na região do Espírito Santo, em fins do século passado (Nery, 1963).A macumba é a princípio a introdução de certos orixás e de certos ritosioruba, na cabula (rito banto) . E esse desaparecimento de "nações" emseitas organizadas é o primeiro efeito desagregador da grande cidade.Os laços étnicos ou culturais se dissolvem no interior da plebe de cor.Nasce uma outra solidariedade, que ainda não é a solidariedade de classe, mas da miséria, das dificuldades de adaptação ao mundo novo, dodesamparo (Bastide , 1985:407).A cidade desempenha papel crucial na definição dos limites entre pureza e sincretismo, religião e magia, integração e degeneração, que sereflete na imagem dicotômica e ambígua do terreiro que ora aparece comoo locus de preservação da identidade étnica e ora como espaço anômicode wna frágil solidariedade de classe; enfim, espelhos nos quais a religiãose debate tentando refletir um mundo arcaico, com suas antigas lealdades étnicas dissolvidas na impossibilidade de acompanhar o mundo moderno, que se instala a partir de novas relações que unem e separam osindivíduos por classes e outros critérios de uma nova ordem social. 4"A macumba paulista"Para Bastide, a passagem da macumba carioca para a macumba paulistatambém será definida pelos mesmos traços, porém tomada como exempl o ideal., epifenômeno das questões apontadas acima. [Página 17 do pdf]
No texto de "As macumbas em São Paulo", seguindo as pistas deBelfort de Mattos ( 193 8), Reger Bastide apoiará suas observações emdocumentos de fontes variadas, tais como prontuários policiais, publicações do Arquivo do Estado, coleções de jornais e "um certo número de investigações pessoais" .
Segundo Bastide, é somente a partir do século XVIII que significativos contingentes de escravos chegam a São Paulo, devido à atração da mineração oitocentista e depois à expansão da cultura cafeeira do século XIX. A existência de práticas fetichistas de origem africana é atestada por vários documentos desse período. As casas de reunião chamavam -se batuques, termo depois substituído por macumba pela influência do Rio e da deturpação da "verdade ira religião", pois sendo os negros paulistas em grande maioria bantos, estavam mais acessíveis às influências espíritas (culto aos mortos) e à devoção aos santos populares católicos. Ao lado desses pequenos e instáveis cultos organizados, havia também os feiticeiros e curandeiros, que agiam individualmente. Ainda para Bastide, esses cultos organizados que parecem ter existido em São Paulo não vingaram, e a macumba do tipo carioca existiu aqui somente de forma esporádica e degenerada, conforme os poucos relatos deste culto em Santos e em alguns bairros da capital, como Pinheiros e Cambuci, nos quais são descritas cerimônias com sacrifícios animais, pontos riscados, presença de caboclos e outros encantados, emprego de velas, pólvora, cachaça e inúmeros outros elementos litúrgicos igualmente presentes na macumba carioca. Prevaleceu aqui a magia e o curandeirismo (Bastide, 1983 :200).
Entre as razões para a deturpação do culto paulista estaria, paraBastide, o desaparecimento dos antigos macumbeiros (juntamente comsua função centralizadora na comunidade negra) e a presença dosimigrantes brancos e toda sorte de homens marginais que, como seusirmãos mulatos, fizeram da religião um meio de ascensão social, explorando a credu lidade alheia por meio de sua magia eclética. A formamística, nesse caso, permitiu a exteriorização de instintos primários, [Página 18 do pdf]
conclusivo de "inves tigaçõe s pessoais" e não se baseado tanto em fontes secundárias, como páginas policiais ou autos judiciais de órgãospúblicos comprometi dos com a repressão ao "baixo-espiritis1no " (Negrão, 1986:59).Bastide acreditava, de fato , que na época de suas pesquisa s, entremeados dos anos 40 e início dos 50, havia em São Paulo somente a"macumba individualiz.ada e nem um centro de Espiritismo de Umbanda" (Bastide, 1983 :xv). Dados de pesquisas recentes sobre a mem ória da umbanda em São Paulo apontam, entretanto, a existência decultos organiz.ados de macumba e umbanda desde as primeiras décadas deste século .Na realidade , nas primeiras década s do século até 1950, é impossíveldistinguir-se entre Macumba e Umbanda em S. Paulo ou Rio . O que écerto é terem já existido cultos organizados, centrados nas figuras decaboc los, pretos-velhos e exus, desde a década de 30. Mais influenciadospelo Kardecismo e pelo Catolicismo seriam a Umbanda, menos influenciados, Macumba (Negrão, 1986 :60).
Com relação ao candomblé, não restam dúvidas de que este tenhaexistido em São Paulo, ao menos em fins do século passado . 5 Bastaatentarmos para algumas notícias dos jornais desse período, não percebidas por Bastide, nas quais muitas informações sobre seus rituaispodem ser obtidas permeando os registros das ações policiais de repressão às práticas religiosas dos negros cativos ou libertos. Conforme se vê no texto de uma dessas notícias, reproduzida do jornal paulistaProvíncia de São Paulo (atual O Estado de S. Paulo), de 30 de setembro de 1879: 6
Na longa e por vezes tétrica história das monarquias não se encontraum fato, que possa de longe sequer ser comparado ao que ontem se deunesta cidade, e que, por certo, vai ser, o pasmo das gerações vindouras.[ ... ] O Sr. Possolo, segundo delegado de polícia acaba de pôr emprática a sua ameaça terrível. S. Majestade a rainha mand inga assinouontem termo de bem viver na polícia[ ... ]. Uma rainha! exclama o leitor. Uma rainha! sim senhor, respondemos nós [ ... ]. E não foi só arainha . Foram as suas damas, os seus semanários e os seus ministros, comoconsta das seguintes informações: A rainha é Leopoldina Maria daConceição, que também diz chamar-se Leopoldina Jacomo da Costa~preta fula, gorda, de nação mina gegi, de 45 anos presumíveis . É muito inteligente, desembaraçada, arguciosa e bem-falante . Era a dona dacasa e de todos os aprestes nela encontrados, e conhecida como ministra do culto, denominada Mãe de santo e Gunhôde, em língua mina.Feliciana Rosa de Jesus, principal acólita ou ajudante da chefe, e crioulade 23 anos, fluminense , de aspecto juvenil, simpática, casada com umpardo , cocheiro, do qual se acha separada . É denominada Vodance, quedizem ser a mandona dos animais, cozinheira e preparadora dos ingredientes, e quem faz os convites para as festas solenes. Maria das Virgens, outra ajudante ou acólita, crioula fluminense, de 37 anos, viúvade um crioulo baiano . É devota convicta e dedicada, e cita vários fatosem abono da crença. As neófitas que foram encontradas fechadas noquarto do quintal, são as seguintes: Etelvina Maria da Purificação crioula da Bahia, de 30 anos, solteira, residia na casa há dois anos. É devotaconvicta e inspetora das outras. Joanna Maria da Conceição, crioula,fluminense , de 28 anos, solteira, muito inteligente, instruída e bemfalante . Foi criada pela rainha, da qual se diz parente consangüínea, ehá meses, voltando para a companhia dela, foi induzida , de parceriacom as outras, a entrar no noviciado . Domingas Constança Insoriana,crioula, de 16 anos, que se diz virgem, órfã, e moradora como agregadaem casa de um crioulo na rua Estreita de S. Joaquim . Estava de visitano palácio da rainha, segundo diz, mas a verdade é que ali foi parainiciar-se na confraria dos minas gegi. Eva Maria da Conceição, crioulafluminense , filha de uma preta mina, de 16 anos de idade , muito robusta e desenvolvida, porém, muito estúpida e ignorante , parecendo atéidiota . Amância do Espírito Santo, parda, de 27 anos , solteira, vive emcompanhia de um irmão . Estas mulhere s, como já se noticiou, tinhamas cabeça s raspadas, estavam nua s da cintura para cima, mostravamestar mal alimentadas e sob a influência de drogas ou substâncias nocivas. Com dificuldade pôde-se obter na ocasião algumas respostas dasmesmas , por isso que pareciam entorpecida s, além da influência presumível ·da superstição . Em razão de sua avançada idade , e por par ecerem alhe ias à atividade do culto , ficaram na casa as pretas minas gegiJosefa e Maria, de 80 anos, e Joaquim, de 70. [Páginas 22 e 23 do pdf]
perfilavam-se pequenas casas de sapé, alguns estabelecimentos públicos e de comércio, isolados de um lado pela várzea do Carmo, freqüentemente inundada pelo rio Tamanduateí, e por outro pelo vale doAnhangabaú, com suas chácaras e colinas ainda não unidas pelo viadutodo Chá, construído somente em 1892 para ligar o centro tradicionalaos bairros mais distantes), por outro testemunha a existência de práticas religiosas da população negra, que no final do século passadocresceu vertiginosamente devido à expansão das plantações cafeeiras,que fizeram da província de São Paulo um promissor centro de investimentos, com a terceira população cativa do país, com 156.612 escravos em 1872 (Taunay, apud Schwarcz, 1987:50). Alguns municípiospaulistas ainda guardam atualmente a memória da presença negra queneles se verificou em períodos diversos, como, na capital, o Jabaquara(local de antigo quilombo), o Bexiga ( que depois se italianiza), e maisrecentemente a Casa Verde, Limão, Capela do Socorro, Embu e a vila ,Brasilândia, conhecida como a "Africa paulistana"7 e coincidentementelocal de instalação de um dos primeiros terreiros a se registrar como"de candomblé " (Terreiro de Candomblé de Santa Bárbara, de MãeManodê), no início dos anos 60. Em outro terreiro, chamado "AxéKeto Bessem" , situado no bairro nipônico da Liberdade, nas proximidades do Centro da cidade, ouvi da ebomi Edy de Oxwnarê históriassobre velhas escravas africanas que ali mesmo iniciaram seus parentes,hoje falecidos mas ainda cultuados em pequenas umas de madeira guardadas no interior do antigo cortiço onde funciona o terreiro.8Bastide esperava, ainda, com seu texto sobre a macumba paulista,completar dois estudos considerados por ele fundamentais sobre oassunto. Um deles é o trabalho de Belfort de Mattos, já comentadoaqui, e o outro um curioso estudo do botânico F. C. Hoehne que, nocomeço do século, investiga as ervas e os objetos vendidos pelos ervanários e curandeiros na capital. Hoehne, convicto de que sua obra eraun1a "questão de magna importância para a saúde pública", estavainteressado em identificar botanicamente essas ervas e avaliar seu va- [Página 25 do pdf]