por discursos na Câmara e sermões nas igrejas. Mas que os tais forasteiros eram indesejáveis, não há dúvida alguma. Como não ha dúvida sobre um outro forasteiro complicado, de quem diz o procurador, noutra sessão da Câmara:
..."Geo de meri soares, ora estante nesta vila, é muito prejudicial á terra, por falar em honras alheias, do que póde resumir muitas desinquietações por ser homem desbocado"...
E, como além de "desbocado", é vadio, pede á Câmara que mande seus oficiais agarrarem o homenzinho e pôrem-no fora de portas, pois o povo não quer saber de "desinquietações".
Mas os que aparecem mais na vila, vindos de longe, são numerosos representantes da infinita, indestrutível legião dos vadios. São Paulo, terra de trabalho, combate-os sem descaço, chama-os á ordem, adverte-os, ameaça-os e, finalmente, expulsa-os. Uma das atas de 1623, reza que o procurador do Conselho requereu que
"todo o forasteiro que existir nesta vila, acuda a esta Câmara, aos 9 de agosto, a darem razão de si, de sua vida e ofício de que vivem, e o cabedal que cada um tem, de seu trato e manejo"... sem o que, despejariam a terra.
"...pelo procurador foi dito que nesta vila havia muitos homens vadios forasteiros, que eram em prejuízo desta vila e povo pelo que requeria os mandassem despejar esta vila"...
..."que nesta vila andam vadios que não tem ofício"...
Gente sem profissão definida só se equipara aos maldizentes, aos beberrões, aos escandalosos. E, para todos, um só remédio que a sabedoria popular condensará, depois, numa frase expressiva: "a porta da rua é serventia da casa".
É para esse remédio heroico que apela o procurador da Câmara de 1641, requerendo
"que se desse execução ao mandato que estava para serem notificados Mariana Lopes e seu marido Braz Dias para efeito de despejarem esta vila, visto aqs queixas que se lhe haviam feito por algumas mulheres e homens honrados e antigos desta vila"...
Mais curioso é o caso de um indivíduo que atende pelo nome solene de Antão Roiz Pacheco. Aquí chega ele, um dia, vindo não se sabe de onde, e fica a mandriar, a beber, a falar mal da vila alheia. Exemplar completo e acabado daquilo a que os homens do Conselho dão o nome de "homem prejudicial" tratam estes de expulsá-lo da terra. Na sessão do dia 10 de setembro de 1633, levanta-se o procurador do Conselho e declara que, "a requerimento do povo", exige a expulsão do malandro. Os oficiais da Câmara, em resposta, afirmam que "a tudo acudirão".
Na sessão seguinte, porém, no dia 17, aparecem na Câmara, empunhando um vasto requerimento, trinta e cinco dos mais respeitáveis moradores da vila, para fazerem esta queixa: que Antão Roiz Pacheco fora expulso da vila, de acordo com os desejos dos moradores. Mas, ostensivamente, voltára! Voltára e por alí andava, a "embaraçar a terra" o que lhes parecia um abuso e um desafio. Se o homem "fôra botado fóra" e voltára, que "o botassem fóra de novo".
O homenzinho, porém, não parece disposto a respirar outros ares. Gosta de São Paulo e, por nada deste mundo, quer sair. Tanto que, ao ter notícia de que ha ordem terminante para a sua re-expulsão, esconde-se em casa de um amigo, de onde o vão arrancar os oficiais da Câmara, com grande desespero seu e do seu hospedeiro Clemente Alves.
Resultado do gesto acolhedor e humanitário do amigo Clemente: na sessão da Câmara do dia 1 de outubro, o procurador levanta-se para requerer
"que se condenassem a Clemente Alves porquanto fora notificado não recolhesse a sua casa Antão Roiz Pacheco por mandado deles ditos oficiais da Câmara e não quisera obedecer pelo que requeria o condenassem"... [p. 89, 90, 91]
Passam- os dias. Passam-se os meses. E... dois anos depois (9 de abril de 1600) a Câmara resolve que os escravos e os moradores começarão as taipas da igreja, com pena de dois mil réis.
O desejo de possuir-se a Matriz é grande, mas a vontade de trabalhar é pequena. Tanto que, dois meses depois dessa ordem são multados em dois mil réis vários cidadãos renitentes que se negam a auxiliar a construção: Gaspar Conqueiro, João Roiz e seu genro Clemente Álvares, que mais tarde será vereador e juiz, Diogo Miguel Malheta, Custódio D´Aguiar e sua sogra. [p. 96]
As minas de ouro só serão exploradas mais tarde, na segunda metade do século, embora o Jaraguá, ainda em 1606, haja entremostrado os seus tesouros a Clemente Álvares que, muito alvoroçado, corre á Câmara para registrar sua descoberta: ". . appareceu clemente álveres morador nesta villa por ele foi dito aos ditos ofisiais e declarado de como vinha manifestar sertas minas que tinha descoberto de betas de hüa manta de ouro a saber oslugares primeiramente a de manta em Jaraguá ao sopê da primeira serra" etc. Ou, então, a Afonso Sardinha que, já em 1589 explora minas de ouro, não só no Jaraguá, mas ainda no sítio Lagoas Velhas, no Votoruna e em Biraçoiaba. [No tempo dos bandeirantes, 1939. Benedito Carneiro Bastos Barreto, "Belmonte" (1896-1947). Página 105]
Ás vezes, encontram-se na terra objetos que chocam pela raridade, como a bengala de Henrique da Cunha, os chapéus de sol de Francisco de Proença, Antônio Bicudo de Brito e Antônio Leite Falcão, as luvas enfeitadas de Antônio Leite, o óculo de alcance de Cornélio de Arzão — um oceulo de Flandres de olhar ao longo que se não avaliou por se não saber o que vale — os relógios de agulhão de marfim de Francisco Velho e Cristovam de AguiarGirão, o lampeão de Jerónimo Bueno...[No tempo dos bandeirantes, 1939. Benedito Carneiro Bastos Barreto, "Belmonte" (1896-1947). Páginas 109 e 110]
João da Costa, falecido em 1639, já é menos exigente e deixa, apenas, dois volumes pios: "Livro de São José" e "Livro da V ida Christã". Quer estar bem com o santo e com toda a Côrte Celeste, desejo que é também de Clemente Alvares em cujo espólio se encontram estas duas obras: "Contentis Mundi" e "Confessionario" além de outros volumes que se não especificam. [p. 135]
Vê-se claramente que as perseguições da Inquisição no Brasil são, ao mesmo tempo,mais intensas do que se supõe. Na vila de São Paulo, contudo, tais acontecimentos não repercutem e o seu isolamento no planalto parece amortecer a vibração das paixões desencadeadas alhures e imunizá-la contra os perigos dessa ordem. Tanto que, a única vez que se tem notícia de uma ação do Santo Ofício em São Paulo, não é contra nenhum um judeu, mas contra um flamengo: Cornélio de Arzão.
À meia-noite de 28 de abril de 1628, um grupo de homens bate à porta da casa de um grande sítio em Pirituba, enquanto um deles, com voz clara, brada: Abram, em nome da Santa Inquisição!.
Uma mulher, pouco depois, escancara as portas, sem surpresa nem susto, pois já espera a incômoda visita. É ela dona Elvira Rodrigues, e sabe que esses homens sinistros a procurariam, pois seu marido, Cornélio de Arzão, acha-se preso em Lisboa, por ordem do Santo Ofício.
Cornélio de Arzão, flamengo que viera a São Paulo como perito em mineração, contratado por D. Francisco de Sousa, é homem de muita consideração na vila, onde se casa com a filha de Martim Rodrigues Tenório de Aguilar, grande sertanista espanhol, mas por motivos que se ignoram, cai em desgraça com a Inquisição, que o prende na aldeia de Setúbal e o remete para Lisboa, após excomungá-lo.
Cornélio não é judeu. Além disso é católico, e tão bom católico que trabalha na conclusão da igreja matriz, alguns anos antes, e ficam a dever-lhe não pouco dinheiro dessa empreitada. O certo é que, por esta ou aquela razão, Miguel Ribeiro, meirinho do Santo Ofício, e o juiz Francisco de Paiva exigem que dona Elvira entregue todas as chaves da casa e declare todos os bens que alí dentro se acham, após fazerem-na jurar, com a mão sobre a cruz que o meirinho trás ao peito. [Página 221]
No dia seguinte, pela manhã, iniciava-se o inventário dos bens, - ferramentas de lavoura, pratos, louças, tenda de marceneiro, tecidos, roupas, jóias, objetos de toda espécie além de dois negros da Guiné.
Mas não pára aí a fúria confiscadora do Santo Ofício. No dia 2 de abril, o mesmo juiz, seguido pelo mesmo funcionário da Inquisição, vai ao sítio de engenho de ferro, e sequestra o que lá se encontra - casa de três laços com um laço assobradado, no alto de um outeiro, roça de milho, serras, um catre, um bufete e um moinho de moer trigo moente e corrente.
Não é tudo, porém. No dia 3, é sequestrado um lanço de casas que está junto das casas de Domingos de Góis no arrebalde da vila, além de uma caixa contendo tigelas, pregos de cadeira, uma cadeira, um espelho e um tostão de prata. E, pouco depois, mais umas casas que estão defronte das casas do reverendo padre vigário e mais as casas que estão defronte das casas de Manuel João Branco. Quando ao engenho de ferro, do qual metade pertence a Cornélio de Arzão, não se avaliou por não haver pessoa que o entenda. [Página 222]