Nos artigos publicados no "Jornal do Commercio", em resposta ao meu livro "Pernambuco e o São Francisco", leio o seguinte:
"O rio de S. Francisco limitava ao norte a Capitania da Bahia, que ao oeste fronteirava com o Piauhy" - dizia ainda em 1802 o professor Luiz dos Santos Vilhena, nas suas Cartas Soteropolitanas. Assim escreve o sr. Pedro Calmon, que acrescenta:
"Não há melhor argumento do que essa vizinhança do Piauhy a corroborar a tese da erronia geográfica sobre a verdadeira orientação do rio, nos séculos 17 e 18, e a confirmar a convicção histórica desse direito, criado pela ocupação, enraizado com a economia, desdobrado com o povoamento e consolidado com a conquista."
O Sr. Pedro Calmon indica o lugar em que encontrou a frase: - "Página 604, vol. II das Cartas Soteropolitanas, edição de Braz do Amaral". Não se acha nessa página a referência, se o autor se reporta à edição de 1921 (Bahia, Imprensa Official do Estado).
Á página 591, porém, Vilhena escreveu:
"Pelo Poente, divide com as capitanias do Piauhy e de Pernambuco pelo grande rio de S. Francisco". Mas é de advertir que se referia a comarca de Jacobina, que naquele ano tinha realmente as suas fronteiras ao Piauhy, pela subordinação em que lhe ficára o termo da vila da Barra, desde 1753.
Mesmo assim, é indubitável que Vilhena não possuía ideias muito precisas a respeito dessas regiões, sem que se possa acompanhar o Sr. Pedro Calmon, que dai conclui uma "erronia geográfica sobre a verdadeira orientação do rio". Seria inacreditável que o autor das "Cartas Soteropolitanas" ignorasse a orientação do São Francisco para o Sul, quando nos dá as latitudes do território mineiro. Se ele indicava a barra do S. Francisco a "10 graus e minutos de latitude" e o apontava em latitudes mais altas, a cerca do 14 grau para a confluência do Carinhanba e dentro território de Minas, como pretender que ignorasse a orientação do S. Francisco para o Sul? Como admitir semelhante desconhecimento depois do período da mineração?
O que Vilhena ignorava não era o traçado do S. Francisco para o Sul e sim o que havia do outro lado do rio, na margem pernambucana. As suas confusões e erros vem dessa causa. Apresenta o rio Grande entrando por leste no S. Francisco: o rio Preto afigura-se-lhe um afluente do rio Verde, na fronteira de Minas Gerais; parece acreditar que o Paramirim e o Carinhanba entravam pela margem esquerda, uma vez que o Rio Grande entrava por leste, o que não o impedia de mostrarmos o Carinhanba como saído das serras dos Montes Altos; não menciona o rio Corrente; sob o nome de "sertões do S. Francisco" não inclui senão a margem direita; indicava do outro lado apenas a freguesia de São Francisco das Chagas, na barra do Rio Grande, com 200 fogos e 2.025 almas, quando estatística anterior e de origem pernambucana lhe dava, em 1782, 592 fogos e 4.873 almas, de acordo com a relação dos párocos. A esse tempo em que Vilhena escrevia já se encontrava ali a freguesia de Campo Largo, com 380 fogos e 1.637 almas, segundo a "Idem da população. Já Capitania de Pernambuco desde 1774". Existia também a freguesia de Pilão Arcado, com 419 fogos, 1.805 almas, 3 igrejas filiais e 35 fazendas.
Não é expressiva a ignorância? Não é prova de que as relações deviam ser muito mais importantes com as autoridades pernambucanas? Três anos depois de incorporada a vila de Barra á comarca de Jacobina, o governo bahiano esquecia a câmara daquela vila na relação dos donativos para a reconstrução de Lisboa;
(...) Vejamos agora se eu fui apressado na indicação do momento em que o São Francisco se tornou conhecido. No meu livro "Pernambuco e o S. Francisco", escrevi, referindo-se á ratificação da carta de Duarte Coelho em 1602 e 1627 que "em 1603 ou 1627 já não se pode alegar existisse ignorância quanto ao curso do S. Francisco". O Sr. Pedro Calmon entende que eu antecipei exageradamente a época do conhecimento do rio.
(...) Não compreendo como um leitor de História possa escrever que até os fins do século XVII "sempre se julgara que o rio S. Francisco corresse em linha reta ao interior para o mar, seguindo o paralelo". Bastava que o Sr. Pedro Calmon se lembrasse dos mapas de Bartholomeu Velho, em 1561, e o de Van Doegt, citado por ele próprio noutra passagem, e de Van Langerer, em 1596, o de Nicolas Sanson d´Abbeville em 1650, para que o advérbio sempre tomasse o sentido de um grave erro de História.
Não me parece mesmo que se tenha feito o uso de apresentar o S. Francisco seguindo em linha reta para Oeste. Preferia-se limitar o traçado do rio á região mais ou menos explorada. Num período de quatro (ilegível), entre 1550 e 1570, fase importante sob esse aspecto, encontraríamos dentro dessa tendência as cartas de Pierre Descellera (1558), Lazaro Luis (1563), Diogo Homem
(...) Em primeiro lugar, havia a expedição de Espinosa, que chegára ao S. Francisco dentro do atual território de Minas Gerais, nas proximidades do Jequitahy, a cerca de 17 graus de latitude meridional; havia também a viagem de André de Leão, em que o roteiro de Glimmer nos permite acreditar que o curso do S. Francisco se apresentara aos sertanistas nas imediações do 20 grau de latitude. E Belchior Dias Moréa? E as informações do gentio? E as entradas que de lugares diferentes se deixaram atrair pelo mistério e pelas riquezas do sertão?
Pode-se considerar como resultado desse conhecimento a preferência pelo litoral do Sul, nas entradas que visavam as minas fabulosas do alto S. Francisco. É o ciclo de Porto Seguro, de Ilhéus e do Espírito Santo, como ponto de partida de entradas. E talvez se pudesse ver também uma inspiração da mesma ordem na ida de D. Francisco de Souza para São Paulo, centro escolhido para a sua atividade exploradora.
Esses fatos autorizavam perfeitamente a minha frase. O que pareceria pueril, entretanto, seria o esforço para recuar o conhecimento dessa orientação do S. Francisco até o século XIX por se não saber precisamente de suas nascentes; como seria ridículo demoral-o até Halfeld pela ausência de observações perfeitas de suas distâncias, ou até os sábios que venham ainda determinar peculiaridades da flora ou da fauna de suas ribeiras.
O que interessava a nosso debate era apenas saber se se encontrara no Sul o traçado do S. Francisco. Para isso, além das circunstâncias mencionadas, teria mesmo o parecer de uma autoridade insuspeita á Bahia, o erudito Sr. Theodoro Sampaio, a quem se deve o respeito que os sábios merecem. No seu estudo sobre a expedição de Knivet, ele proclama que das entradas do tempo "colheu-se para a geografia uma noção mais perfeita do curso superior do rio São Francisco, a linha mais funda das que se atingiram, no sertão, no século XVI".
Essa parte inferior que era "coisa", porque escrava, ou que era tratada como bicho, como nós tratamos gente camponesa, a gente que está por baixo, a gente miserável, essa gente que estava por baixo, foi despossuída da capacidade de ver, de entender o mundo. Porque se criou uma cultura erudita dos sábios, e se passou a chamar cultura vulgar a cultura que há nessa massa de gente.
Data: 01/11/1977 Fonte: José Viana de Oliveira Paula entrevista Darcy Ribeiro (1922-1997)*