| fabricado com mão de obra escrava para abastecer o mercado europeu (MENEZES, 2010, p.14). A bem da verdade, Ilhéus, Porto Seguro, Bahia, Pernambuco, Itamaracá e Paraíba eramas capitanias que constituíam o eixo econômico da Colônia e concentravam a maior parte dapopulação branca residente no Brasil. A Bahia, sede do Governo-geral desde 1549, abrigavauma população aproximada de três mil brancos. Foi justamente a essas capitanias – comexceção de Ilhéus e Porto Seguro – que se dirigiu a comitiva inquisitorial de Lisboa (VIEIRA,2006, p. 50).
No Reino, a 26 de março de 1591, o cardeal arquiduque Alberto de Áustria, vice-rei de Portugal e inquisidor-geral, através de comissão especial, nomeou o licenciado Heitor Furtado de Mendonça para Visitador Apostólico do Santo Ofício, com a missão de visitar os bispados de Cabo Verde e São Tomé, na costa da África, e do Brasil, incluindo a administração eclesiástica de São Vicente e Rio de Janeiro. Em 9 de junho do mesmo ano, domingo da Santíssima Trindade, o visitador aportava na Bahia juntamente com o governador-geral, recém-nomeado, D. Francisco de Sousa. Maltratou-o muito a viagem e ali desembarcou bastante enfermo (GARCIA, 1929, p. 7). Furtado de Mendonça, nosso primeiro visitador, devia ter entre 30 e 40 anos quando veio ao Brasil. Homem de foro nobre, passara por dezesseis investigações de pureza de sangue para se habilitar ao cargo de deputado inquisitorial. Depois de restabelecido dos achaques da viagem, se apresentou ao bispo da Bahia, D. Antônio Barreiros, que lhe prometeu ajudá-lo em tudo o que fosse necessário. No dia 28 de julho de 1591, teve início a santa visitação, preludiada por grande pompa (VAINFAS, 1997, p. 17-20).
Soleníssima procissão da igreja de Nossa Senhora da Ajuda saiu em direção à Sé Catedral, acompanhada pelo bispo, D. Antônio Barreiros, os da governança e da justiça, clérigos e confrarias. O visitador seguia o cortejo debaixo de um pálio de tela de ouro e, ao entrar na Sé, sentou-se numa cadeira de veludo carmesim, guarnecida de ouro, sob um dossel de damasco também carmesim, junto do altar, ao lado do Evangelho. Em seguida, o chantre, auxiliado por dois cônegos, celebrou o Santo Sacrífico da Missa. Terminada a celebração eucarística, o padre Marçal Beliarte, provincial da Companhia de Jesus, fez a pregação da fé. Após o sermão, subiu ao púlpito o arcediago Baltasar Lopes, com uma capa de asperge de damasco branco e tela de ouro, e com a cabeça descoberta publicou em alta e inteligível voz os éditos da fé e da graça3 e o alvará de Sua Majestade que perdoava o confisco de bens aos que confessassem suas culpas nos 30 dias seguidos do tempo da graça (CONFISSÕES DABAHIA, 1922, p. 11-12).
Na sequência, o visitador se dirigiu ao centro da capela maior e diante de um altar ornado com uma cruz de prata arvorada e quatro castiçais grandes de prata, com velas acesas, e com dois livros missais abertos em cima de almofadas de damasco, sobre os quais estavam deitadas duas cruzes de prata, sentou-se numa cadeira de veludo que lhe foi trazida por um capelão. E permanecendo sentado, fizeram perante ele o juramento da fé, conforme o Regimento, o governador, os juízes, os vereadores e oficiais, ajoelhados com as mãos sobre os missais e cruzes de prata sobre o altar. Em seguida, todo o povo de joelhos e com os olhos fixos na cruz fez o mesmo juramento (ibid., p. 12-13). Furtado de Mendonça impressionava a todos pela pompa e pelo pronto juramento de obediência das autoridades que configuravam até então a máxima representação do poder metropolitano em terras coloniais. Desobedecer ao Visitador Apostólico, significava, na prática, romper com Cristo, com a Igreja e com a Coroa (VIEIRA, 2006, p. 54).
A primeira confissão
No primeiro dia da graça, 29 de julho de 1591, compareceu à Mesa do Santo Ofício, sem ser chamado, o padre Frutuoso Álvares (65 anos), vigário da igreja de Nossa Senhora da Piedade de Matoim. Após fazer juramento com a mão direita sobre o livro dos evangelhos, prometeu dizer a verdade e confessou:
de 15 anos a esta parte que há que está nesta capitania da Bahia de Todos os Santos, cometeu a torpeza dos tocamentos desonestos com algumas 40 pessoas, pouco mais ou menos, abraçando, beijando, a saber, Cristóvão de Aguiar, mancebo de 18 anos. [...] E assim também tocou no membro desonesto [pênis] [de] Antônio, moço de 17 anos. [...] E assim com outros muitos moços e mancebos que não conhece nem sabe os nomes, nem onde estejam, teve tocamentos desonestos e torpes em suas naturas e abraços, e beijando, e tendo ajuntamento por diante e dormindo com alguns, algumas vezes na cama, e tendo cometimentos alguns pelo vaso traseiro [ânus] com alguns deles, sendo ele o agente, [ativo] e consentindo que eles o cometessem a ele pelo vaso traseiro, sendo ele o paciente, [passivo] lançando-se de barriga para baixo e pondo em cima de si os moços [...] [porém,] nunca efetuou o pecado de sodomia penetrando (ANTT, IL, proc. 5.846, fls. 2-3v).
Padre Frutuoso Álvares fez uma longa confissão. Além dos rapazes citados acima, mencionou, em especial, um moço4 chamado Jerônimo de Parada de 12 ou 13 anos quando se juntaram por 10 vezes e, ainda, muitos outros rapazes que não lembrava os nomes. A esta altura da confissão, Furtado de Mendonça o questionou se dizia aos seus cúmplices que tais torpezas não eram pecados. Respondeu: “alguns compreendiam que era pecado, outros, porém, por serem pequenos demais não entendiam”. Ele, contudo, nunca teve dúvida dos grandes pecados que amiúde cometia, estava muito arrependido e pedia perdão. O vigário de Matoim confessou, inclusive, que há mais de 20 anos, desde quando estava no Reino, vem sofrendo acusações e respondendo a processos pelos mesmos crimes. O visitador, ao que parece, ficou bastante impressionado, observando que o clérigo já era um homem velho, “sacerdote e pastor de almas”, cometera tantos atos torpes e que só há um mês os deixou de praticar. Admoestou-o para que se afastasse de semelhantes pecados e voltasse à Mesa no tempo determinado. [Página 4, 5, 6 do pdf]
Passados poucos dias, 17 de agosto de 1591, foi a vez do jovem Jerônimo de Parada(17 anos) fazer sua confissão. Relatou que há dois ou três anos, num dia de Páscoa, foi à casa do padre Frutuoso Álvares, “velho que já tem barba branca”, amigo do seu pai. Ao entrar, o clérigo começou a apalpá-lo, dizendo-lhe que estava gordo e outras palavras meigas, meteu amão pelo seu calção e acariciou sua natura [pênis] alvoroçando-a. Estando ambos na cama,com as naturas ajudantas por diante, embora o padre solicitasse, não houve polução[ejaculação] de nenhum deles. Passado um tempo, Jerônimo foi visitar seu pai que morava ameia légua de Matoim; chegando tarde da noite, preferiu agasalhar-se na casa do clérigo. Aoestarem na cama, como da vez passada, ele apalpava o falo do religioso, contudo, não houvemais que ajuntamento por diante (ibid., fls. 6-7).
Muitos dias depois, em Salvador, o clérigo pernoitou na casa da avó do rapaz. À noite,o religioso o convidou ao pecado nefando, mas Jerônimo se recusou. Então o padre lheofereceu um “vintém”; como ele achou pouco, lhe deu outro “vintém” e, assim, ambostiraram os calções e deitaram-se na cama. Depois “de terem feito por diante”, o padre pôs-sede barriga para baixo e pediu que Jerônimo ficasse por cima. Dessa forma consumaram ocrime de sodomia, o jovem metendo o seu membro viril desonesto no vaso traseiro do clérigo,com derramamento de semente (sêmen) intra vas.
Ante o exposto, o visitador lhe perguntou se o padre o advertiu sobre a gravidade dos pecados que cometiam. Jerônimo respondeu que sim, inclusive, que o vigário o aconselhou que se confessasse a ele mesmo, pois o absolveria (ibid., fls. 7v-8v). O que levaria Jerônimo a praticar tantos atos nefandos com o velho religioso? O estudante não parecia um moço ingênuo que ignorava a gravidade de sua conduta; certamente, não recebera dinheiro uma única vez. Aliás, deixou escapar que ao receber um “vintém” achou pouco, até que ganhou outro, o que sugere que negociações similares poderiam ter sido recorrentes.
Dois anos depois, em 7 de julho de 1593, Frutuoso Álvares voltou à Mesa da Inquisição, afirmando que estava apartado do vício dos clérigos. O visitador indagou, por que na primeira confissão não falou da sodomia perfeita consumada com o jovem Jerônimo. Não se recordava – respondeu –, mas, agora lembrou-se, contudo, “não afirmou se o jovem havia cumprido (ejaculado) no seu vaso traseiro e pediu perdão”. A sentença foi publicada na Mesa, em 2 de agosto (1593). O Visitador Apostólico, D. Antônio Barreiros e os padres assessores, concluíram que o padre Frutuoso Álvares cometeu a torpeza dos tocamentos desonestos com alguns 40 rapazes. Sua primeira confissão (na graça) foi insuficiente, perdendo o benefício que alcançaria se fizesse uma confissão plena. Entretanto, o acórdão foi clemente:
Suspensão das ordens [sacras] por tempo de 5 meses somente, e em 20 cruzados para as despesas do Santo Ofício, e lhe mandam que cumpra as penitencias espirituais seguintes, primeiramente confessar-se de confissão geral de toda sua vida a um confessor letrado e douto, que lhe será nomeado nesta Mesa, para lhe curar sua alma e depois [...] comungará de conselho [...] de seu confessor em cada um dos 5 meses de suspensão e rezará mais 5 vezes os salmos penitenciais [...] de joelhos [...] e pague as custas (ibid., fls.19v-20).
Sem dúvida, uma sentença bastante leve para um clássico reincidente. Por certo, a Mesa concluiu que não havia muito o que fazer com o clérigo, aquele já era o quinto processo que o religioso respondia por atos nefandos. Tão sequioso de molícies, 5 talvez, só a pena capital extinguisse seus “torpes apetites”. Todavia, o visitador não tinha poderes para tanto. [p. 7, 8]
“agasalhados numa estalagem”, e a todos dizia que o jovem era seu sobrinho. Dormindoambos na mesma cama, praticaram molícies e, em seguida, o pecado nefando, alternadamente.Apaixonando-se pelo rapaz, Romeiro largou a esposa e embarcou para o Brasil na companhiado “sobrinho”. Contudo, se desentenderam ao que Romeiro fez juramento de nunca maispecar no nefando com Pero Marinho e retornou a Lisboa (ibid., fls. 23-27).Por mais duas vezes, Romeiro foi ouvido e implorou misericórdia de joelhos “entremuitas lágrimas de arrependimento”. Em 4 de agosto de 1594, a Mesa elaborou seu parecer econcluiu que o réu deveria ter um castigo exemplar. Como dito, o Visitador Apostólico nãotinha poderes para relaxar à justiça secular. A bem da verdade, sua obrigação seria apenasaveriguar as práticas cotidianas, as vivências dos habitantes, e descobrir os indivíduos que sedesviaram, de maneira proposital ou não, dos dogmas e comportamentos católicos. Tinha aatribuição de sentenciar, em última instância, os delitos menores, como bigamia, proposiçõesheréticas e blasfêmias, através da abjuração de levi suspeita na fé (MENEZES, 2010, p. 75).No entanto, Furtado de Mendonça agiu diferente. Na primeira missiva que enviou aLisboa, informando de sua chegada, alegou que temia ataques às embarcações queconduziriam os presos ao Reino e solicitou ao Conselho Geral do Santo Ofício permissão paraestabelecer uma Mesa “plena” da Inquisição no Brasil – formada por ele e seus assessoresreligiosos – e julgar os réus “em final”. Em 13 de janeiro de 1592, os deputados do ConselhoGeral responderam que o visitador “guarde a instrução e Regimento que levou e despache láem final os casados duas vezes e blasfemos e outros de culpas menores” em que a qualidadedos delitos não chegue mais que a abjuração de levi. Culpados de judaísmo e luteranismo, “osenviará presos a este Reino, a bom recado, na mais segura embarcação que se achar com asculpas que contra eles houver e ratificadas as testemunhas” (BAIÃO, 1942, p. 543-544).Todavia, durante a visitação, foi estabelecida na Colônia uma Mesa “provisória” e“itinerante” do Santo Ofício; composta pelo bispo da Bahia, D. Antônio Barreiros, peloVisitador Apostólico e diversos padres assessores. Muitos réus foram julgados “em final” e assentenças eram inapeláveis. Além de penitências espirituais, abjuração de levi e pagamentodas custas, a Mesa determinou penas de açoites, desterros e galés, chegando a realizar autosde fé públicos em Salvador e Olinda. Num desses autos, a 9 de outubro de 1594, compareceuSalvador Romeiro, na matriz de Olinda, “em corpo, com a cabeça descoberta, cingido comuma corda, e com uma vela acesa na mão”. Na ocasião, ouviu sua sentença:Seja açoitado publicamente por esta vila e vá degredado, 8 anos para as galés doReino para onde será embarcado na forma ordinária nas quais servirá os ditos 8 anos [p. 12 do pdf] |