car. De qualquer forma, aguardente ou açúcar, o fato é que, ao longo doséculo, temos senhores de engenho como Salvador Correia de Sá eBenevides que, em 1642, segundo os seus inimigos, teria mais de 700 ne-gros da Guiné em suas propriedades;33 D. Feliciana de Pina que contariacom 91 cativos em 1656; Pedro de Souza Pereira, com 70 escravos em 1673;ou João Dique, com 90 cativos em 1712. Estes números insinuam que, aolongo do século XVII, teríamos uma elite à frente de uma economia deplantation.34Voltando à hipótese de que o comércio Rio do Prata-Rio de Janeiro-Angola seria o ponto de partida da empresa açucareira do Rio de Janeiro,esta idéia poderia ser confirmada pela freqüência de contratos e procura-ções existentes no livro do primeiro oficio de notas para 1612-13, feito para negócios no Rio da Prata. Entretanto, apesar de tentadora deve-se ter alguns cuidados com tal idéia.
Antes de mais nada, não se pode perder devista o caráter incipiente do núcleo urbano e do grupo mercantil do Rioseiscentista, pelo menos em relação ao que a cidade será em princípios doséculo XIX. Façamos algumas comparações. Nos períodos 1610-13 e 1630-36, no primeiro ofício de notas da cidade, foram negociadas cerca de 75escrituras de compra e venda, cujo valor total chegou até nós. Nestas, pou-co mais de 70% dos valores transacionados, estavam ligados a negócios rurais(engenhos, terras, partidos de cana, entre outros). Este número indicaria apequena expressão das operações urbanas e, mais precisamente, daquelasligadas ao capital mercantil (navios, lojas, estoques de mercadorias e ou-tros). Séculos mais tarde, quando o Rio já se apresentava como a principalpraça mercantil do Atlântico Sul, possuindo uma forte comunidade denegociantes de grosso trato, tal número será bem diferente. Em dez anos,entre 1800 e 1816, nos quatro cartórios da praça, foram negociadas 3.562escrituras. Nestas, os negócios mercantis representaram 37,8% de seus va-lores, as operações com prédios urbanos 29% e os negócios rurais apenas21%. Parece-me, pois, desnecessário insistir muito sobre o significado destacomparação: tais números falam por si mesmos.35Apesar do Rio, em princípios do século XVII, não poder ser caracte-rizado como um exemplo de uma típica cidade mercantil, não há por quedeixar de lado as possibilidades do comércio. Afinal, como demonstra umatese de doutoramento recente, no Portugal dos séculos XVI e XVII, o exercí [p. 54]
posto de “administrador geral dos índios e aldeias destas costas” na mesmaépoca.85Ainda nas primeiras décadas, pode-se ler na correspondência paraLisboa, denúncias de “roubos que por estas partes se fazem a Real Fazenda”.Em 1619, o governador Constantino Menelau e o capitão de Cabo FrioEstevão Gomes foram acusados de negócios ilícitos com o pau-brasil e dedesvios do almoxarifado real. Como resultado de tais atividades, Constan-tino “deixou comprado um engenho para se agasalhar”.86 Quanto a EstevãoGomes, coincidentemente, já em 1610, tinha comprado um engenho deaçúcar.
Depois das denúncias contra os governadores, nenhum outro postofoi alvo de tantas críticas como o dos ocupantes da provedoria da fazenda.De 1639 a 1687, este cargo fora ocupado, com alguns intervalos, pela fa-mília Frazão de Souza ou, mais precisamente, por um pai e seus dois fi-lhos, Pedro de Souza Pereira, Tomé de Souza Correia e Pedro de SouzaCorreia. Ao longo destes 48 anos, as denúncias contra progenitor e reben-tos se repetem quase que de uma maneira monótona. Eles foram acusadosda cobrança de direitos excessivos sobre o comércio marítimo, de ação ilí-cita na arrematação dos dízimos reais, de fraudes no contrato do impostoda baleia, de mandos e desmandos na cidade. Na revolta de 1660-61, Pedro,o pai, seria preso pelos rebelados e contra ele foram arrolados 40 capítulos denunciando o seu comportamento frente à provedoria. Segundo tais capítulos, de 1645 a 1660, o provedor teria subtraído parte dos rendimentos dos dízimos reais. Mais de quinze anos depois, o governador da cidade, Mathias da Cunha, acusaria Tomé de Souza Correia de ter arrematado o contrato das baleias através de um de seus criados, o que era proibido por lei, já que cabia ao provedor da fazenda real conduzir a arrematação dos impostos. No mesmo ano, um estudo feito no Conselho Ultramarino concluía que a fazenda real do Rio tinha poucos ganhos com o contrato dasbaleias. Uma das razões para isto seria o aluguel pago pelo uso da fábricadas baleias, cuja propriedade pertencia à família Frazão. Um dos proprie-tários de tal fábrica era Pedro de Souza Correia.87
Mas não só os Frazão de Souza foram denunciados por corrupção. Nofinal do século XVII, ocorria uma denúncia de irregularidade no contrato [p. 79]
O pano de fundo destas rivalidades pode ser insinuado na carta leva-da pelo procurador da Câmara, e também provedor dos defuntos e ausen-tes, João Castilho Pinto à Lisboa na década de 1640. Após ter relatado aorei os abusos de Salvador Correia de Sá e Benevides, do provedor da fazen-da Pedro de Souza Pereira e dos demais oficiais da alfândega de desvios nafazenda e alfândega reais, o mesmo denunciante solicita a sua majestade acapitania da fortaleza de São Sebastião e, em especial, o cargo de juiz dabalança, cargo já ocupado por Salvador Correia de Sá e Benevides desde1635.121 Portanto, um dos pontos de tal desavença era o controle do trapichee da balança do açúcar, um dos “bens” mais preciosos da República.Se o controle sobre a administração real periférica (e de suas benesses)muitas vezes fugia das mãos da elite senhorial (já que na nomeação para oscargos a última palavra dependia de Lisboa), o mesmo não ocorria com oSenado. O que, como já vimos, em termos da economia do bem comum,não era pouca coisa. Afinal, o controle sobre a assembléia municipal signi-ficava poder interferir nos preços, no açougue, na balança do açúcar etc.Daí se entende a constatação do governador Francisco Soutomaior, em1645, de que “as eleições do senado eram dominadas por pessoas da facção dosCorreias [Salvador Correia de Sá e Benevides] e dos Manoes [Aleixo Ma-nuel, o moço] que são dois Bandos e parcialidades de que nesta resultam tan-tas monstruosidades tão prejudiciais ao serviço de Deus e de sua Magestade”.122Por seu turno, as observações do assustado governador Soutomaiorapresentam um componente essencial para o domínio sobre a economiada República: as redes de alianças políticas (parentesco, clientelas etc.).
A presença destas redes nas disputas do mando colonial pode ser ilus-trada através dos acontecimentos de 1642, que resultaram no afastamentotemporário de Salvador Correia de Sá e Benevides do posto de governa-dor. Entre os que defenderam Salvador em juízo, encontramos o senhorde engenho Jorge Fernandes da Fonseca, membro da família extensa Ho-mem da Costa, e Diogo Sá da Rocha, também dono de moendas, antigoouvidor-geral e genro dos Rangel. Do lado oposto, voltamos a achar ve-lhos inimigos: Aleixo Manuel e os Pinto Castilho.Ao mesmo tempo, os acontecimentos de 1642 apresentam um outroaspecto das alianças políticas: a fluidez. Os dois envolvidos diretamente na disputa pelo governo da cidade, Salvador e Duarte Correia Vasqueanes, eram respectivamente sobrinho e tio. Jorge Fernandes da Fonseca e Aleixo Manuel, neste momento em lados opostos, eram cunhados. Por conseguinte,não só as alianças poderiam mudar conjunturalmente, como também po-diam existir interesses divergentes dentro de uma mesma família. Quantoa este último ponto, não parece ter sido a regra geral. Ao que tudo indica,pelo menos os parentes mais próximos tendiam a agir em comum e damesma maneira.
O casamento selava alianças entre famílias. Um bom exemplo disto foi o assassinato de Pedro de Souza Correia. Segundo a devassa feita na época os culpados seriam os “Amaraes [família senhorial] e seus aliados” encabeçados por Francisco do Amaral. Entre os suspeitos teríamos, além dos tios, irmãos e primos de Francisco, dois genros da família que eram também senhores de engenho.123
Um exemplo do envolvimento de tais redes nos negócios da República pode ser dado pela narrativa feita por Antônio Mendes de Almeida, nassuas palavras, “um homem forasteiro e sem parentes na terra”. Segundo Antônio, no ano de 1686, ele fora preterido do contrato dos dízimos, devido às armações do provedor da fazenda real, Pedro de Souza Correia e de “seus amigos”. Antes de mais nada, Antônio acusava ter sido impedido de participar de tal arrematação, através de artifícios montados pelo provedor da fazenda, o ouvidor-geral da cidade, e do juiz ordinário Baltazar de Abreu Cardoso. Uma vez feito isto, o mesmo provedor, por meio de um criado seu, arremataria os dízimos, e nisto fora auxiliado por Manuel Fernandez Franco, Antônio de Abreu de Lima e Francisco Gomes Ribeiro. O primeiro teria adquirido o contrato para depois passá-lo para a criatura do provedor, e os dois últimos serviram como fiadores do mesmo criado.124 Vejamos quem eram alguns destes “amigos”. O juiz ordinário era senhor de engenhos e neto de Jorge Fernandes da Fonseca, o mesmo que tempos antes fora procurador de Salvador Correia de Sá e Benevides. Manuel Fernandez Franco, que já tivemos o prazer de conhecer, pertencia à família extensa Pina e, por diversas vezes, esteve envolvido na arrematação de impostos.
Antônio de Abreu de Lima e Francisco Gomes Ribeiro também pertenciam à elite senhorial. O primeiro, com auxílio de Pedro de Souza Correia, tivera a serventia do juizado de órfãos, e o segundo, em 1678, chegaria ao posto de capitão-mor de Cabo Frio. Deste modo, percebe-se que, nestesacontecimentos, a família Frazão de Souza aparece escudada por uma aliançaformada com mais quatro famílias senhoriais.
Um dos mecanismos geradores de alianças era a constituição de clien-telas. Os governadores tinham a possibilidade de nomear, mesmo que pro-visoriamente, pessoas para cargos da administração civil e militar da colônia. Neste sentido, foram exemplares as carreiras de Pedro de Souza Pereira e de Diogo Lobo Teles antes de se tornarem, respectivamente, proprietários dos ofícios de provedor da fazenda e de juiz de órfãos. Ambos foram capitães de infantaria e depois, sempre por nomeações dos Correia, seriam capitães-da-fortaleza de Santiago e capitães-mores das frotas do Rio para Lisboa.125 Como já vimos, ao longo de sua carreira, Pedro se casaria com uma Correia e o mesmo ocorreria com um dos sobrinhos de Diogo. Algo semelhante talvez, possa ser dito para outros capitães-de-fortaleza e da infantaria paga. Manuel da Costa Cabral, capitão-da-fortaleza de Santa Cruz em 1669, teve uma de suas filhas casada com Martim Correia de Sá. Alexandre de Castro, capitão-da-infantaria paga desde 1644, tornou-se esposo, em 1639, de Felipa de Sá, membro da casa de Salvador Correia de Sá e Benevides. Ascenso Gonçalves de Matoso, capitão da fortaleza de São João e membro de uma família senhorial, desde 1655 estava casado com Serafina Correia de Sá.
Não era inteiramente sem motivo que os “Manoeis”, Correias e de-pois os Pontes fossem considerados poderosos por serem os “mais aparen-tados nesta terra”. Através das suas clientelas e estratégias de casamento estas famílias ampliavam as suas esferas de influência.126Na verdade, a importância das redes de parentesco no funcionamen-to da economia e sociedade coloniais ultrapassava em muito o que chameide economia do bem comum.127 Para tanto, basta lembrar seu impacto sobreo mercado colonial. Entre 1650 e 1669, 1/4 das vendas e compras de en-genhos, em cartório, foram feitas entre parentes (sogro/genro, pai/filho,irmão/irmão etc.). No meio de tais compras, a concretização de dotes, ouseja, de alianças familiares. Caso comparemos, em 1665, os valores de to-dos os dotes do ano com aqueles totais negociados nas compras e vendasem cartório, verificaremos que a soma dos primeiros corresponderam a 42 [p. 98, 99]