O Brasil na Monarquia Hispânica (1580-1668) Novas Interpretações
dezembro de 2016. Há 8 anos
liberdade de leitura. Dizia ele que “o principal estudo há de ser por livroscatólicos, porque deixar os divinos pelos profanos é erro grave, em quemuitos embicam e outros caem”.22Entre os outros bens de Preto, um “naipe”, isto é, um baralho. Oslivros poderiam compor, eventualmente, junto com a viola e o jogo decartas, formas de sociabilidade e lazer no cotidiano do sertão. Laura deMello e Souza, em excelente trabalho sobre o cotidiano das expediçõesaos interiores da América portuguesa, mostra como, em meio à precariedade, aos perigos e instabilidades do sertão, os membros buscavamconstruir formas de sociabilidade e domesticidade que abrandassem osestranhamentos.23 Ainda nos referindo à família dos Pretos, Sebastião –tio do moço Manoel e sertanista dos mais afamados – deixou ao morrer,em 1623, também vítima de flechada, uma viola e alguns livros, aparentemente todos de cunho religioso. É um daqueles casos, infelizmente, queo nome abreviado, e comum, dificulta a tentativa de recuperar os títulos.24Lá está um “Salve Rainha”, oração muitas vezes cantada; um “livro de SãoJoão” e um intitulado Conquista de Jerusalém, que bem poderia ser, numexercício de projeção literária, a Jerusalém Conquistada de Lope de Vega.Contudo, parece remeter muito mais a uma típica biblioteca de cunhomilenarista, na qual se vê um vale de lágrimas marcado pela iminenteredenção do fim dos tempos.
Mas se as bandeiras dão um dos tons desta vila de São Paulo nocontexto filipino, outro é a demanda mineral e a busca pelo ouro. Defato, um dos sentidos maiores das primeiras grandes bandeiras organizadas no planalto foi exatamente a busca por metais e a averiguaçãodas notícias e boatos que circulavam sobre esta suposta riqueza. As taisminas de São Paulo arrastaram polêmicas no século XVII e chegarama atrair o governador geral do Brasil, Dom Francisco de Souza, à vila.
O governador permaneceu em São Paulo entre 1599 e 1604, numa primeira vez, e entre 1610 e 1611, numa segunda ocasião. Nesta última, inclusive, ali faleceu, pobremente, segundo Frei Vicente de Salvador. Souza, apesar de certa imagem de “Quixote mineral” que se construiu sobre ele postumamente, vinha cumprir fielmente seu regimento e suasordens, emanadas de Felipe II, para demandar tais riquezas. Já apoiara Gabriel Soares de Souza em suas expedições pelo São Francisco e depois, guiado pelas notícias de ouro encontrado na região da Capitania de São Vicente, ali se instalou. Não é necessário muito esforço para imaginar o impacto que a presença dele teve para a pequena vila paulista. As Atas da Câmara transparecem o rebuliço geral causado pela expectativa da chegada do governador, obrigando os camaristas a normatizarem uma série de questões, como direito a pesca, ofícios e um lugar para pouso,comes e bebes. Na verdade, com o governador chegava não só a dignidadeda função, como também uma grande possibilidade de acesso a cargos,mercês e negócios.25 Por fim, ainda vinha com o governador uma grandecomitiva. Esta, de acordo com as palavras de Francisco de Assis CarvalhoFranco, era a “mais douta, mais operosa e mais luzida que já vira a colônia nascente”.26
Segundo Afonso Taunay, a chegada de Francisco de Souza a São Paulo foi um verdadeiro “choque de civilização”.27 A vinda desta comitiva revela outra dimensão fundamental, que é o incremento populacional da vila. Ela deve ter causado verdadeira revolução na dinâmica do povoado, pois interferiu na distribuição de datas e sesmarias, modificou o leque de ofertas de casamentos e alianças, e alterou os padrões de consumo. Em 1589, São Paulo contava com um pouco mais de 170 moradores, passando, em 1600, para 308, portanto um acréscimo de 80% numa década. Importante ressaltar que o padrão se repetiu na segunda vinda do governador. Em 1605, quando não estava mais em São Paulo, a vila totalizava 374 moradores, mas entre 1606 e 1610, quando voltou, o aumento foi de 160 moradores, compondo um total de 534 nomes. Cerca de 40% de elevação.28 Assim, “a comitiva encheu a pequena vila, o que não era difícil, e transformou profundamente os costumesde seus habitantes”.29 Diríamos que não só os costumes, mas também a paisagem física e cultural.
Dentre os membros da comitiva do governador, uma parte importante deles era composta por mineiros, peritos minerais e engenheiros ou práticos no tema. A maioria deveria ser letrada. Neste grupo, antevê-se o que muito grosseiramente pode representar uma “elite” intelectual na pequena vila. Remete-se, inicialmente, a Martins Rodrigues Tenório. Castelhano, dono de uma vistosa criação de gado, atividade fundamental de São Paulo e fundidor de ferro na região de Santo Amaro, onde se instalou uma “fábrica de ferro” em 1607.
Tenório acabou desaparecido numa bandeira no Paraupava, na qual era o capitão. Nosso fundidor, e bandeirante, deixou listado em seu inventário, feito em 1613, quatro livros: O Retábulo da Vida de Cristo, Mysterios da Paixão, uma Instrução de Confessores e, para além da leitura religiosa, um livro intitulado a Cronica do Grão Capitão.
30 Tenório, em 1603, no sertão do Paracatú, talvez temendo pela vida, já tinha lavrado um testamento. Nele, não constavam livros de leitura, mas referências de um de contas, de sua autoria, emque registrava toda sua contabilidade. O livro foi anexado ao inventáriomais de dez anos depois, e nele, seu autor, em castelhano, justificava suaexistência: “por quietud de mi memória para por elo saber na verdad loque debo”.31 Em seu testamento, fazia referência a um “bastardo”, filhoque tivera com uma índia em São Paulo. Encomendou a seu genro,Clemente Alvarez, que fosse curador do garoto e o ensinasse primeiroa ler e escrever, e depois seu ofício. Martins Rodrigues solicitava que sefizesse cumprir as Ordenações de Vossa Majestade, que impunha ao tutordos órfãos a obrigação, dentre outras coisas, de ensinar os meninos “aler, a escrever e contar”, e às meninas “a coser, a lavar, a fazer rendas etodos misteres femininos”.32 Anos depois, quando a morte de Martinsde fato ocorreu, o garoto acabou sob a tutela do outro genro, o flamengoCornélio de Arzão, que o iniciou na carpintaria.
Mas do que tratam os livros de nosso ferreiro castelhano? Por trásdo título profundamente piedoso do “Retábulo”, está a obra Retablo de lavida de Christo, hecho en metro por un devoto frayle de la Cartuxa. O autorera o frei sevilhano Juan de Padilla (1468-1520), que elaborou um poemacristológico profundamente visual. Uma “pintura verbal” que narrava avida de Cristo, da Virgem Maria e de São João Baptista. Cumpria o efeitode um sermão e foi o tipo de obra que caiu no gosto espanhol do séculoXVI. Este mesmo livro teria inspirado o fundador da Companhia de Jesus,Inácio de Loyola. Fazia parte de um rol de livros exemplares e de exaltaçãoda virtude. O Retablo foi editado à primeira vez em 1505, pelo mestre tipógrafo alemão Jacobo Cromberger, e recebeu pelo menos vinte ediçõesno século XVI. Juan de Padilla lembrava como três coisas incitavam, eserviam como tentação, aos corações dos homens: as grandes riquezas,as beldades e o canto suave de doces canções. O frei ainda publicaria,em 1521, outro livro chamado Doze trabalhos dos doze apóstolos, no qual louvava a Espanha, as armas de Castela e principalmente a Reconquista.33Esse campo das grandezas e glórias espanholas era familiar a Tenório,que tinha ainda uma obra que se remetia a uma Espanha já nostálgicados heroicos feitos passados. A crise espanhola, cada vez mais evidentedesde o final do século XVI, deveria fazer com que a vida do Gran CapitanGonzalo de Mendoza e suas campanhas da Itália ainda em tempos deFernando de Aragão calassem fundo na alma deste castelhano em terrasde Piratininga.34 A Cronica del Gran Capitan Gonçalo Hernandez de Cordovay Aguillar era um livro que compilava textos de Hernando Pérez de Pulgar,e foi editado com este título em 1582 pelo impressor de Sevilha AndreaPescioni. Outra edição foi feita em 1584, pela casa do mercador de livrosde Alcalá de Henares, Hernan Ramirez.Desta mesma editora, há o sugestivo título de Francisco OrtizArias, Mysterios de la sacrosanta passion de Christo, de 1578. Entretanto,nesse terreno só podemos especular. Fica-se aqui no reino da aproximação, já que obras com esse título não eram raras. Por fim, Tenório tinhaum livro intitulado Instrucção de Confessores. Este tipo de obra configuravaum verdadeiro modismo no pós Concílio de Trento (1545-1563), afinala normatização deste sacramento foi uma das pedras angulares daContrarreforma. Nesse sentido, esses manuais classificavam os pecadose funcionavam como verdadeiros sumários do cristianismo. Tinhamum aspecto bem funcional e, especialmente nas regiões de conquista ecolonização, eram obras auxiliares no trabalho de catequese, se bem quenão parece que seja este o caso de Martins Tenório. Não à toa, o própriopadre jesuíta José de Anchieta escreveu um Confessionário, também emlíngua tupi, para auxílio missionário.35 [p. 123, 124, 125, 126]
O genro de Tenório, e perito em minério, Clemente Alvarez, dizia ser, enquanto esteve preso em função de um processo que se seguiu ao inventário do sogro, desprovido das letras. Não sabia ler nem escrever, segundo ele próprio.36 Curiosa informação, pois o próprio deixaria, em seu inventário, dois livros, dentre eles mais um Confessionário. O outro livro – Contemptus Mundi – era, muito provavelmente, uma recompilação de orações e exercícios devocionais, feita pelo frei dominicano Luiz de Granada, editado pela primeira vez em Lisboa em 1573. Seria uma “tradução” de Granada da obra Imitação de Cristo, conhecida vulgarmente como Contentis Mundi, ou o desprezo do mundo, e atribuída a Tomás de Kempis. Neste trabalho, Kempis dizia que “busquei a felicidade em toda a parte, mas não a encontrei em nenhum lugar, exceto em um cantinho, que abrigava um pequeno livro”.37
O livro é quase onipresente na América e foi um verdadeiro sucesso na Península Ibérica. Levantamento feito por José Torre Revello sobre a entrada de livros impressos na América durante o período da dominação colonial espanhola mostra o Contentis Mundi presente em diversos carregamentos e embarques. Fernando Bouza Álvarez o encontra na biblioteca de D. Duarte de Bragança e afirma ser esta uma das leituras de Joana de Áustria, regente de Espanha.38
O frei Jerônimo de Mendieta narra como encontrou uma tradução deste livro, em língua indígena, feita por índios do Colégio de Santiago de Tlateloco, na Nova Espanha. Livro muito difundido, ele era obra referencial da Devotio Moderna, que apregoava uma religiosidade mais contemplativa, marcada por exercícios de devoção, abnegação, introspecção e piedade popular. O livro chegou a ser proibido pela Inquisição, mas foi depois retirado da lista.39 Se Kempis já buscara no livro a suprema felicidade, Granada também tinha uma visão livresca do mundo, já que considerava o livro uma metáfora da vida cristã. A criação e a existência deveriam ser lidas como se lê um livro.
Este mesmo título aparece uma segunda vez entre peritos minerais. Manoel Pinheiro Azurara, conhecido de Clemente Alvarez, com quem deixara inclusive algumas amostras de prata certa ocasião, era português e vivera cerca de 30 anos em Nova Granada, onde tinha família. Chegou a São Paulo através de Francisco de Souza, que o mandou para a vila ainda em 1597 para investigar os boatos a respeito dos minérios. Entre 1602 e 1604, andou por Valladolid, Madrid e Lisboa buscando mercês e regulamentações para exploração mineral de São Paulo. Voltou como mineiro-mor do Brasil em 1604.
Em 1606, evadiu-se para o Paraguai pelo “caminho proibido de San pablo” (dizia ele para chegar a Nova Granada), onde comerciou tecidos e erva-mate. Foi acusado, na ocasião, de levar pelo caminho dezenas de escravos negros e algum ouro contrabandeado de São Paulo. Preso, teve seus bens inventariados.40 Dentre os arrolados, há muito tecido, facas e objetos miúdos para provável resgate com os índios, e muita erva-mate adquirida na passagem pelo Guairá. Uma de suas testemunhas de defesa o chama abertamente de “tratante”. Entre seus outros bens, estava uma carta de marear, um astrolábio e uma balestilha. Óculos, caixas de diversos tamanhos, relógio de sol e utensílios variáveis talvez revelem um perito mineral, meio mercador, meio mascate.
Este “navegante do sertão” carregava consigo alguns livros: um Livro de Regimento (provavelmente o Regimento mineral expedido em Madri em 1603), com claro sentido utilitário, já que, enquanto mineiro-mor, ele fora o responsável por implantar o dito regimento em São Paulo; um livro de memória, um de sermões, um “diurno” (livro de orações com as Horas) e um Contentis Mundi. Por fim, possuía um livro nomeado somente como Parayso. Sabe-se que Diego de la Vega editou seu livro de sermões, Parayso de la gloria de los santos, em Toledo no ano de 1602, em Lisboa no de 1603 e em 1604 em Barcelona, coincidindo com o tempo que nosso amigo perambulou pelas cortes da Península Ibérica. Vale se questionar ainda se Azurara era um homem somente piedoso, ou um piedoso comerciante que vendia, dentre outras coisas, livros pelos interiores da América. Livros, neste caso, claramente contrabandeados pelo caminho proibido. Caso Azurara fosse também um mascate, vendia o que se pode imaginar como mercadoria de venda fácil, como o best-seller Contentis.
Ainda no campo dos afeitos aos trabalhos com minérios, temos Pedro Fernandes, que fez seu testamento em 1648, data que escapa estritamente à cronologia deste trabalho, mas teve sua vida plenamente abarcada nela. Suas últimas vontades foram registradas antes de descer “rio abaixo” no Tietê, de onde partia do porto de Pirapetingy, próximo da atual cidade de Salto.41 Entre homens, mulheres e crianças indígenas, quando da sua morte em 1648, possuía quase 100, dentre elas uma do “Piquiri” que havia trazido pessoalmente. Casado com Anna Tenório, neta materna de Martins Rodrigues Tenório e filha de Clemente Alvarez, esta legou ao marido, provavelmente via dote, os apetrechos do engenho de ferro e instrumentos variados de marcenaria, como verrumas, escopos, trados e garlopas.
Era um homem de posses, inclusive de alguma ilustração, já que seu testamento, escrito por ele próprio, denota algum estilo. Só possuía, em inventário, um único exemplar: um singelo “livro de sermões”, sem avaliação. Mas, em troca de duas redes que entregou a Lucas da Costa, morador de Itanhaém, para vender no Rio de Janeiro, recebeu “uma Arte e uma Cartilha”. Dentre estes manuais de alfabetização nomeados no inventário de maneira bastante natural, pode-se crer que está a popular Arte latina, do padre jesuíta Manuel Álvares (1523-1586). A obra, editada pela primeira vez em 1572, chegou a ter 530 edições ao longo do tempo. Era tão conhecida e comum que era chamada de “livro 41 I&T, v. XII. 130 o brasil na monarquia hispânica (1580-1668) único”, e servia como guia oficial de ensino do latim em todas as escolas jesuíticas espalhadas pelo mundo. [p. 124, 124, 125, 127, 128 e 129]
Porém o chamariz de rol de bens de Fernandes é que, listado entre machados, foices e cunhas, aparece um “torno de emprensar livros”, avaliado em 320 réis (um pouco menos valioso que três cunhas, avaliadas em 360). A que poderia ter servido tal instrumento a Pedro Fernandes? Teria ele mesmo utilizado ou lhe ficou de herança, encostado em alguma choupana do sítio? O fato é que bem poderia ter animado a produção de algumas cartilhas para alfabetização, panfletos e cartas impressas, como as que no ano de 1639 andaram causando alvoroço na vila de São Paulo por apregoar a volta do rei Sebastião.43
O pequeno negócio feito em Itanhaém, e a presença do torno, podem sugerir um esboço de gráfico. De todo modo, lembremos que o Colégio dos Jesuítas servira comoprincipal meio de alfabetização e ensino na vila de São Paulo, e o uso decartilhas deveria ser o recurso principal desta educação.Mas se os mineiros e envolvidos com as práticas minerais e siderúrgicas parecem ter demonstrado alguma inclinação à leitura, ou àposse de livros, num outro diminuto grupo, estes também se fizerampresentes. Trata-se dos boticários e “cientistas” da pequena vila. Além doscuidados com os corpos, revelaram igualmente um cuidado maior como espírito. O boticário, e sertanista, Mateus Leme possuía uma bibliotecaque podemos considerar como verdadeiramente renascentista. Natural42 VERDELHO, Telmo. Historiografia linguística e reforma do ensino. A propósito de três centenários: Manuel Álvares, Bento Pereira e Marquês de Pombal.Brigantia, Bragança, v. II, n. 4, p. 347-356, out-dez. 1982.43 A sessão da Câmara de 16 de abril de 1639 trazia um requerimento alarmantedo procurador Sebastião Gil a respeito de algumas cartas que circulavam pelavila. Nelas, lia-se que o rei D. Sebastião, desaparecido em Alcácer-Quibir em1578, estava voltando, e que o papa ameaçara de excomunhão todo aqueleque lhe impusesse qualquer resistência. Dizia ainda o procurador que, nasruas de São Paulo, as tais cartas causaram algum alvoroço e muitos saíramaos “gritos dizendo viva el rei dom Sebastião” ATAS da Câmara da Vila de SãoPaulo, 16 abr. 1639. (Páginas 129 e 130)